O NACIONAL – PETROPOPULISMO DE ESQUERDA DE HUGO CHÁVEZ
O presidente venezuelano Hugo Chávez é um espécime exemplar do ponto de vista da Ciência Política. Na construção do que chama de «socialismo do século XXI», através da implementação da «Revolução Bolivariana», Chávez repete como farsa o socialismo do século XX, no que é chamado, pelos opositores, de «chavismo», um nacional-populismo de esquerda implementado por caudilhos à maneira do século XX com laivos de século XIX. Escudado nos petrodólares, armando a Venezuela o mais que pode e com o Legislativo e o Judiciário controlados, Chávez não mede esforços para eternizar-se no poder, imprimindo à Venezuela um desvario ideológico que se tem infiltrado no quotidiano dos Venezuelanos, no que já pode ser chamado de «ditadura chavista».
Espécime exemplar do ponto de vista da Ciência Política, Chávez não é, todavia, caso único e inovador na política latino-americana, tampouco na política mundial. Fenómeno que nada tem de novo, Chávez é um exemplo típico de nacional-populismo de esquerda, segundo a categorização chilena, como tantos outros houve ao longo da História da Humanidade.
Evidentemente, o fenómeno Chávez não se reconduz à categoria de fundamentalismo. Aliás, a América Latina é profundamente avessa a fundamentalismos. No entanto, pelo facto de não deixar ninguém imune ao regime que impõe, Chávez torna-se num fenómeno paralelo ao fundamentalismo, deste muito semelhante à excepção do fundamento religioso, que não possui. Na realidade, mesmo aqueles que beneficiam dos programas assistencialistas de Chávez ficam prisioneiros de um esquema que exige absoluta submissão e frequentes demonstrações de fidelidade. Sobre os que abertamente discordam do governo, recai o poder do aparato oficial, que pune directa ou indirectamente os infractores, em actuação concordante com qualquer nacional-populismo, neste caso amplamente afiançado pelo poder financeiro oriundo do petróleo, naquilo que poderíamos apelidar de «nacional-petropopulismo de esquerda».
De facto, a força de Chávez advém do petróleo, estando a Venezuela na lista dos dez países com maiores reservas petrolíferas do mundo, que lhe apara o jogo de poder com os países vizinhos e, sobretudo, com os Estados Unidos. Na realidade, a tese bolivariana de Chávez entende que o pior de tudo no mundo é a subordinação à expansão permanente, dominadora e cruel da política norte-americana, que culpa por todos os males do mundo. A sua resposta, em lugar de centrar-se sobre o fortalecimento das instituições venezuelanas, adopta o confronto infantil com o imperialismo norte-americano, numa concepção ideológica moldada nos parâmetros do século XX, quando, na verdade, já estamos no século XXI e duas petrolíferas norte-americanas (a Texaco e a Chevron) têm vindo a estabelecer negócios na Venezuela.
Reeleito para um terceiro mandato presidencial com 61,35% dos votos válidos[1], nas eleições de 3 de Dezembro de 2006, Chávez reuniu todo o capital político de que necessitava para conduzir a Venezuela rumo à Revolução Bolivariana. O facto é que, num momento inicial, havia, na Venezuela, à semelhança dos restantes países latino-americanos, uma forte pressão popular por reformas sociais. Após um longo período de hegemonia neoliberal, com a eleição de sectores adeptos dos Estados Unidos – Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso, Carlos Saúl Menem, Alberto Fujimori –, tornaram-se evidentes, no início da década de 1990, os efeitos destrutivos e regressivos do Neoliberalismo na região. Sob hegemonia do capital financeiro, o Institucionalismo Neoliberal devastou os Estados nacionais na América Latina, reduziu os investimentos nas áreas sociais, desnacionalizou as economias, atacou os direitos dos trabalhadores, aumentou o desemprego, a violência e a miséria. Prometendo retirar a região do marasmo em que se encontrava, o Consenso de Washington e o Institucionalismo Neoliberal, aplicados na América Latina desde a crise da dívida externa, iniciada com a moratória do México de 1982, criou, com os seus rígidos princípios de estabilização económica e redução do papel do Estado na economia, situações insustentáveis em vários países da região.
