Wednesday, June 27, 2007

Portugal e o Brasil no Contexto do Relacionamento UE-Mercosul

PORTUGAL E O BRASIL NO CONTEXTO DO RELACIONAMENTO EU-MERCOSUL


No actual contexto da sociedade internacional global, ganha relevância a reflexão sobre o papel que Portugal e o Brasil têm desempenhado no relacionamento bi-regional entre a União Europeia (EU) e o Mercosul.
Nada mais apropriado, pertinente e actual, em função do agendamento, para o próximo dia 4 de Julho, da Cimeira EU/Brasil, durante a qual o Brasil deverá passar a ter o estatuto de parceiro da EU, puxado por Portugal, num significativo impulso das relações EU-Mercosul.
Quinto país mais populoso do mundo, a maior economia da América Latina e a 8ª no ranking mundial, naturalmente o Brasil desperta interesse nos Estados-membros da EU, que agora pretendem atribuir-lhe o estatuto de parceiro estratégico, como sucede já com os EUA, o Canadá , o Japão e os restantes países emergentes (BRICs): a China, a Índia e a Rússia. Este estatuto garantirá ao Brasil a possibilidade de estabelecer, com a EU, um diálogo ao mais alto nível, o que a EU apenas faz com os parceiros que reconhece como global players. Isto significa que a EU reconhece o Brasil como tal, pela relevância regional e, até, mundial do Brasil – que tem uma presença cada vez mais afirmativa no contexto internacional, está na primeira linha para ingressar no Conselho de Segurança da ONU e tem um importante papel de mediador no relacionamento com os vizinhos –, colocando-o ao lado de outras potências, de modo que o Brasil que, até agora, nas relações com a EU, estava integrado na América Latina, se autonomiza.
Esta realidade é tão mais vincada quanto a EU tem-se vindo a manter sucessivamente mais atenta relativamente ao Brasil, face à necessidade de fazer o contraponto aos Norte-Americanos. Afinal, quer a EU, quer os EUA, olham para o Brasil como o país central da América Latina, de tal forma que, no périplo de George Bush pela região, o Brasil foi o país escolhido para o início. Resulta daqui, evidentemente, uma competição entre a Europa e os EUA motivada pelo Brasil. Competição na qual Portugal poderá vir a ter um papel de suprema importância. Afinal, os dois países vêm, há 500 anos, construindo um diálogo histórico e diplomático, ao mesmo tempo que o Brasil se afirma peça central no seio da Lusofonia, como o único país de Língua Portuguesa no continente americano.
Iniciativa 100% portuguesa, a Cimeira EU/Brasil adquire, neste sentido, uma relevância particular. Embora ainda não esteja definida uma agenda oficial, sabendo-se apenas que o multilateralismo, o reforço das Nações Unidas, as alterações climáticas, a biodiversidade e a energia serão temas em destaque, esta cimeira é a primeira entre a EU e o Brasil e terá lugar apenas 4 dias após Portugal suceder à Alemanha na Presidência rotativa da EU, garantindo que o arranque da mesma trará um novo fôlego à agenda comunitária, designadamente no que às relações EU-Mercosul diz respeito.
Estancadas num impasse que parece inultrapassável, estas relações poderão vir a ser amplamente reforçadas pela acção da Cimeira EU/Brasil de iniciativa portuguesa, tornando-se clara a importância de Portugal e do Brasil para a evolução das mesmas, como tem acontecido desde o início das relações EU-Mercosul na década de 1980.
Na realidade, a EU é o principal parceiro comercial do Brasil, que é o mais importante parceiro latino-americano da EU. Em Março deste ano, as exportações brasileiras para a EU foram de 3,12 milhões de Dólares (num crescimento de 19,59%[1]), enquanto as importações ascenderam a 2,15 milhões de Dólares (significando um crescimento de 33,5%[2]). Evidentemente, este relacionamento poderá ser fortemente potenciado pelo acordo de livre comércio bi-regional que, desde Abril de 2000, está a ser negociado entre a EU e o Mercosul. Portugal é uma parte muito interessada na conclusão deste acordo, já que, segundo dados do Ministério brasileiro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, as exportações brasileiras para Portugal, durante 2006, foram de 1,46 mil milhões de Dólares, enquanto as importações ascenderam a mais de 312 milhões de Dólares, tendência que, mantendo-se nos três primeiros meses deste ano, representa um saldo negativo, para Portugal, de cerca de 1,14 mil milhões de Dólares[3].
