COLÓQUIO INTERNACIONAL BRASIL, UNIÃO EUROPEIA, AMÉRICA DO SUL: ANOS 2010-2020 – OUTUBRO DE 2008, BRASÍLIA DF
Na actual sociedade internacional global[2], as perspectivas de integração bilateral e multilateral ganham novos contornos, já que a cooperação internacional, num non polar world[3], surge num dos espaços centrais das relações internacionais, aqui residindo a mais recente atracção pela regionalização e pelos processos de integração regional, que ultrapassam a rigidez das fronteiras estatais e enquadram as novas interacções num espaço intermédio entre o nacional e o mundial[4].
Neste contexto, tem ganho relevância o estabelecimento de laços interregionais entre processos de integração regionais, inéditos na história das relações internacionais. O non polar world cria as condições ideais para favorecer esta realidade, em virtude da incapacidade dos Estados-Nação em responder aos desafios e, mais recentemente, em virtude da incapacidade dos blocos regionais de integração em fazer face às dificuldades que o actual sistema internacional apresenta. No século XXI, «power will be diffuse rather than concentrated, and the influence of nation-states will decline as that of non-state actors increases (…) the principal characteristic of twenty-first-century international relations is turning out to be nonpolarity: a world dominated not by one or two or even several states but rather by dozens of actors possessing and exercising various kinds of power», o que «represents a tectonic shift from the past»[5]. O relacionamento interregional adquire, por conseguinte, inegável importância, sendo o caso da União Europeia (EU) e do Mercosul o exemplo paradigmático desta realidade. Realidade na qual ganha relevo, pelo papel que tem vindo a desempenhar no processo, o Brasil.
Realizou-se, neste sentido, em Brasília, no início de Outubro de 2008, o Seminário Internacional Brasil, União Europeia, América do Sul: Anos 2010-2020, organizado pela Universidade de Brasília (UnB). Patrocinado pelo CNPq, pela Finatec, pelo IBRI e pela Fundação Konrad Adenauer, integrado no âmbito do Projecto Renato Archer (As Parcerias Estratégicas do Brasil), o seminário, no qual tivemos a honra de participar, contou com a presença de diversos especialistas brasileiros, portugueses, italianos, espanhóis, argentinos e alemães sobre a matéria.
No actual contexto de globalização, ou de mundialização, à maneira francesa, em que todavia e União Europeia continua a ser um animal sui generis que enfrenta hoje o debate sobre a ratificação do Tratado de Lisboa e as respostas a dar à crise financeira internacional, na América do Sul o Mercado Comum do Sul (Mercosul) e a União das Nações Sul-Americanas (Unasul) surgem como os dois níveis de integração da região, sendo esta última um espaço mais alargado e abrangente, de orientação mais política, embora incluindo também uma vertente económica[6]. Saber como se articulam estes dois espaços, tendo em conta que a integração na América do Sul não deve limitar-se à pequenez do Mercosul, é o grande desafio que se impõe à sub-região, sendo certo que sem uma forte integração económica não poderá haver uma integração política.
Neste contexto, é necessário ter-se em conta as forças de união que têm contribuído para a integração na América Latina, assim como as forças de dispersão que têm dificultado essa integração. Assim, a ascensão das esquerdas na generalidade dos países latino-americanos, os projectos de integração que nestes têm surgido e a institucionalização do conceito de América do Sul – que se reconduz a um projecto brasileiro, por oposição aos conceitos de América do Norte e de América Central, de lógicas norte-americanas – constituem os elementos que têm impulsionado a união do sub-continente, assente na estrutura de um projecto brasileiro, na integração energética, na industrialização e na institucionalização da América do Sul como entidade. Claro que a distinção da América do Sul no contexto latino-americano não constitui nenhuma novidade; já Edmundo Heredia teorizava sobre a existência, no espaço latino-americano, de várias entidades distintas, a saber, a América Latina, a América Central, a América do Sul e, dentro desta, o Cone Sul. Porém, a identificação da América do Sul como nova identidade sub-regional, invenção brasileira visando maior influência no sistema internacional, ganha um peso relativo maior em função do projecto brasileiro de integração sub-regional. Por seu lado, o facto de existirem diversos projectos sociais introspectivos na América Latina – por serem nacionais e centrados sobre a própria realidade – os nacionalismos e as ideologias (factores culturais) e os diferentes modelos de inserção internacional dos países latino-americanos constituem factores de dispersão que têm dificultado a integração na região latino-americana.
