O LUGAR DA AMÉRICA LATINA NA VITÓRIA DE BARACK OBAMA
Barack Obama venceu as presidenciais norte-americanas de 4 de Novembro de 2008, fazendo crer que os Estados Unidos virarão uma página na sua vida política. Depois de 21 meses de intensa e emocionante campanha eleitoral, Obama bateu John McCain, tornando-se no 44º presidente dos EUA. Ganhando desde logo no estado do Ohio, Obama venceu também nos estados do Pacífico, ultrapassando a meta dos 270 votos necessários no Colégio Eleitoral para chegar à Casa Branca, muito antes dos resultados finais terem sido conhecidos.
Interessante notar que, depois do intenso debate sobre o papel da raça nas eleições em que estava em causa o primeiro candidato negro à Casa Branca, este factor acabou por não ser decisivo. Nas sondagens da CNN, dentre os que afirmaram que a raça era importante nestas eleições, 55% votaram em Obama, assim como 53% daqueles que haviam dito que a raça não era relevante.
O mais importante de todo este processo é, todavia, o que representa em termos de evolução da sociedade internacional. Democrata, membro do clube dos tradicionalmente pacifistas mais preocupados com a situação interna do país do que com a projecção de poder, unilateralmente, em todos os teatros internacionais, Barack Obama deixa no horizonte o espectro de uma maior igualdade entre os Estados, num multilateralismo que certamente favorecerá o «non-polar world» de Richard Haass. Ademais, pode esperar-se de Obama uma diferença fundamental relativamente à Administração precedente. Em 2000, durante a campanha eleitoral, os EUA eram um país líder e respeitado, estando hoje embrenhado numa grave crise de autoconfiança. Guerras inapropriadas, erros de governação e crise económica têm debilitado o país a nível interno e externo, esperando-se de Obama uma alteração desta situação.
Na realidade, ao sucessor de George W. Bush coloca-se o desafio de, ultrapassando a desastrosa actuação externa do país, recuperar a imagem e a credibilidade dos Estados Unidos. Para tanto, terá de liderar a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas e aliar-se mais veementemente à União Europeia para competir com as possantes economias emergentes dos BRIC, bem como da África do Sul e do México, assim como enfrentar o velho inimigo russo – cuja recente guerra na Geórgia demonstra claramente que os desejos expansionistas de Moscovo não desapareceram com o fim da ordem bipolar. Será necessário que Obama lide também com o descrédito da Administração norte-americana provocado pela circulação mundial das fotografias de militares norte-americanos a humilhar prisioneiros em Abu Ghraib e pelos relatos de tortura em Guantánamo.
A guerra contra o terrorismo transnacional impor-se-á, também, como desafio premente. Não obstante a guerra do Iraque parecer finalmente correr menos mal, já que o aumento das tropas logrou diminuir a violência – que já matou centenas de milhares de Iraquianos e 4 100 militares norte-americanos – no Afeganistão a luta contra o regime talibã está cada vez mais longe da vitória, com os fundamentalistas islâmicos a estender a sua influência até ao vizinho paquistanês. Neste contexto, caberá a Obama garantir o sucesso do regime democrático implantado no Afeganistão e assegurar que sunitas, xiitas e curdos se mantenham unidos no Iraque, de modo que as próximas eleições contem com uma maior participação por parte dos cidadãos.
A ameaça nuclear colocar-se-á igualmente a Obama, que substituindo a retórica belicista e adoptando uma atitude dialogante, não poderá, todavia, deixar de tomar posição (e medidas) relativamente ao regime dos «ayatollahs» no Irão e à Coreia do Norte, sendo certo ter George W. Bush assinado um acordo de cooperação nuclear com a Índia. Face à continuação do enriquecimento de urânio pelo Irão, Obama terá de optar pela aceitação de um regime nuclear no país ou pela solução militar, enquanto a situação se adensa na Coreia do Norte – onde os rumores de doença do líder Kim Jong-il, a confirmarem-se, poderão provocar o êxodo da população para a Coreia do Sul, sendo certas as dúvidas quanto a quem lhe irá suceder à frente de uma provável potência nuclear – que, crê-se, já terá, inclusive, testado a bomba.
