Wednesday, June 27, 2007

Portugal e o Brasil no Contexto do Relacionamento UE-Mercosul

PORTUGAL E O BRASIL NO CONTEXTO DO RELACIONAMENTO EU-MERCOSUL


No actual contexto da sociedade internacional global, ganha relevância a reflexão sobre o papel que Portugal e o Brasil têm desempenhado no relacionamento bi-regional entre a União Europeia (EU) e o Mercosul.
Nada mais apropriado, pertinente e actual, em função do agendamento, para o próximo dia 4 de Julho, da Cimeira EU/Brasil, durante a qual o Brasil deverá passar a ter o estatuto de parceiro da EU, puxado por Portugal, num significativo impulso das relações EU-Mercosul.
Quinto país mais populoso do mundo, a maior economia da América Latina e a 8ª no ranking mundial, naturalmente o Brasil desperta interesse nos Estados-membros da EU, que agora pretendem atribuir-lhe o estatuto de parceiro estratégico, como sucede já com os EUA, o Canadá , o Japão e os restantes países emergentes (BRICs): a China, a Índia e a Rússia. Este estatuto garantirá ao Brasil a possibilidade de estabelecer, com a EU, um diálogo ao mais alto nível, o que a EU apenas faz com os parceiros que reconhece como global players. Isto significa que a EU reconhece o Brasil como tal, pela relevância regional e, até, mundial do Brasil – que tem uma presença cada vez mais afirmativa no contexto internacional, está na primeira linha para ingressar no Conselho de Segurança da ONU e tem um importante papel de mediador no relacionamento com os vizinhos –, colocando-o ao lado de outras potências, de modo que o Brasil que, até agora, nas relações com a EU, estava integrado na América Latina, se autonomiza.
Esta realidade é tão mais vincada quanto a EU tem-se vindo a manter sucessivamente mais atenta relativamente ao Brasil, face à necessidade de fazer o contraponto aos Norte-Americanos. Afinal, quer a EU, quer os EUA, olham para o Brasil como o país central da América Latina, de tal forma que, no périplo de George Bush pela região, o Brasil foi o país escolhido para o início. Resulta daqui, evidentemente, uma competição entre a Europa e os EUA motivada pelo Brasil. Competição na qual Portugal poderá vir a ter um papel de suprema importância. Afinal, os dois países vêm, há 500 anos, construindo um diálogo histórico e diplomático, ao mesmo tempo que o Brasil se afirma peça central no seio da Lusofonia, como o único país de Língua Portuguesa no continente americano.
Iniciativa 100% portuguesa, a Cimeira EU/Brasil adquire, neste sentido, uma relevância particular. Embora ainda não esteja definida uma agenda oficial, sabendo-se apenas que o multilateralismo, o reforço das Nações Unidas, as alterações climáticas, a biodiversidade e a energia serão temas em destaque, esta cimeira é a primeira entre a EU e o Brasil e terá lugar apenas 4 dias após Portugal suceder à Alemanha na Presidência rotativa da EU, garantindo que o arranque da mesma trará um novo fôlego à agenda comunitária, designadamente no que às relações EU-Mercosul diz respeito.
Estancadas num impasse que parece inultrapassável, estas relações poderão vir a ser amplamente reforçadas pela acção da Cimeira EU/Brasil de iniciativa portuguesa, tornando-se clara a importância de Portugal e do Brasil para a evolução das mesmas, como tem acontecido desde o início das relações EU-Mercosul na década de 1980.
Na realidade, a EU é o principal parceiro comercial do Brasil, que é o mais importante parceiro latino-americano da EU. Em Março deste ano, as exportações brasileiras para a EU foram de 3,12 milhões de Dólares (num crescimento de 19,59%[1]), enquanto as importações ascenderam a 2,15 milhões de Dólares (significando um crescimento de 33,5%[2]). Evidentemente, este relacionamento poderá ser fortemente potenciado pelo acordo de livre comércio bi-regional que, desde Abril de 2000, está a ser negociado entre a EU e o Mercosul. Portugal é uma parte muito interessada na conclusão deste acordo, já que, segundo dados do Ministério brasileiro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, as exportações brasileiras para Portugal, durante 2006, foram de 1,46 mil milhões de Dólares, enquanto as importações ascenderam a mais de 312 milhões de Dólares, tendência que, mantendo-se nos três primeiros meses deste ano, representa um saldo negativo, para Portugal, de cerca de 1,14 mil milhões de Dólares[3].