Não obstante a importância económica do relacionamento EU-Mercosul, a verdade é que este tem sido tudo menos pacífico. Os elevados subsídios que a EU atribui aos seus agricultores desagrada fortemente o sector agro-pecuário brasileiro que, em contrapartida, tem impedido a entrada, no mercado nacional, de empresas europeias que operam no ramo dos serviços, designadamente nas áreas bancária e das telecomunicações.
Este impasse tem impedido o avanço das negociações entre os dois blocos, inviabilizando o estabelecimento da propalada área de livre comércio bi-regional, esperando-se que a Presidência portuguesa da União, que no ano 2000 lançara as negociações sobre a mesma, dê agora, novamente, um impulso no sentido de permitir que o acordo entre as partes seja efectivamente alcançado.
É inegável que, historicamente, as relações entre a Europa e a América Latina tiveram início através do relacionamento Brasil-Portugal. Foram os Portugueses que descobriram as terras de Vera Cruz e fizeram saber ao Velho Continente a existência delas; e foram depois as expedições portuguesas, seguidas pelas espanholas, que foram desvendando os segredos dessas terras. Foram os Portugueses, em defesa do Brasil, que concluíram, com os Espanhóis, o Tratado de Tordesilhas, em 1494, o primeiro acto jurídico que relaciona a América Latina à Europa. A partir daqui, o relacionamento seria contínuo.
É sabido que, no ideal dos Libertadores, a independência das colónias deveria dar lugar ao nascimento de uma América Hispânica organizada de acordo com o modelo norte-americano e que o bolivarismo foi substituído pelo pan americanismo, tendo lugar a influência crescente dos Estados Unidos da América sobre a América do Sul.
Assim se criou a Organização dos Estados Americanos, a OEA, e, indiscutivelmente, os países da América Latina organizaram as suas políticas externas sempre oscilando entre os EUA e a Europa.
A Europa, por seu lado, durante muito tempo, excluiu os países que hoje formam o Mercosul da lista dos parceiros de significativa importância nas suas relações comerciais globais.
Após a assinatura do Tratado de Roma, em 1957, a então Comunidade Económica Europeia, a CEE, tinha os Estados-membros voltados para o comércio intra-zona. Mais tarde, com a assinatura da Convenção de Lomé, a CEE criava um Sistema Geral de Preferências que a vinculava aos países ACP – África, Caraíbas e Pacífico –, aos quais oferecia vantagens e oportunidades.
O Brasil e os restantes países da região, que desde a criação da CEE pretenderam com esta celebrar, primeiro um acordo de associação e, depois, um acordo de mera cooperação, viram os seus esforços gorados em virtude das preferências comunitárias face aos países ACP e, depois, face à preferência comunitária em celebrar acordos internacionais com interlocutores colectivos.
A CEE impulsionou, então – ou melhor, cobrou dos países latino-americanos – a organização para a designação conjunta de um porta-voz institucional comum que falasse em nome de todos. Assim surgiu o GRULA, Grupo Latino-Americano, formado por embaixadores latino-americanos que actuavam junto da Comissão Europeia.
Os resultados obtidos foram sempre, porém, escassos. Até então, o Brasil só conseguira assinar, com a Comunidade Económica Europeia, um acordo formado por declarações de intenções de cooperação (que datava de 1974). A Argentina assinara um em 1971, o Uruguai em 1973 e o México em 1975. Eram os chamados Acordos de Primeira Geração, através dos quais a CEE orientava a sua acção país a país e apenas com os que tinham potencial económico.