A resposta destes a essas situações resultou em eleições que retiraram do poder as velhas oligarquias dominantes e as substituíram por forças oriundas das lutas sociais comprometidas com a soberania e a integração regional.
A reeleição de Chávez em Dezembro de 2006 surge, deste modo, inserida num processo mais amplo de transformações sociais e políticas em curso na América Latina, encerrando um ciclo de treze meses em que houve doze eleições presidenciais e legislativas em treze países latino-americanos. Subiram, assim, ao poder, Evo Morales na Bolívia, Michelle Bachelet no Chile, René Préval no Haiti, Daniel Ortega na Nicarágua, Óscar Árias na Costa Rica, Lula no Brasil, Néstor Kirchner e, recentemente, Cristina Kirchner na Argentina, Rafael Corrêa no Equador, Tabaré Vasquez no Uruguai, numa viragem da região à esquerda apenas compensada pela vitória, no Peru, de Alan Garcia Pérez, pela sucessão, no México, de Vicente Fox por Felipe Calderón e pela reeleição de Álvaro Uribe na Colômbia.
Esta viragem à esquerda na América Latina pode significar uma politização da sociedade civil; mas mais do isso e acima de tudo, ela indica uma mudança significativa no panorama político e social da região, num cenário que demonstra um clamor da sociedade latino-americana no sentido de colocar o tema da inclusão social na agenda das políticas públicas nacionais.
Chávez enquadrou-se, num primeiro momento, neste ambiente. Executou muito bem esse lado social-reformista: fez reformas importantes na área educacional, trabalhista, de valorização da classe trabalhadora, suportadas nas receitas oriundas do petróleo, totalmente colocadas ao serviço dos programas sociais e assistencialistas, num puro «petropopulismo». Porém, essas reformas não foram suficientes para conduzir a Venezuela à visão da democracia que valoriza as instituições, a sociedade e o Estado. Pelo contrário, a partir exactamente da reeleição de 2006, Chávez tem protagonizado uma nova forma de «fazer política».
Na realidade, o governo de Chávez, desde que foi eleito pela primeira vez, em 1998, passou já por duas fases, estando agora na terceira. Na primeira, um ano depois de ser eleito, quando o preço do petróleo estava baixo, Chávez reescreveu, por seu próprio punho, a Constituição da Venezuela, no sentido de colonizar com aliados o Supremo Tribunal, por forma a remover esse obstáculo à sua pretensão de governar acima da lei e das instituições.
O início da escalada do preço do petróleo permitiu a passagem à segunda fase, caracterizada pela invenção da «Revolução Bolivariana». Até hoje mal definida ideologicamente, essa expressão tem-se traduzido na prática do clientelismo político que compra o apoio popular com programas assistencialistas suportados pela apropriação, por parte do presidente, das reservas internacionais do país e de um fundo formado a partir do lucro da PDVSA, a Companhia Petróleos da Venezuela, que Chávez nacionalizou após a longa greve do sector petrolífero em 2002 e 2003.
A terceira fase do governo de Hugo Chávez começou há dois anos atrás, com o anúncio de que o seu objectivo era construir o «socialismo do século XXI», cujo elemento ideológico mais marcante é o desejo de Chávez de concentrar o poder nas suas mãos pelo maior tempo possível.