A dicotomia energia versus ambiente é outro dos «pontos quentes» da agenda herdados por Obama. Consumindo mais de 20 milhões de barris de petróleo por dia – 12 dos quais importados – e gastando 475 mil milhões de dólares do orçamento só em combustível – muito do qual comprado a países considerados «suspeitos» – os Estados Unidos de Obama terão de investir em soluções que poderão passar pelo desenvolvimento das energias alternativas. Até porque, sendo o maior poluidor do ambiente a nível mundial, não tendo ratificado o Protocolo de Kyoto – que expirará em 2012 – e não parecendo disposto a desbloquear o impasse que tem posto em causa a assinatura, em Copenhaga, no final de 2009, do sucessor de Kyoto – pois recusa-se, juntamente com a China, a participar nas conversações – os EUA terão de encontrar soluções alternativas para a redução das emissões de gases com efeito de estufa.
Evidentemente, a grave crise que está a afectar o sistema financeiro mundial – e que obrigou a Administração Bush a lançar um plano de 700 mil milhões de dólares para salvar os bancos da falência – obrigará Obama a recuperar a confiança nas instituições financeiras norte-americanas e a reformar o sistema económico internacional estruturado, em 1944, na Conferência de Bretton Woods.
Procurando dar resposta aos desafios internos colocados pela necessidade de reduzir o desemprego, reformar o Supremo Tribunal do país, melhorar o relacionamento com os cientistas – já que os 8 anos da Administração Bush foram uma verdadeira «guerra» contra eles, tendo isto motivado, mesmo, a assinatura, em 2004, de um manifesto, por parte de galardoados com o Nobel, apelando à não eleição de Bush – e reformar a segurança social – debate que tem marcado as diversas administrações que têm passado pela Casa Branca, tendo falhado a proposta de Hillary Clinton de 1993 e sendo os EUA o único país rico e desenvolvido a não ter saúde gratuita e universal para os seus cidadãos – Barack Obama terá, ainda, de rever a postura desinteressada de George W. Bush relativamente à América Latina.
É verdade que o grande debate sobre o quanto Barack Obama poderá mudar a desastrosa política externa norte-americana está em geral focado sobre o Médio Oriente. Há, porém, um debate político menos visível, mas não menos apaixonado, sobre a América Latina, que embora não levante questões que afectem profundamente o Hemisfério Sul, tampouco os milhões de Norte-Americanos que têm laços familiares na região, é um assunto importante. Num mundo cada vez mais integrado e interdependente, no qual ganha relevância o «soft power» sobre o «hard power», as relações dos Estados Unidos com a América Latina já não podem ser vistas como aspecto regional da política externa dos EUA, tornando-se, antes, parte fundamental da discussão sobre comércio, emprego, imigração e criminalidade transnacional no país.
É certo que, acreditando-se ou não na plataforma democrática para a política norte-americana na América Latina, submetida ao lema «Nós acreditamos em mudança», a verdade é que inevitavelmente a campanha acenou ao voto latino, especialmente em estados indefinidos, como a Florida e o Novo México.
A vitória de Obama trará, para a região, uma verdadeira Política de Boa Vizinhança que, espera-se, venha ultrapassar o desastre da política de Bush para a América Latina.
O primeiro passo foi dado com a carta, apresentada à Fundação Nacional Cubano-Americana em Miami, no dia 23 de Maio, na tentativa de vencer o poderoso grupo político que havia defraudado as anteriores esperanças do Partido Democrata. Obama ofereceu, assim, à multidão, um pacote de novas políticas.
Pouco depois do discurso para os Cubano-Americanos, a campanha lançou «Uma Nova Parceria para as Américas», abordando a política externa regional a partir de três eixos principais, que remetem para as «quatro liberdades» de Roosevelt: a liberdade política, a democracia, a segurança e o combate à pobreza.
Polémica quanto ao alcance e à consistência das propostas, a verdade é que a plataforma de Obama marca uma ruptura importante com a política de Bush para a região. Mais significativa ainda, ante o cenário criado pelos republicanos em matéria de propostas eleitorais para a América Latina. Efectivamente, as medidas republicanas foram caindo muito mal na região, especialmente quando John McCain nomeou Otto Reich como seu conselheiro para a América Latina. É preciso não esquecer que foi justamente Reich quem afastou os Centro-Americanos pela participação directa no escândalo «Irão-Contras». Do mesmo modo, Reich enfureceu os Venezuelanos ao apoiar o golpe de 2002 e provocou a ira dos Cubanos ao proteger Orlando Bosch e Luís Posada Carriles, os responsáveis pelos ataques terroristas anti-Cuba. Pelo contrário, a equipa de política externa de Obama para a América Latina, bastante heterogénea, tanto engloba a linha dura que apoia o Plano Colômbia, quanto a oposição que se contrapõe a um acordo de livre comércio entre Washington e Bogotá. Neste contexto, a referida Nova Parceria para as Américas revela uma nova perspectiva sobre a região, que alimenta a esperança de mudanças reais.