Em 1980, foi assinado um segundo acordo com o Brasil, em 1983 com o Grupo Andino e em 1985 com a América Central, já mais abrangentes, porque incluíam aspectos como a cooperação empresarial e científica. Foram os Acordos de Segunda Geração, assinados no momento em que as adesões de Portugal e Espanha à Comunidade favoreciam as relações da Comunidade com a América Latina.
Com a insistência da CEE no diálogo colectivizado e institucionalizado com a América Latina, e em virtude dos fracassos do GRULA, a CEE aceitou dialogar com o recém-criado Grupo do Rio – países da América do Sul, México e Panamá, que viria a retirar-se. Deste diálogo, resultou a Declaração de Roma (1990), que criou um mecanismo formal de consulta entre os chanceleres do Grupo do Rio e da CEE.
A criação do Mercosul, em 1991, deu mais um passo no relacionamento EU-Mercosul, já que conferiu, aos países do Mercosul, benefícios no plano da cooperação regional, que abriu o acesso desses países aos programas tecnológicos comunitários e ao Banco Europeu de Investimentos.
Ainda assim, o sistema preferencial da Comunidade continuava a beneficiar os países ACP, os países da Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA) – com os quais a União Europeia celebrara uma zona de preferências –, os países da Europa Central e Oriental, depois da queda do muro de Berlim, e os países do Mediterrâneo – cujos produtos concorrem directamente com os dos países do Mercosul.
Simultaneamente, o anúncio da criação, entre os EUA, o Canadá e o México, do NAFTA (North Atlantic Free Trade Área), no início dos anos 1990, levou os países da América Latina, em especial o Brasil, a impulsionar o relacionamento com a EU, como forma de reagir à criação do NAFTA, que viria alterar o quadro geopolítico e geoestratégico do continente, interferindo com os equilíbrios existentes.
Na realidade, o NAFTA convertia-se, para muitos países latino-americanos, em verdadeiro canto da sereia, procurando o Brasil contrapor, a esse efeito de atracção, a oferta de uma integração regional ampliada para criar, a esses países, alternativas às pressões externas que desejavam vê-los submetidos a planos liberais ortodoxos de ajuste. Assim, o Brasil tornou o objectivo do Mercosul mais ousado, ao procurar convertê-lo numa área dotada de iniciativa própria, mantendo a Argentina afastada dos EUA e, logo em 1993, lançou a proposta de criação de uma Área de Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA). Por outro lado, o Brasil estabeleceu, com os países sul-americanos e africanos, a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZoPaCAS), numa estratégia de círculos concêntricos a partir do Mercosul, e dinamizou as negociações com a EU.
Aqui, assim como na nova tendência de globalização, que a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) disciplina e incentiva, integram-se o impulso dado às negociações EU-Mercosul e os Acordos de Terceira Geração assinados entre aquela e os países da América Latina. Em 1990 com a Argentina e com o Chile, no ano seguinte com o Uruguai e o México, em 1992 com o Brasil, sob a presidência portuguesa da UE e em 1993 com o Paraguai e o conjunto dos países da América Central; acordos que passam a incluir as cláusulas democrática e evolutiva.
Data também desta época (1 de Maio de 1992) a assinatura do Acordo de Cooperação Interinstitucional entre a Comissão Europeia e o Conselho Mercosul, destinado a promover a transferência das experiências comunitárias em matéria de integração, e que levou à criação do Centro de Formação para a Integração Regional (1993).
Neste contexto mais favorável à aproximação entre os dois blocos, o Conselho Europeu de Corfu, de Junho de 1994, discutiu a criação de uma zona de comércio livre entre os dois, criando toda uma atmosfera favorável à celebração dos Acordos de Quarta Geração, o que culminou em Dezembro de 1995, com a assinatura do mais importante passo em direcção à integração entre o Mercosul e a União Europeia. A 15 de Dezembro de 1995, a União Europeia e os seus Estados-membros, por um lado, e o Mercosul e os seus Estados-membros, por outro, assinaram um acordo-quadro de cooperação inter-regional que prevê a liberalização gradual das trocas comerciais entre os dois e tem contextualizado as relações inter-regionais. A partir daqui, as negociações visando a integração do Mercosul e da União Europeia intensificaram-se, tendo lugar diversas reuniões e cimeiras entre ambas as partes.