Não obstante a importância económica do relacionamento EU-Mercosul, a verdade é que este tem sido tudo menos pacífico. Os elevados subsídios que a EU atribui aos seus agricultores desagrada fortemente o sector agro-pecuário brasileiro que, em contrapartida, tem impedido a entrada, no mercado nacional, de empresas europeias que operam no ramo dos serviços, designadamente nas áreas bancária e das telecomunicações.
Este impasse tem impedido o avanço das negociações entre os dois blocos, inviabilizando o estabelecimento da propalada área de livre comércio bi-regional, esperando-se que a Presidência portuguesa da União, que no ano 2000 lançara as negociações sobre a mesma, dê agora, novamente, um impulso no sentido de permitir que o acordo entre as partes seja efectivamente alcançado.
É inegável que, historicamente, as relações entre a Europa e a América Latina tiveram início através do relacionamento Brasil-Portugal. Foram os Portugueses que descobriram as terras de Vera Cruz e fizeram saber ao Velho Continente a existência delas; e foram depois as expedições portuguesas, seguidas pelas espanholas, que foram desvendando os segredos dessas terras. Foram os Portugueses, em defesa do Brasil, que concluíram, com os Espanhóis, o Tratado de Tordesilhas, em 1494, o primeiro acto jurídico que relaciona a América Latina à Europa. A partir daqui, o relacionamento seria contínuo.
É sabido que, no ideal dos Libertadores, a independência das colónias deveria dar lugar ao nascimento de uma América Hispânica organizada de acordo com o modelo norte-americano e que o bolivarismo foi substituído pelo pan americanismo, tendo lugar a influência crescente dos Estados Unidos da América sobre a América do Sul.
Assim se criou a Organização dos Estados Americanos, a OEA, e, indiscutivelmente, os países da América Latina organizaram as suas políticas externas sempre oscilando entre os EUA e a Europa.
A Europa, por seu lado, durante muito tempo, excluiu os países que hoje formam o Mercosul da lista dos parceiros de significativa importância nas suas relações comerciais globais.
Após a assinatura do Tratado de Roma, em 1957, a então Comunidade Económica Europeia, a CEE, tinha os Estados-membros voltados para o comércio intra-zona. Mais tarde, com a assinatura da Convenção de Lomé, a CEE criava um Sistema Geral de Preferências que a vinculava aos países ACP – África, Caraíbas e Pacífico –, aos quais oferecia vantagens e oportunidades.
O Brasil e os restantes países da região, que desde a criação da CEE pretenderam com esta celebrar, primeiro um acordo de associação e, depois, um acordo de mera cooperação, viram os seus esforços gorados em virtude das preferências comunitárias face aos países ACP e, depois, face à preferência comunitária em celebrar acordos internacionais com interlocutores colectivos.
A CEE impulsionou, então – ou melhor, cobrou dos países latino-americanos – a organização para a designação conjunta de um porta-voz institucional comum que falasse em nome de todos. Assim surgiu o GRULA, Grupo Latino-Americano, formado por embaixadores latino-americanos que actuavam junto da Comissão Europeia.
Os resultados obtidos foram sempre, porém, escassos. Até então, o Brasil só conseguira assinar, com a Comunidade Económica Europeia, um acordo formado por declarações de intenções de cooperação (que datava de 1974). A Argentina assinara um em 1971, o Uruguai em 1973 e o México em 1975. Eram os chamados Acordos de Primeira Geração, através dos quais a CEE orientava a sua acção país a país e apenas com os que tinham potencial económico.
Em 1980, foi assinado um segundo acordo com o Brasil, em 1983 com o Grupo Andino e em 1985 com a América Central, já mais abrangentes, porque incluíam aspectos como a cooperação empresarial e científica. Foram os Acordos de Segunda Geração, assinados no momento em que as adesões de Portugal e Espanha à Comunidade favoreciam as relações da Comunidade com a América Latina.
Com a insistência da CEE no diálogo colectivizado e institucionalizado com a América Latina, e em virtude dos fracassos do GRULA, a CEE aceitou dialogar com o recém-criado Grupo do Rio – países da América do Sul, México e Panamá, que viria a retirar-se. Deste diálogo, resultou a Declaração de Roma (1990), que criou um mecanismo formal de consulta entre os chanceleres do Grupo do Rio e da CEE.
A criação do Mercosul, em 1991, deu mais um passo no relacionamento EU-Mercosul, já que conferiu, aos países do Mercosul, benefícios no plano da cooperação regional, que abriu o acesso desses países aos programas tecnológicos comunitários e ao Banco Europeu de Investimentos.