É todavia evidente que, no âmbito do relacionamento bi-regional EU-Mercosul, o Brasil, como potência média a caminho de grande potência normativa, e pela sua dimensão geo-político-estratégico-demográfica, adquire uma funcionalidade muito particular, existindo uma parceria estratégica Brasil-União Europeia há cerca de um ano, surgindo aqui a questão de como compatibilizar esta parceria com a relação intra-blocos (EU-mercosul)[7]. Vale lembrar que a política externa brasileira apresenta traços de continuidade que não devem ser menosprezados. Trata-se de uma política relativamente contínua desde o Barão do Rio Branco, nomeadamente em termos normativos e de princípios, havendo também comportamentos que perpassam os governos, assumindo-se como o núcleo cognitivo da política externa brasileira. Desde logo, o universalismo e a autonomia desta política, embora também a matriz realista que a caracteriza e a crença histórica, presente na diplomacia e na sociedade brasileiras em geral, de acordo com a qual o Brasil deve ocupar um lugar especial na sociedade internacional, fruto do característico espírito de grandeza brasileiro. A integração regional não fez parte das prioridades desta política durante muito tempo. A continuidade deste pensamento seria interrompida com o presidente Lula, a partir de 2003, quando a corrente do Itamaraty favorável à integração regional como objectivo ganhasse dinamismo. Já com Fernando Henrique Cardoso, especialmente a partir do segundo mandato, a integração regional era considerada, designadamente com o início da construção da CASA (que depois se transformaria na UNASUL). Porém, com Lula, passou a existir um comportamento mais activo e assertivo em matéria de integração regional, visando alcançar, para o Brasil, uma predominância maior sobre os vizinhos. Na realidade, ainda que sem o assumir explicitamente, o Brasil tem apostado em liderar a América do Sul, para depois ocupar o seu lugar na sociedade internacional. Fracassou na tentativa de ocupar um lugar de membro permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas, fracassou na escolha do secretário-geral da Organização Mundial do Comércio (OMC) e perdeu a presidência do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID). Porém, teve êxito na participação na missão de paz no Haiti e na intervenção na Bolívia (em ambos teve um papel estabilizador), no seu reconhecimento como BRIC e no reconhecimento da sua liderança do G20 no seio da OMC, do G5, no âmbito do G8 e do IBAS, para além de ter sido reconhecido como parceiro estratégico da EU. Embora falhando no reconhecimento como potência regional, o Brasil tem moderadamente conseguido ser reconhecido como potência média global, afirmando-se como um poder revisionista e não um poder reformista, o que significa que tem procurado solucionar as instabilidades da região, em lugar de nesta actuar totalmente, representando isto alguma falta de liderança, que deverá manter-se para os próximos anos. A diplomacia brasileira, no governo Lula, enfrenta, efectivamente, o desafio de se recriar para explorar os ambientes que lhe vão surgindo de modo favorável aos seus interesses, havendo todavia o risco de uma expectativa frustrada quanto ao Brasil como global player.
Todavia, parece mais conveniente que uma parceria, seja de que modelo for, entre o Brasil e a EU se estabeleça, não no plano dos Estados nacionais, mas antes no patamar colectivo das instituições supranacionais, isto é, o Mercosul e a União Europeia.
É verdade que, se historicamente a União Europeia sempre afirmou que só negociaria com a América Latina por intermédio de um interlocutor institucional – cuja falta foi a razão fundamental da constante frustração histórica das tentativas da Comunidade Económica Europeia (CEE) em dialogar com a América Latina – em Julho de 2007, na Cimeira EU-Brasil sob a Presidência Portuguesa do Conselho da EU[8], a União elegeu o Brasil como parceiro estratégico, parecendo hoje não estar muito clara a situação de se saber qual dos relacionamentos dever ser primordialmente estimulado: se o relacionamento EU-Brasil, se o relacionamento EU-Mercosul.
É bem verdade, também, que a relação EU-Mercosul não resolve todas as demandas do Brasil, especialmente no que diz respeito aos seus interesses comerciais. Todavia, se o Brasil tem, hoje, como prioridade da sua política externa, a integração sul-americana a partir do Mercosul (numa lógica de círculos concêntricos a partir do núcleo-duro do Mercosul em torno das relações em eixo argentino-brasileiras), a singularização do seu relacionamento com a EU poderá levar à desagregação do Mercosul. Daí que a parceria EU-Mercosul deva ser privilegiada, sendo para além disso certo que o único projecto de integração hoje disponível é o brasileiro – em virtude do fracasso do bolivarianismo e dos projectos da década de 1950. Até porque, ademais, ao negociar o seu próprio acordo com a EU, o Brasil descura o Mercosul, o que, de alguma forma, poderá vir a pôr em causa a sua liderança regional. Pelo contrário, o interregionalismo será a melhor opção para o Brasil e para a própria EU, pois por um lado reforçará a liderança regional e global do Brasil, assim como a sua credibilidade como potência média e, por outro, representará a credibilidade da EU como actor actuante em matéria de capacidade de relacionamento internacional.