O proteccionismo agrícola europeu, impedindo a entrada de produtos latino-americanos no mercado europeu criaria, todavia, um impasse às negociações, agravado com a represália do fechamento dos mercados públicos às empresas europeias por parte das Autoridades dos Estados latino-americanos.
É verdade que, hoje, a política externa brasileira aponta para a superação dos dilemas brasileiros através do vector essencial dessa política, voltada para a América do Sul. A América do Sul surge como o espaço geopolítico prioritário do projecto nacional brasileiro e, dentro daquele, as relações com a Argentina, na construção de um espaço regional integrado no sub-continente. Neste sentido, preservar, aprofundar e alargar o Mercosul surge como o passo essencial a ser concretizado; contexto no qual Argentina, Venezuela, Colômbia e, por último, Chile, surgem como as prioridades, ainda que o Brasil acrescente, a esta vertente sul-americanista dominante, preocupações de outra ordem, que lhe permitam ampliar a esfera de ambições internacionais, interesses mais abrangentes e responsabilidades regionais (ou mesmo mundiais), como se exige de uma potência. Assume relevância, neste sentido, a defesa da soberania nacional sobre a Amazónia, as relações com as potências regionais da América Latina, a participação nas missões de paz das Nações Unidas, liderando a missão enviada ao Haiti em Junho de 2004, com a África, com os países de expressão oficial portuguesa, no seio da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, entre outros.Estes elementos constituem a constante da política externa brasileira, que Lula tem mantido. Apostado em substituir o modelo de inserção limitada que predominou na era Cardoso, o Brasil de Lula segue mantendo, porém, os dois elementos que permitem caracterizar a política externa brasileira: o que dá continuidade, regularidade e credibilidade à política externa brasileira, isto é, o desejo de reconhecimento internacional do Brasil como potência média activamente actuante no sistema internacional; e o elemento que resulta da combinação entre o pragmatismo e a flexibilidade, que reúne, à necessidade de alcançar os objectivos, a realização de ajustes.É verdade que o Brasil, se aspira a um reconhecimento como potência regional e como potência média mundial, explorando a condição geográfica de país-continente, terá que proceder à assunção de posições relativamente aos assuntos que hoje recheiam a agenda mundial. Isto significa que a dimensão comercial – que tem sido a mais explorada nos modos brasileiros de inserção internacional – terá de ser temperada por um matiz amplamente político, do qual fazem parte as opções do país relativamente ao destino do Mercosul e, em particular, à revisão das relações com a Argentina e, sem dúvida, a subscrição do acordo com a EU, por forma a assumir plenamente a sua função de global player. Destes elementos dependerá, certamente, a manutenção da autonomia do Brasil no contexto da globalização, como forma indispensável para a estruturação de um projecto nacional que, ultrapassando o modelo liberal de inserção internacional, lhe confira um verdadeiro Estado Logístico, o qual recupera a autonomia decisória, aceita a interdependência e age internamente segundo os parâmetros desenvolvimentistas, apenas com a nuance de transferir, para a sociedade, as responsabilidades do Estado empresário. Um modelo que, desta forma, permita ao País constituir-se em núcleo de um dos pólos do sistema internacional multipolar, surgindo, assim, como amplamente fundamental, evitar-se a concretização da Área de Livre Comércio das Américas, única forma de resguardar a autonomia do Brasil e da América do Sul e a posição do país como global trader, crescentemente assumido como global player.
É evidente que o que se pretende alcançar hoje – um acordo de associação entre a EU e o Mercosul, a criação de uma zona de comércio livre bi-regional –, no contexto do acordo-quadro de cooperação inter-regional de 1995, é algo de inédito e que as próprias negociações, por serem entre dois blocos regionais de integração, são também inéditas, apesar de se encontrarem paradas.