Ainda assim, o sistema preferencial da Comunidade continuava a beneficiar os países ACP, os países da Associação Europeia de Livre Comércio (EFTA) – com os quais a União Europeia celebrara uma zona de preferências –, os países da Europa Central e Oriental, depois da queda do muro de Berlim, e os países do Mediterrâneo – cujos produtos concorrem directamente com os dos países do Mercosul.
Simultaneamente, o anúncio da criação, entre os EUA, o Canadá e o México, do NAFTA (North Atlantic Free Trade Área), no início dos anos 1990, levou os países da América Latina, em especial o Brasil, a impulsionar o relacionamento com a EU, como forma de reagir à criação do NAFTA, que viria alterar o quadro geopolítico e geoestratégico do continente, interferindo com os equilíbrios existentes.
Na realidade, o NAFTA convertia-se, para muitos países latino-americanos, em verdadeiro canto da sereia, procurando o Brasil contrapor, a esse efeito de atracção, a oferta de uma integração regional ampliada para criar, a esses países, alternativas às pressões externas que desejavam vê-los submetidos a planos liberais ortodoxos de ajuste. Assim, o Brasil tornou o objectivo do Mercosul mais ousado, ao procurar convertê-lo numa área dotada de iniciativa própria, mantendo a Argentina afastada dos EUA e, logo em 1993, lançou a proposta de criação de uma Área de Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA). Por outro lado, o Brasil estabeleceu, com os países sul-americanos e africanos, a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZoPaCAS), numa estratégia de círculos concêntricos a partir do Mercosul, e dinamizou as negociações com a EU.
Aqui, assim como na nova tendência de globalização, que a criação da Organização Mundial do Comércio (OMC) disciplina e incentiva, integram-se o impulso dado às negociações EU-Mercosul e os Acordos de Terceira Geração assinados entre aquela e os países da América Latina. Em 1990 com a Argentina e com o Chile, no ano seguinte com o Uruguai e o México, em 1992 com o Brasil, sob a presidência portuguesa da UE e em 1993 com o Paraguai e o conjunto dos países da América Central; acordos que passam a incluir as cláusulas democrática e evolutiva.
Data também desta época (1 de Maio de 1992) a assinatura do Acordo de Cooperação Interinstitucional entre a Comissão Europeia e o Conselho Mercosul, destinado a promover a transferência das experiências comunitárias em matéria de integração, e que levou à criação do Centro de Formação para a Integração Regional (1993).
Neste contexto mais favorável à aproximação entre os dois blocos, o Conselho Europeu de Corfu, de Junho de 1994, discutiu a criação de uma zona de comércio livre entre os dois, criando toda uma atmosfera favorável à celebração dos Acordos de Quarta Geração, o que culminou em Dezembro de 1995, com a assinatura do mais importante passo em direcção à integração entre o Mercosul e a União Europeia. A 15 de Dezembro de 1995, a União Europeia e os seus Estados-membros, por um lado, e o Mercosul e os seus Estados-membros, por outro, assinaram um acordo-quadro de cooperação inter-regional que prevê a liberalização gradual das trocas comerciais entre os dois e tem contextualizado as relações inter-regionais. A partir daqui, as negociações visando a integração do Mercosul e da União Europeia intensificaram-se, tendo lugar diversas reuniões e cimeiras entre ambas as partes.
O proteccionismo agrícola europeu, impedindo a entrada de produtos latino-americanos no mercado europeu criaria, todavia, um impasse às negociações, agravado com a represália do fechamento dos mercados públicos às empresas europeias por parte das Autoridades dos Estados latino-americanos.