Neste sentido, o regime que Chávez tem vindo a construir na Venezuela é, não só autoritário, como também, e fundamentalmente, um regime que propõe criar uma nação à imagem e semelhança do seu governante, numa lógica personalista fiel ao nacional-populismo. O estilo centralizado, a intolerância em relação a opiniões divergentes e, sobretudo, o modo como Chávez tenta transformar as instituições públicas num prolongamento da sua vontade e idiossincrasias colocam-no na mais fiel tradição caudilhesca do sub-continente, num protótipo do perfeito déspota sul-americano. É que não é o facto de ter sido democraticamente eleito que faz de Chávez um democrata. Também Hitler conquistou os aparelhos de repressão pela via eleitoral e fez da Alemanha Nazi tudo menos uma democracia. Na realidade, há democracias absolutistas e democracias pluralistas e poliárquicas, sendo certo que o nacional-populismo na maioria das vezes “tira o rei absoluto e põe, no lugar do dito, o povo absoluto, produtor de terror”[2], subvertendo o conceito de democracia pela instrumentalização das massas populares. Assim, é útil ter em conta como a noção de democracia de Robert Dahl e Karl Popper enfatiza a não democraticidade dos regimes nacional-populistas. Citado por José Adelino Maltez: “o problema fundamental das actuais democracias pluralistas e de Estado de Direito não é medir quem manda, mas controlar o poder daqueles que mandam, salvaguardando as minorias, isto é, permitindo que a liberdade as transforme, eventualmente, em futuras maiorias, isto é, admitindo os golpes de Estado sem sangue que resultam das alterações por via eleitoral”[3].
Em termos sociológicos, Chávez tem vindo a erigir, na Venezuela, um regime personalista como o que Perón erigiu na Argentina nos anos 1940-1950 e como muitos outros erigiram noutros países da região. Um regime assente na ideia de que o governante é o único capaz de liderar a nação para um futuro melhor; assente no princípio de que, independentemente do apoio popular ao regime, o líder necessita de cimentar a sua força política através do controlo das Forças Armadas e das milícias civis armadas; assente na destruição do Estado de direito, já que todas as instituições públicas têm de se submeter à vontade do governante; e assente, finalmente, no culto à imagem do líder.
Idolatrando Simón Bolívar, cuja obra de construção de uma grande nação sul-americana pretende concluir, Chávez apresenta-se como o herdeiro histórico de Bolívar[4], reunindo, no seu regime personalista, o narcisismo exacerbado, o controlo das Forças Armadas e das milícias civis armadas e a prepotência contra opositores; que o levam a colocar cartazes com o seu rosto espalhados pelas ruas do país, a fazer pronunciamentos constantes na televisão e a controlar o conteúdo de oito canais televisivos abertos e a fechar outros.
A reforma constitucional que a Assembleia Nacional venezuelana aprovou, a 24 de Outubro de 2007, legitima a actuação de Chávez. Proposta em Agosto pelo presidente para alterar 33 dos 350 artigos que a compõem, segundo ideia inicialmente gizada por Chávez, a Constituição acabou por ver 20% dos seus artigos alterados, numa tarefa nada árdua, já que todos os deputados são chavistas (porque a oposição boicotou as legislativas de 2005), havendo uma escassa meia dúzia que se absteve por razões de consciência, designadamente por considerarem que as alterações, em especial a que dá a Chávez a Presidência vitalícia, enformam um golpe de Estado.
Essa reforma veio institucionalizar o socialismo na Venezuela, o que é bem diferente de se ter, num país, um governo que faz a apologia do socialismo e apoia um partido com essa tendência. A institucionalização do socialismo vai muito além dessa apologia, pois significa a institucionalização de uma ideologia, através de uma Constituição, pondo gravemente em causa o pluralismo democrático do Estado de direito.