Não obstante, é igualmente evidente que a União Europeia tem interesse em terminar as negociações o mais rápido possível, em função do grande interesse económico que nutre pela região. Por seu lado, também o Mercosul tem interesse em concluir rapidamente as negociações, até para dar um sinal, para dentro da América Latina, quando um país associado do Mercosul (o Chile) já assinou um acordo de livre comércio com os Estados Unidos. O mesmo sinal serve também para a Comunidade Andina, já que parte dela (Equador, Colômbia, Bolívia e Peru) está também a articular um acordo de livre comércio com os Estados Unidos. Sabendo-se das ligações do Paraguai e do Uruguai aos Estados Unidos – e até mesmo de alguns sectores do Partido Peronista argentino –, possível se torna concluir pelo interesse do Brasil em encerrar as negociações e encerrá-las com acordo.
Até lá, todavia, resta esperar pelo entendimento negocial das partes, na busca daquilo que ambas subscreverão, por considerarem, senão o melhor para si, pelo menos o que de melhor pode ser extraído das conversações. Simultaneamente, a resolução dos problemas postos pelas migrações de Brasileiros em direcção a Portugal, a valorização do património comum destes dois povos, de mais de 500 anos, assente na preservação dos valores imutáveis e na modernização dos laços que os unem constituem, certamente, para o Brasil e para Portugal, garantia de sucessos múltiplos no relacionamento luso-brasileiro, matizando o realismo e o pragmatismo da política externa brasileira com o fervor místico que a Língua comum une e alimenta e sublima no intercâmbio cultural.



[1] Cfr. SILVARES, Mónica; “Portugal Poderá Fechar Acordo EU-Mercosul”, Diário Económico, Secção Política, Quarta-Feira, 9 de Maio de 2007, pp.43.
[2] Cfr. Idem, ibidem.
[3] Desequilíbrio em muito explicado pelo peso dos combustíveis na Balança Comercial portuguesa, já que os principais produtos importados por Portugal do Brasil foram, nesse período, petróleo, soja, milho, ligas de alumínio e açúcar de cana, enquanto o Brasil comprou, de Portugal, especialmente azeite, bacalhau e vinho. Cfr. Idem, ibidem.

A Diplomacia Económica da Política Externa Brasileira

A DIPLOMACIA ECONÓMICA NA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA


A política externa brasileira é, reconhecidamente, um caso paradigmático de Diplomacia Económica. Ela está amplamente voltada, por tradição, para a dimensão comercial, que é, de facto, a mais explorada nos modos brasileiros de inserção internacional, apoiada por uma diplomacia muito bem preparada pelo Instituto Rio Branco, que assim compõe os quadros do Palácio do Itamaraty. Sendo certo que a política do Itamaraty mantém a tradição do pensamento realista, que contém elementos cepalinos (relação centro-periferia) e elementos do pensamento nacionalista do Instituto Superior de Estudos Brasileiros de Hélio Jaguaribe, que consideram a política norte-americana como uma restrição à promoção dos interesses brasileiros na região.
Na verdade, o Brasil é, dos países da região, aquele cuja política externa maior continuidade historicamente tem apresentado, servindo esta, desde o rompimento com Portugal, em 1822, como instrumento através do qual os governos manejam os destinos do país, mantendo a paz ou fazendo a guerra, administrando os conflitos ou a cooperação, proporcionando o crescimento e o desenvolvimento económicos ou o atraso e a manutenção das estruturas de dependência.
É evidente que sendo o Brasil, pelo peso geo-económico e demográfico, pela dimensão do mercado interno, pela avaliação dos indicadores económicos e políticos, bem como da imensidade dos problemas e desafios, e bem assim dos atributos tradicionais do poder que vai exercendo, o actor de maior relevância relativa da região, a sua política externa ganha importância determinante.
Assim, hegemónico na região, o Brasil, desde a época das independências até cerca dos anos 1930, inseriu-se internacionalmente de forma semelhante aos vizinhos latino-americanos, através do modelo liberal-conservador de trocas de produtos primários por produtos manufacturados dos países industrializados, produzindo e consolidando estruturas hegemónicas de dominação e dependência, sobre esses países, por parte da Grã-Bretanha, numa primeira fase e dos Estados Unidos (EUA), numa segunda.