Isto significa que os laços interregionais EU-Mercosul têm prevalência sobre a relação EU-Brasil, sendo certa a necessidade de haver requisitos prévios de níveis de integração para se estabelecer padrões de interacção política e económica entre dois processos regionais de integração. Esta questão significa que faz todo o sentido continuar a falar-se de parcerias estratégicas bilaterais, ou mesmo, indo mais além, de relações em eixo[9], entre Estados-membros de um mesmo processo regional de integração, pois estas fortalecem esse processo de integração, assim suficientemente estabilizado para iniciar, com outro processo regional nas mesmas condições, relações interregionais.
[2] Cfr. BULL, Hedley; A Sociedade Anárquica, Colecção Clássicos do IPRI, Editora UnB, 1ª edição brasileira, São Paulo, 2002.
[3] Expressão de Richard Haas, Presidente do Council on Foreign Relations da Administração Norte-Americana. Sobre o tema vide: HAAS, Richard; The Age of Nonpolarity – What Will Follow the U.S. Dominance?, in Foreign Affairs, Maio/Junho de 2008; HAAS, Richard; Ask the Expert: What Comes After Unipolarity?, in Financial Times, 15 de Abril de 2008; HAAS, Ricahrd; Na Era Não-Polar, EUA Não Podem Mais Ser Sozinhos entrevista concedida ao jornal brasileiro Folha de São Paulo, 12 de Maio de 2008.
[4] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; As Relações em Eixo Franco-Alemãs e as Relações em Eixo Argentino-Brasileiras – Génese dos Processos de Integração, Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa (ISCSP/UTL), 1ª edição, Lisboa, Julho de 2007, pp. 49-50.
[5] Cfr. HAAS, Richard; The Age of Nonpolarity – What Will Follow the U.S. Dominance?, in Foreign Affairs, Maio/Junho de 2008.
[6] Deve todavia ter-se em conta que, no seio da UNASUL existem dois projectos integracionistas: o projecto brasileiro e o projecto venezuelano, pelo que a compatibilização de ambos constituirá, certamente, um desafio acrescido à recém-criada organização.
[7] O Brasil é o nono parceiro comercial da EU.
[8] Esta foi a primeira Cimeira EU-Brasil, estando a segunda agendada para Dezembro de 2008, sendo certo que, com a EU, o Brasil tem uma relação intensa (ainda que com resultados limitados) a nível bilateral (como sócio estratégico da EU), a nível multilateral (no âmbito do G6) e a nível interregional (no marco do Acordo EU-Mercosul de 1995).
[9] Em seu mais recente livro, Inserção Internacional – A Formação dos Conceitos Brasileiros, o Prof. Doutor Amado Luiz Cervo elabora, correctamente, sobre a diferença entre as relações em eixo e a parceria estratégica. Desenvolvido por nós em sede de dissertação de Doutoramento pela UnB, o conceito de relações em eixo assenta sobre uma relação especial entre parceiros simétricos, «uma relação especial estabelecida entre duas potências que fazem entre si fronteiras vivas e desenvolvem uma profícua complementaridade económica, numa primeira fase assentando sobre rivalidades mútuas que evoluem, num segundo momento, para um comportamento cooperativo finalmente assente sobre verdadeiras parcerias, designadamente entre os respectivos líderes políticos, cuja vontade de potência, elaboração política e percepções de interesses convergem num mesmo sentido, por forma a articular as ligações entre os núcleos dinâmicos do eixo sobre o qual assentam. Sobressaindo da região em que surgem pela criação de potência, as relações em eixo acabam por afirmar-se como o eixo de gravitação regional, beneficiando da aceitação popular que lhes reforça a coerência interna, ainda que sejam influenciadas por Estados terceiros, bem como pelas evoluções conjuntural (forças de pressão) e estrutural (forças profundas) da região e da sociedade internacional global em que se inserem. Assim definidas, as relações em eixo funcionam como condição necessária para a existência de processos regionais de integração, estando na origem, na consolidação e condução destes pela força integradora que geram». Cfr. PATRÍCIO, Raquel; op. Cit., pp. 482-483. Por seu lado, a parceria estratégica representa uma relação «entre dominante e dominado, de estruturas assimétricas, como se verifica entre Brasil e EUA». Cfr. CERVO, Amado Luiz; Inserção Internacional – A Formação dos Conceitos Brasileiros, editora Saraiva, 1ª edição, São Paulo, 2008, pp. 211-212.
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