A nova Constituição, que será submetida a aprovação popular a 2 de Dezembro de 2007 (sendo certo que a Justiça Eleitoral, na Venezuela, está sob controlo de funcionários fiéis a Chávez), dá sustentação legal às medidas autoritárias que Chávez vem praticando desde 1998. A centralização do poder nas mãos do presidente, a militarização do país e o desrespeito pela propriedade privada não são novidade no governo Chávez, mas surgem agora institucionalizadas pela Lei Fundamental da Venezuela. Novidade é o mandato presidencial passar de seis para sete anos, podendo ser renovado por tempo indeterminado nas urnas, o que confere a Chávez a possibilidade da Presidência vitalícia. Além do mais, consagra a nova Constituição a possibilidade de o país ser fragmentado com o objectivo de subordinar governadores e prefeitos à autoridade de um militar nomeado por Chávez, sendo igualmente certo que os governos locais, como as câmaras municipais, passam também a ser controladas directamente pelo presidente. Chávez reuniu, ainda, poderes para criar ou suprimir províncias, cidades, distritos, municípios, regiões marítimas e regiões estratégicas, além de poder designar e remover as respectivas autoridades. Ademais, Chávez pode destituir o vice-presidente e nomear vice-presidentes para governar as novas regiões, além de promover oficiais das Forças Armadas em todos os graus e hierarquias, bem como administrar as finanças públicas e as reservas internacionais. Em matéria de propriedade privada, a nova Lei Fundamental da Venezuela estabelece a distinção entre oito tipos de propriedade, não podendo o proprietário privado recorrer à Justiça contra a expropriação. Chávez pode, ainda, decretar, pelo tempo que quiser, o estado de excepção, com suspensão dos direitos individuais e de imprensa, passando também a controlar o Banco Central, que perde a sua autonomia, ao mesmo tempo que se atribui o dever de interferir na política interna dos países vizinhos[5].
É assim, com base na nova redacção do artigo 153º da Constituição venezuelana (“Criação de um espaço geopolítico dentro do qual os povos e os governos de nossa América possam construir um só projecto nacional, a que Simón Bolívar chamou uma Nação de Repúblicas”[6]), que Chávez ameaça, juntamente com o armamentismo da Venezuela, alterar os equilíbrios regionais de modo amplamente perigoso para o Brasil, aquele que, até agora, tem dominado o sub-continente sul-americano, pelo menos enquanto Cristina Kirchner o permitir, já que a presidente eleita da Argentina, a 28 de Outubro de 2007, tem afirmado pretender recuperar o espaço que a Argentina deixou vago no sistema internacional durante a gestão do marido, Néstor Kircnher, quando o país praticamente não participava das relações internacionais, tampouco da política internacional.
É evidente que o isolamento regional da Venezuela, limitada aos apoios de Cuba, Equador, Nicarágua e Bolívia, funciona como um factor de contenção das ambições regionais de Chávez. Por outro lado, a atracção que o caudilho exerce sobre esses países, com os quais construiu, até, uma aliança anti-EUA de apoio ao programa nuclear do Irão, advém exclusivamente do poder e da influência que o petróleo lhe concede, o que a descoberta de petróleo no Brasil, a 7000 km de profundidade na bacia de Santos, tendo o campo de Tupi Sul entre 5 a 8 mil milhões de barris de petróleo, elevando a mais de 50% as reservas brasileiras[7], poderá vir a alterar. Sobretudo agora, que o Brasil de Lula tem repetidamente afirmado que dentro de cinco ou seis anos, quando estiver em condições de fornecer crude a outros países, estará apto a aderir à Organização dos Países Produtores e Exportadores de Petróleo (OPEP). A descoberta tem, inclusive, o potencial de alterar o papel do Brasil na região e no mundo, podendo permitir-lhe alcançar objectivos como o assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas e a entrada no G8.
É evidente, por outro lado, que, paralelamente ao papel de mediador que tem desempenhado entre os guerrilheiros das Farc, com quem tem declaradamente uma proximidade ideológica, e o governo colombiano, para a libertação de Ingrid Betancourt e outros prisioneiros políticos, ganha forma o projecto de Chávez com que ele mais espera vir a intervir na região: a criação do Banco do Sul. A iniciativa, que arrancou no espírito do líder bolivariano há dois anos, insere-se no âmbito de tornar a Venezuela o mais independente possível dos EUA e das Instituições Financeiras Internacionais por estes controladas (o Fundo Monetário Internacional – FMI – e o banco Mundial – BIRD). Mas é claro que, ao pretender criar um banco sul-americano, com capitais sul-americanos e para os sul-americanos, Chávez pretende liderar o projecto, em paralelo com a construção do gasoduto do Sul, de 11 mil quilómetros de extensão, ligando a Venezuela à Argentina, na área energética. Não é à toa que o Banco do Sul terá sede em Caracas e subsedes em Buenos Aires e La Paz, já que foi com Néstor Kirchner e Evo Morales que Chávez lançou a primeira pedra do Banco do Sul, que contará também com a participação do Equador, do Uruguai e do Brasil[8].