O capítulo sobre liberdade política concentra-se na questão cubana. Propondo eliminar restrições de viagens à ilha e liberar as remessas monetárias, a Parceria é ambígua em relação ao embargo comercial, porque o entende como instrumento de negociação na transição pós-Fidel – embora se possa, eventualmente, entender a tentativa de flexibilizar esse embargo como uma manobra eleitoralista.
Outras rupturas com a política de Bush incluem o fim das torturas, das prisões clandestinas no exterior, das detenções indefinidas, o restabelecimento do habeas corpus e o fechamento de Guantánamo. O documento refere ainda a necessidade de um maior comprometimento dos Estados Unidos na luta contra a pobreza da região, em nome de um «desenvolvimento de baixo para cima», bem como a urgência no cumprimento dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, dos princípios das Nações Unidas e bem ainda a redução do défice de educação, o perdão, a 100%, da dívida externa da Bolívia, Guiana, Haiti, Honduras, Paraguai e Santa Lúcia; além de prometer reformas para o Fundo Monetário Internacional e para Banco Mundial. Estas propostas vão muito além do programa tradicional dos candidatos democratas e o facto de terem sido incorporadas no plano de Obama para a América Latina indica a sua disposição em colocar, nas questões sociais, a ênfase que anteriormente era dada ao investimento empresarial, à liberalização do comércio e aos programas de mudança de regime a partir de bases ideológicas. A Lei Contra a Pobreza Geral, que Obama vem já implementando, constitui um primeiro passo no sentido desses objectivos.
Quanto à integração regional, a plataforma de Obama rompe com os paradigmas do comércio justo, da alteração do NAFTA, da oposição ao acordo entre os Estados Unidos e a Colômbia, da possibilidade de oferecer cidadania para trabalhadores ilegais e seus familiares e salienta a necessidade de uma análise profunda da política comercial, observando a relação entre as políticas comerciais e de imigração sob o NAFTA.
Em matéria de segurança, Obama altera a lógica republicana que justificava as intervenções norte-americanas, ao proferir a maior disponibilidade para assumir e partilhar responsabilidades, tomar a dianteira em desafios internos como o controlo de drogas e o tráfico de armas e criar parâmetros mensuráveis, enquanto se enfatizam alternativas não-militares.
No documento, encontram também espaço as questões da energia e da imigração, em relação à qual Obama reitera o compromisso de fazer uma ampla reforma nas políticas de imigração elencada como prioridade absoluta do seu primeiro ano como presidente. Propõe ainda a continuidade e actualização do Programa Andino Contra as Drogas, apoiando a luta colombiana contra as Farc – apesar de se ter oposto ao acordo de livre comércio entre os EUA e a Colômbia – e o Plano México. Opondo-se veementemente à violência e à criminalidade, que propõe combater, Obama opta por soluções não-militares que incluam um compromisso e um envolvimento com a Venezuela chavista.
Polémica nem tanto na sua essência, mas fundamentalmente pela dúvida relativamente à concretização das propostas eleitoralistas, a Plataforma de Obama segue os ideais de Roosevelt, compreendendo, inclusive, muito bem que, hoje, os governos de esquerda da América Latina anseiam, não por programas económicos submetidos ao Consenso de Washington, mas mais por programas semelhantes ao «New Deal» dos anos 1930. Assim mesmo é encarada a «doutrina Obama» da Política de Boa Vizinhança elaborada também na década de 1930. E isto reflecte uma profunda mudança de perspectiva dos EUA face à América Latina, já que o governo governoBush, que interpretou este facto como uma ameaça, não percebeu que, simplesmente, as turbulências na América Latina eram um convite para rever o actual modelo de integração económica e adoptar uma maior flexibilidade. Até porque, livre de conflitos, repleta de democracias e num processo de grandes redefinições, a região é um laboratório para mudanças num mundo globalizado. Tudo sugerindo que Obama iniciará uma nova era nas relações dos Estados Unidos com a América Latina – apesar de ter de se preparar para as recomendações políticas e económicas do Conselho de Relações Exteriores, que constantemente lança apelos à liberdade de comércio e considera, em consonância com Condeleeza Rice, que as medidas para a redistribuição da riqueza nacional adoptadas na América Latina representam o ressurgimento dos nacionalismos. Eleito presidente, ele tem, agora, de estar disposto a manter as promessas feitas durante a campanha, mesmo quando pressionado pelos lobbies, ou mesmo que os analistas e os políticos o advirtam que tais promessas não são prioritárias.