Apenas a partir do fim da Guerra do Paraguai (1964-1870), a Argentina, então estruturada como Estado Nacional Soberano, viria rivalizar com o Brasil a hegemonia na região, o que motivaria uma política externa brasileira aguerrida, fomentada pelas pretensões norte-americanas de, segundo a doutrina do Big Stick de Roosevelt, que Truman não tardaria a adaptar para a do containment, estender à região a influência que desejaria ver exercer-se sobre o todo do continente americano. O Brasil posicionar-se-ia, no equilíbrio de divergências da época, procurando salvaguardar os interesses nacionais de hegemonia sobre a região e, sobretudo, acautelar a internacionalização dos rios Paraná e Paraguai – vitais para o contacto regular do Mato Grosso com o resto do território brasileiro, numa perspectiva que, aos interesses políticos, reunia fortemente os económicos.
A revolução de Setembro de 1930, que colocou na liderança do Brasil Getúlio Vargas (1930-1945), daria início ao movimento de mudança do modelo brasileiro de inserção internacional, acompanhado por idêntico trajecto dos vizinhos, já que tinham início, ainda que incipientes, os processos de industrialização que a Guerra do Chaco (1932-1935), em torno do petróleo, viria fomentar. A partir daqui, a orientação da política externa iniciada pelo Barão do Rio Branco, que privilegiava os interesses económicos, ganharia amplo relevo.
O Segundo Conflito Mundial desempenharia papel central no posicionamento internacional do Brasil segundo os parâmetros da Diplomacia Económica. Ao mesmo tempo que Vargas vendia, a preço elevado, o apoio brasileiro aos Aliados, aumentando a margem negocial da América Latina como um todo, constrangida a adoptar semelhante comportamento, o modelo desenvolvimentista iniciava-se no Brasil, bem como nos restantes países da região, desenvolvido com Eurico Gaspar Dutra (1946-1951) e, sobretudo, com Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-1961), que através da Operação Pan-Americana procuraria congregar toda a América Latina, constrangendo a potência norte-americana a prestar-lhe maior atenção. Seguindo uma linha semelhante, Jânio Quadros (1961) depressa optaria pela política externa independente, procurando provocar uma transformação qualitativa do comportamento da América Latina face às negociações internacionais em geral e com os EUA em particular, de modo a retirar vantagens do ordenamento bipolar do sistema internacional.
Não tardaria, porém, que Jânio Quadros, e depois João Goulart (1961-1964), se vissem constrangidos a retirar-se do poder pela acção do golpe que, em 1964, colocaria em seu lugar Castello Branco (1964-1967), que fundaria, na doutrina das fronteiras ideológicas, o alinhamento do Brasil aos Estados Unidos, colocando um ponto final na política externa independente.
A partir daqui, o desenvolvimento e o pragmatismo guiariam a política externa brasileira, marca característica de todo o regime militar, que duraria até 1985. Desde esta inflexão, no sentido do desenvolvimento e do pragmatismo, intensificaram-se os contactos do Brasil com o mundo, ainda que o pragmatismo não permitisse eleger áreas prioritárias, antes aceitá-las por aquilo que pudessem render de vantagens ao nível do domínio económico, do comércio externo, dos serviços, dos fluxos de capitais, da ciência e da tecnologia.
Assim, embora importantes, as relações com os EUA foram perdendo peso relativo, especialmente por ter o Brasil sabido encontrar novos parceiros em condições de oferecer recursos e vantagens, tecnologia e mercados, quer no Norte, quer no Sul. O Brasil passava, desta forma, e pela primeira vez na história da sua política externa, das intenções à efectiva universalização de relacionamentos, encontrando, na Europa – Ocidental e Oriental – e no Japão, possibilidades novas que passariam a ser exploradas, numa estratégia de inserção internacional que reservava ao Sul funções complementares às do Norte, determinando, consequentemente, uma aproximação à América Latina, dando forma a inúmeros projectos de desenvolvimento bilaterais.