É verdade que, hoje, a política externa brasileira aponta para a superação dos dilemas brasileiros através do vector essencial dessa política, voltada para a América do Sul. A América do Sul surge como o espaço geopolítico prioritário do projecto nacional brasileiro e, dentro daquele, as relações com a Argentina, na construção de um espaço regional integrado no sub-continente. Neste sentido, preservar, aprofundar e alargar o Mercosul surge como o passo essencial a ser concretizado; contexto no qual Argentina, Venezuela, Colômbia e, por último, Chile, surgem como as prioridades, ainda que o Brasil acrescente, a esta vertente sul-americanista dominante, preocupações de outra ordem, que lhe permitam ampliar a esfera de ambições internacionais, interesses mais abrangentes e responsabilidades regionais (ou mesmo mundiais), como se exige de uma potência. Assume relevância, neste sentido, a defesa da soberania nacional sobre a Amazónia, as relações com as potências regionais da América Latina, a participação nas missões de paz das Nações Unidas, liderando a missão enviada ao Haiti em Junho de 2004, com a África, com os países de expressão oficial portuguesa, no seio da CPLP – Comunidade dos Países de Língua Portuguesa, entre outros.Estes elementos constituem a constante da política externa brasileira, que Lula tem mantido. Apostado em substituir o modelo de inserção limitada que predominou na era Cardoso, o Brasil de Lula segue mantendo, porém, os dois elementos que permitem caracterizar a política externa brasileira: o que dá continuidade, regularidade e credibilidade à política externa brasileira, isto é, o desejo de reconhecimento internacional do Brasil como potência média activamente actuante no sistema internacional; e o elemento que resulta da combinação entre o pragmatismo e a flexibilidade, que reúne, à necessidade de alcançar os objectivos, a realização de ajustes.É verdade que o Brasil, se aspira a um reconhecimento como potência regional e como potência média mundial, explorando a condição geográfica de país-continente, terá que proceder à assunção de posições relativamente aos assuntos que hoje recheiam a agenda mundial. Isto significa que a dimensão comercial – que tem sido a mais explorada nos modos brasileiros de inserção internacional – terá de ser temperada por um matiz amplamente político, do qual fazem parte as opções do país relativamente ao destino do Mercosul e, em particular, à revisão das relações com a Argentina e, sem dúvida, a subscrição do acordo com a EU, por forma a assumir plenamente a sua função de global player. Destes elementos dependerá, certamente, a manutenção da autonomia do Brasil no contexto da globalização, como forma indispensável para a estruturação de um projecto nacional que, ultrapassando o modelo liberal de inserção internacional, lhe confira um verdadeiro Estado Logístico, o qual recupera a autonomia decisória, aceita a interdependência e age internamente segundo os parâmetros desenvolvimentistas, apenas com a nuance de transferir, para a sociedade, as responsabilidades do Estado empresário. Um modelo que, desta forma, permita ao País constituir-se em núcleo de um dos pólos do sistema internacional multipolar, surgindo, assim, como amplamente fundamental, evitar-se a concretização da Área de Livre Comércio das Américas, única forma de resguardar a autonomia do Brasil e da América do Sul e a posição do país como global trader, crescentemente assumido como global player.
É evidente que o que se pretende alcançar hoje – um acordo de associação entre a EU e o Mercosul, a criação de uma zona de comércio livre bi-regional –, no contexto do acordo-quadro de cooperação inter-regional de 1995, é algo de inédito e que as próprias negociações, por serem entre dois blocos regionais de integração, são também inéditas, apesar de se encontrarem paradas.
Não obstante, é igualmente evidente que a União Europeia tem interesse em terminar as negociações o mais rápido possível, em função do grande interesse económico que nutre pela região. Por seu lado, também o Mercosul tem interesse em concluir rapidamente as negociações, até para dar um sinal, para dentro da América Latina, quando um país associado do Mercosul (o Chile) já assinou um acordo de livre comércio com os Estados Unidos. O mesmo sinal serve também para a Comunidade Andina, já que parte dela (Equador, Colômbia, Bolívia e Peru) está também a articular um acordo de livre comércio com os Estados Unidos. Sabendo-se das ligações do Paraguai e do Uruguai aos Estados Unidos – e até mesmo de alguns sectores do Partido Peronista argentino –, possível se torna concluir pelo interesse do Brasil em encerrar as negociações e encerrá-las com acordo.
Até lá, todavia, resta esperar pelo entendimento negocial das partes, na busca daquilo que ambas subscreverão, por considerarem, senão o melhor para si, pelo menos o que de melhor pode ser extraído das conversações. Simultaneamente, a resolução dos problemas postos pelas migrações de Brasileiros em direcção a Portugal, a valorização do património comum destes dois povos, de mais de 500 anos, assente na preservação dos valores imutáveis e na modernização dos laços que os unem constituem, certamente, para o Brasil e para Portugal, garantia de sucessos múltiplos no relacionamento luso-brasileiro, matizando o realismo e o pragmatismo da política externa brasileira com o fervor místico que a Língua comum une e alimenta e sublima no intercâmbio cultural.



[1] Cfr. SILVARES, Mónica; “Portugal Poderá Fechar Acordo EU-Mercosul”, Diário Económico, Secção Política, Quarta-Feira, 9 de Maio de 2007, pp.43.
[2] Cfr. Idem, ibidem.
[3] Desequilíbrio em muito explicado pelo peso dos combustíveis na Balança Comercial portuguesa, já que os principais produtos importados por Portugal do Brasil foram, nesse período, petróleo, soja, milho, ligas de alumínio e açúcar de cana, enquanto o Brasil comprou, de Portugal, especialmente azeite, bacalhau e vinho. Cfr. Idem, ibidem.

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