A questão é que a concepção chavista de unidade sul-americana é equivocada, o que poderá conduzir à quebra das unidades nacionais e à interferência na autodeterminação dos povos. É que a visão de unidade sul-americana de Chávez é uma visão expansionista, que o leva a gastar o muito dinheiro que tem na compra de vinte e oito caças russos e na transformação da Força Aérea venezuelana na primeira da América Latina.
De facto, Hugo Chávez tem investido R$ 4 biliões em armas, caças de última geração, helicópetros, armamento de submarinos, foguetes e fuzis kalashnikov[9], o que tem feito surgir, no horizonte regional, o receio de nascimento de uma potência militar que provoque uma corrida armamentista no sub-continente. Um sub-continente tradicionalmente pacífico, onde há cem anos os vizinhos não se envolvem em guerras entre si, e onde os países não têm recursos no Orçamento para destinar às Forças Armadas, o que significará, se tal vier a acontecer, a necessidade de desviar verbas fundamentais para a área social para enfrentar o desafio armamentista.
A verdade, todavia, é que essa corrida armamentista teve já início. A América Latina, de facto, entre nesta rota, na maior movimentação desde a época das ditaduras. Alarmado pelo fortalecimento militar venezuelano, o Brasil acorda da letargia em que, após o fim do regime militar (1985), deixara as suas Forças Armadas, totalmente despreparadas para qualquer tarefa de dissuasão. Por isso, o governo brasileiro retoma, agora, os investimentos na área militar, prevendo já para 2008 um aumento de 50% no orçamento das Forças Armadas[10]. Mas o ministro brasileiro da Defesa, Nelson Jobim, não pretende apenas o reaparelhamento das Forças Armadas brasileiras. Pretende, isso sim, que os produtos bélicos importados do exterior sejam importados de fornecedores que ofereçam transferência de tecnologia, de modo a vincular a defesa nacional ao desenvolvimento nacional, a toda a política industrial, isto é, à criação de um parque industrial de defesa, de acordo com um plano concreto de estratégia de defesa[11]. É neste sentido que se torna necessário estabelecer uma política de defesa clara, que justifique o actual gasto com armamento; razão que levou o presidente Lula a editar, a 6 de setembro de 2007, um decreto que criou o Comité Ministerial da Formulação da estratégia Nacional de Defesa, até porque a Política Nacional de Defesa, já transformada em lei, estabelece que a estratégia militar brasileira é dissuasória, isto é, defensiva[12].
É evidente que toda esta movimentação bélica tem por detrás a geopolítica da região, previsivelmente alterada em função dos avanços militaristas de Chávez, que não esconde a ambição de concretizar os planos que tem para a Bolívia, em acordo com Evo Morales. Situação que tem causado inquietação nos meios políticos e militares brasileiros.
Por outro lado, a crise energética do Brasil, onde falta claramente gás para o crescimento, poderá levar o presidente Lula a investir novamente na Bolívia, podendo o país ficar dependente do imprevisível Morales.
Naturalmente, o poder de Chávez, assente no elevado preço do petróleo, dá-lhe a liberdade de actuar de modo prepotente e arrogante face aos seus vizinhos. E face, mesmo, a outros países, que na Venezuela têm fortes interesses económicos, assim estando na mão de Hugo Chávez. Foi assim que, em Santiago do Chile, no último dia da XVII Cimeira Ibero-Americana (9 e 10 de Novembro de 2007), Chávez exasperou o rei Juan Carlos, insultou o antigo chefe do governo espanhol, José María Aznar, acusando-o de ter dado apoio ao fracassado golpe de Estado anti-chavista de Abril de 2002, enxovalhou o presidente do Partido Popular espanhol, Mariano Rajoy, e acusou o actual primeiro-ministro, José Luís Rodriguez Zapatero, de apoiar personalidades semelhantes a Hitler. A tudo isto responderam Zapatero e o rei Juan Carlos, criando um incidente diplomático que tem saído caro à diplomacia (económica) espanhola.