Ao mesmo tempo, o Brasil iniciava as tentativas de penetração na África e no Médio Oriente, enquanto acercava-se também da Ásia, assumindo um relacionamento novo com a frente dos povos atrasados, buscando superar dependências e reforçar a autonomia dos sectores energético, do comércio externo e das tecnologias avançadas.
A subida ao poder, nos EUA, de Ronald Reagen (1980-1988) viria bloquear esta trajectória. Convencido da necessidade de recuperar a hegemonia norte-americana, Reagan colocaria um ponto final no diálogo N-S, na proposta da Nova Ordem Económica Internacional e em toda e qualquer tentativa de cooperação N-S.
O modelo da política externa vinculada ao desenvolvimentismo evoluía, assim, para uma fase de crise e de contradições, passando o Brasil – como de resto a maioria dos PVDs – a sofrer os efeitos perversos do sistema internacional, no qual passavam a ser sujeitos passivos.
Em razão deste novo condicionalismo internacional, o Brasil estabeleceu novas parcerias com o Iraque, o Paquistão, a Associação de Países do Sudeste Asiático, a África do Norte, o Próximo Oriente e a URSS e reforçou os vínculos com o Sul, sobretudo com a China, e mais ainda com a América Latina.
Em 1989-1990, todavia, o mundo abalaria perante as transformações ocorridas na Europa de Leste.
Diante do novo cenário internacional, a política externa brasileira parecia perdida, incapaz de manter a racionalidade e a continuidade que, durante 60 anos, lhe havia impresso, na busca incessante pelo desenvolvimento nacional. O Itamaraty não reagiu com facilidade ao novo contexto internacional. O processo de impeachment de Collor de Mello (1990-1992), em 1992, e o hiato do governo de Itamar Franco (1992-1995) até 1994 contribuiram para a indefinição.
Apenas a partir de 1995, com Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e a continuidade da gestão do ministro dos Negócios Estrangeiros Luiz Felipe Lampreia (1995-2000) o Brasil pareceu capaz de reagir, sob os postulados neoliberais que, vindos de Washington, dominavam a intelectualidade governamental brasileira desde Collor. Encerrando o ciclo desenvolvimentista da política externa em 1989, as novas orientações externas, moldando o Estado Normal, apareciam confusas e contraditórias, ainda que plenamente dominadas pelos interesses económicos.
Impulsionado pelo anúncio, em 1990, pelo presidente George Bush, da Enterprise For The Americas Initiative, cujo objectivo era a criação de uma zona de comércio livre do Alaska à Terra do Fogo; pelo anúncio da criação do NAFTA e pela resolução do contencioso, com a Argentina, a propósito do aproveitamento hidroeléctrico dos rios da Bacia do Prata, o Brasil gerava uma visão pragmática favorável à integração regional, que viria a culminar com a assinatura, em Março de 1991, do Tratado de Assunção, entre o Brasil, a Argentina, o Uruguai e o Paraguai, dando origem ao Mercosul.
Dando prosseguimento à política económica de Fernando Henrique, o governo Lula (2003-…) não só não rompeu com a orientação liberal do segundo mandato de Cardoso, como inclusive, a aprofundou. O primeiro governo Lula (2003-2007) exerceu um ajuste fiscal ainda mais forte que o realizado sob a era Cardoso, aplicando uma política monetária ainda mais rígida e retomou o programa de reformas de carácter amplamente liberal, que a Administração Fernando Henrique havia suspenso por falta de condições políticas para levar a efeito. Finalmente, embora a retórica da primeira campanha eleitoral do Partido dos Trabalhadores (PT) tivesse assentado sobre as políticas sociais e desenvolvimentistas, prometendo transformá-las no centro das preocupações do novo governo, consideradas as insuficiências do anterior, a verdade é que tal não ocorreu e tais políticas não mereceram, da Administração Lula, uma atenção eficiente e firme, embora neste segundo mandato se prometa o contrário. Externamente, a orientação do governo Lula centra-se amplamente, ainda que não exclusivamente, sobre o reforço do Mercosul e das relações com a Argentina, numa lógica de perfeita continuidade relativamente à tradicional Diplomacia Económica.