Fosse como fosse, a verdade é que o candidato Obama reuniu a preferência quase generalizada dos líderes latino-americanos. Mesmo no Brasil, não obstante a proposta mais flexível e liberal de McCain quanto ao etanol ter reunido maiores consensos; e não obstante o receio de que um democrata na Casa Branca e uma maioria democrata no Congresso possam transformar os EUA num país excessivamente proteccionista relativamente aos seus maiores exportadores – caso do Brasil – a preferência do Palácio do Planalto e do Itamaraty foram sempre por Barack Obama. Não apenas pela simbologia de ter um negro a presidir à maior democracia do mundo, como também, e sobretudo, devido ao multilateralismo que Obama ergueu como uma das bandeiras de campanha em matéria de política externa. O próprio presidente Lula, ainda durante a campanha, havia afirmado que Obama seria, nos EUA, mais ou menos como Chávez na Venezuela, como ele próprio no Brasil, como Evo Morales na Bolívia e como o bispo Lugo no Paraguai; ou seja, uma grande novidade, um «factor extraordinário» para os Estados Unidos e para o mundo[1].
O presidente venezuelano Hugo Chávez, por seu lado, tendo sempre acreditado na vitória de Obama, espera que desta resultem relações bilaterais marcadas pelo respeito, de modo a ultrapassar a tensão que persistiu entre os dois países durante a Administração Bush – que terá mesmo levado Chávez a expulsar, em Setembro último, o embaixador norte-americano em Caracas, em demonstração de solidariedade com a Bolívia, que teve o seu representante diplomático expulso de Washington. A verdade, todavia, é que, não obstante se esperar, de Chávez, algum nível de redução das críticas aos EUA, a viragem não será total, já que o antiamericanismo do presidente venezuelano é uma «imagem de marca» que o próprio gosta de ostentar.
Relativamente ao Brasil, a situação poderá vir a ser diferente. Segundo o ex-ministro brasileiro dos Negócios Estrangeiros (1995-2001), Luiz Felipe Lampreia, em entrevista à BBC Brasil, “a eleição de Barack Obama à Presidência dos Estados Unidos pode significar uma aproximação ainda maior entre EUA e Brasil”[2].
É bem verdade que a actual política externa brasileira tem privilegiado o contacto com outros países em detrimento dos EUA, designadamente as economias emergentes dos BRIC. Todavia, a postura de Lula diverge desta orientação, sendo, segundo Lampreia, “mais sensata”. Se Lula e Bush tinham uma boa relação, é provável que, com Obama, mais aberto ao diálogo, aumente o espaço de participação do Brasil nos novos directórios do poder mundial. Até porque a história de vida de Obama, um mestiço, comparável à evolução do próprio Lula, com quem tem um pensamento semelhante, será certamente positiva – e terá, naturalmente, inspirado tanta simpatia no Brasil.
O próprio receio brasileiro face ao proteccionismo que se espera de Obama pode ser infundado. As desavenças comerciais são transversais à política e não dependem de presidentes, além de que a política comercial norte-americana é levada a efeito pelo Congresso, estando hoje diluídas, em função da crise, as divisões entre democratas e republicanos no que se refere ao comércio – mostrando-se os republicanos, no actual cenário de recessão económica, tão ou mais proteccionistas que os democratas.
Barack Obama, que tomará posse no próximo dia 20 de Janeiro – ainda que, face ao colapso de Wall Street, Bush tenha demonstrado vontade de que o seu sucessor influencie as decisões políticas antes dessa data – chega à Casa com uma enorme expectativa mundial de mudança. Poderá causar decepções, por dele se esperar demais. Frustrações relativamente ao primeiro negro na Presidência dos EUA, não só no próprio país, como na sociedade internacional em geral e, muito particularmente, no Brasil e na América Latina. Até lá, resta a esperança da mudança e o entusiasmo do «período de graça».
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