Madrid tem procurado salvaguardar a forte presença de empresas espanholas na Venezuela, sobretudo nos sectores da banca, seguros e energia. Porém, a verdade é que os quase € 94mil milhões de investimentos espanhóis na Venezuela em 2006[13] estão sujeitos ao arbítrio de Chávez, com os poderes reforçados pela nova Constituição, ainda que na medida em que a alta do preço do petróleo o permita. Enquanto isso, a diplomacia portuguesa pouco refere sobre o incidente de Santiago do Chile, na tentativa de defender a imensa comunidade portuguesa no país com quem assinou, a 20 de Novembro de 2007, quando Chávez esteve em visita oficial a Portugal, um acordo energético, complementar ao assinado em Outubro passado, com a participação, designadamente, da GALP Energia, firmando a relação da Galp com a Petróleos da Venezuela[14], paralela à relação com a russa Gasprom.
Apesar de toda a pujança demonstrada por Hugo Chávez, traduzida numa arrogância populista e personalista que o transforma numa figura controversa, o presidente venezuelano começa a enfrentar as primeiras dificuldades na arena internacional, em virtude da não ratificação do Tratado de Adesão da Venezuela ao Mercosul pelo Congresso Brasileiro. É verdade que foi o Brasil quem convidou a Venezuela a integrar o grupo regional, numa tentativa de Lula de, com a Venezuela presa a compromissos formais de carácter regional, conseguir controlar Chávez e, assim, manter intocável a preponderância sub-regional do Brasil.
Efectivamente, o certo é que a actuação nacional-petropopulista de esquerda de Chávez lhe tem rendido dificuldades na ratificação do Tratado de Adesão ao Mercosul, assinado em Julho de 2006, por parte do Brasil e do Paraguai, alegando ser a venezuela de Chávez tudo menos um país democrático, não obstante ter Chávez sido eleito democraticamente pelos Venezuelanos, com elevado índice de aprovação.
De facto, o Congresso Brasileiro não parece disposto a ratificar o Tratado de Adesão, alegando que a Venezuela fere a cláusula de defesa democrática do Tratado de Assunção. E isto, muito embora o tratado tenha sido aprovado pela Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, a 24 de Outubro de 2007, em função da necessidade do Brasil controlar Chávez e assegurar os interesses económicos e energéticos do país.
Na realidade, a democracia venezuelana, mascarada de plebiscitos e referendos, serve-se destes instrumentos democráticos para destruir a democracia. Ao mesmo tempo, pretende uma unidade sul-americana à maneira de Bolívar, porém sob sua hegemonia. O mundo, hoje, é todavia outro. Mas os visionários continuam a ler nas entrelinhas da História. Napoleão fez da Europa uma só nação. Acabou os seus dias prisioneiro dos Britânicos na Ilha de Santa Helena. Hitler quis criar um mundo nazi. Acabou por suicidar-se enquanto os Soviéticos conquistavam Berlim.
O presidente venezuelano Hugo Chávez é um espécime exemplar do ponto de vista da Ciência Política. Na construção do que chama de «socialismo do século XXI», através da implementação da «Revolução Bolivariana», Chávez repete como farsa o socialismo do século XX, no que é chamado, pelos opositores, de «chavismo», um nacional-populismo de esquerda implementado por caudilhos à maneira do século XX com laivos de século XIX. Escudado nos petrodólares, armando a Venezuela o mais que pode e com o Legislativo e o Judiciário controlados, Chávez não mede esforços para eternizar-se no poder, imprimindo à Venezuela um desvario ideológico que se tem infiltrado no quotidiano dos Venezuelanos, no que já pode ser chamado de «ditadura chavista».