Na verdade, em torno do novo governo brasileiro, as expectativas apontam para a superação dos dilemas brasileiros através do vector essencial da política externa voltada para a América do Sul, que surge como o espaço geopolítico prioritário do projecto nacional brasileiro e, dentro deste, as relações com a Argentina prometem melhoras significativas. Afirma-se, mesmo, que as relações do Brasil com os vizinhos sul-americanos constituem o principal objectivo para a diplomacia brasileira nos anos que se aproximam, especialmente a construção de um espaço regional integrado no sub-continente. Neste sentido, preservar, aprofundar e alargar o Mercosul surgem como os primeiros passos essenciais a serem concretizados; contexto no qual Argentina, Venezuela, Colômbia e, por último, Chile, surgem como as prioridades.
Estes elementos constituem a constante da política externa brasileira, que Lula tem mantido. Apostado em substituir o modelo de inserção limitada que predominou na era Cardoso, o Brasil de Lula segue mantendo, porém, os dois elementos que permitem caracterizar a política externa brasileira: o que dá continuidade, regularidade e credibilidade à política externa brasileira, isto é, o desejo de reconhecimento internacional do Brasil como potência média activamente actuante no sistema internacional; e o elemento que resulta da combinação entre o pragmatismo e a flexibilidade, que reúne, à necessidade de alcançar os objectivos, a realização de ajustes.
De facto, o Brasil, se aspira a um reconhecimento como potência regional e como potência média mundial, explorando a condição geográfica de país-continente, terá que proceder à assunção de posições relativamente aos assuntos que hoje recheiam a agenda mundial. Isto significa que a dimensão comercial – que tem sido a mais explorada nos modos brasileiros de inserção internacional – terá de ser temperada por um matiz amplamente político, do qual fazem parte as opções do país relativamente ao destino do Mercosul e, em particular, à revisão das relações com a Argentina e, ainda, preocupações de outra ordem, que lhe permitam ampliar a esfera de ambições internacionais, interesses mais abrangentes e responsabilidades regionais (ou mesmo mundiais), como se exige de uma potência. Assumem relevância, neste sentido, a defesa da soberania nacional sobre a Amazónia, as relações com as potências regionais da América Latina, a participação nas missões de paz das Nações Unidas, liderando a missão enviada ao Haiti em Junho de 2004, com a África, com os países de expressão oficial portuguesa, no seio da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, entre outros.
Destes elementos dependerá, certamente, a manutenção da autonomia do Brasil no contexto da globalização, como forma indispensável para a estruturação de um projecto nacional que, ultrapassando o modelo liberal de inserção internacional, lhe confira um verdadeiro Estado Logístico, o qual recupera a autonomia decisória, aceita a interdependência e age internamente segundo os parâmetros desenvolvimentistas, apenas com a nuance de transferir, para a sociedade, as responsabilidades do Estado empresário. Um modelo que, desta forma, permita ao País constituir-se em núcleo de um dos pólos do sistema internacional multipolar, surgindo, assim, como amplamente fundamental, evitar-se a concretização da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA).
A defesa da América do Sul, por oposição às Américas Central e do Norte torna-se vigorosa. E a valorização do conceito de América do Sul, em lugar do de América Latina, recorrente, individualizando-se os dois projectos que existem para as Américas: a expansão radical do NAFTA sob hegemonia norte-americana; e a América do Sul, da Colômbia à Terra do Fogo, integrada num espaço económico resultante de um acordo de livre comércio entre o Mercosul e a Comunidade Andina. Na verdade, a percepção destas duas Américas modelou desde o tempo do Império a política externa do Brasil, que resguardava a América do Sul como sua esfera de influência, e evitava qualquer envolvimento nas Américas do Norte, Central e do Caribe, por constituírem a esfera de influência dos EUA.