Espécime exemplar do ponto de vista da Ciência Política, Chávez não é, todavia, caso único e inovador na política latino-americana, tampouco na política mundial. Fenómeno que nada tem de novo, Chávez é um exemplo típico de nacional-populismo de esquerda, segundo a categorização chilena, como tantos outros houve ao longo da História da Humanidade.
Evidentemente, o fenómeno Chávez não se reconduz à categoria de fundamentalismo. Aliás, a América Latina é profundamente avessa a fundamentalismos. No entanto, pelo facto de não deixar ninguém imune ao regime que impõe, Chávez torna-se num fenómeno paralelo ao fundamentalismo, deste muito semelhante à excepção do fundamento religioso, que não possui. Na realidade, mesmo aqueles que beneficiam dos programas assistencialistas de Chávez ficam prisioneiros de um esquema que exige absoluta submissão e frequentes demonstrações de fidelidade. Sobre os que abertamente discordam do governo, recai o poder do aparato oficial, que pune directa ou indirectamente os infractores, em actuação concordante com qualquer nacional-populismo, neste caso amplamente afiançado pelo poder financeiro oriundo do petróleo, naquilo que poderíamos apelidar de «nacional-petropopulismo de esquerda».
De facto, a força de Chávez advém do petróleo, estando a Venezuela na lista dos dez países com maiores reservas petrolíferas do mundo, que lhe apara o jogo de poder com os países vizinhos e, sobretudo, com os Estados Unidos. Na realidade, a tese bolivariana de Chávez entende que o pior de tudo no mundo é a subordinação à expansão permanente, dominadora e cruel da política norte-americana, que culpa por todos os males do mundo. A sua resposta, em lugar de centrar-se sobre o fortalecimento das instituições venezuelanas, adopta o confronto infantil com o imperialismo norte-americano, numa concepção ideológica moldada nos parâmetros do século XX, quando, na verdade, já estamos no século XXI e duas petrolíferas norte-americanas (a Texaco e a Chevron) têm vindo a estabelecer negócios na Venezuela.
Reeleito para um terceiro mandato presidencial com 61,35% dos votos válidos[1], nas eleições de 3 de Dezembro de 2006, Chávez reuniu todo o capital político de que necessitava para conduzir a Venezuela rumo à Revolução Bolivariana. O facto é que, num momento inicial, havia, na Venezuela, à semelhança dos restantes países latino-americanos, uma forte pressão popular por reformas sociais. Após um longo período de hegemonia neoliberal, com a eleição de sectores adeptos dos Estados Unidos – Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso, Carlos Saúl Menem, Alberto Fujimori –, tornaram-se evidentes, no início da década de 1990, os efeitos destrutivos e regressivos do Neoliberalismo na região. Sob hegemonia do capital financeiro, o Institucionalismo Neoliberal devastou os Estados nacionais na América Latina, reduziu os investimentos nas áreas sociais, desnacionalizou as economias, atacou os direitos dos trabalhadores, aumentou o desemprego, a violência e a miséria. Prometendo retirar a região do marasmo em que se encontrava, o Consenso de Washington e o Institucionalismo Neoliberal, aplicados na América Latina desde a crise da dívida externa, iniciada com a moratória do México de 1982, criou, com os seus rígidos princípios de estabilização económica e redução do papel do Estado na economia, situações insustentáveis em vários países da região.
A resposta destes a essas situações resultou em eleições que retiraram do poder as velhas oligarquias dominantes e as substituíram por forças oriundas das lutas sociais comprometidas com a soberania e a integração regional.
A reeleição de Chávez em Dezembro de 2006 surge, deste modo, inserida num processo mais amplo de transformações sociais e políticas em curso na América Latina, encerrando um ciclo de treze meses em que houve doze eleições presidenciais e legislativas em treze países latino-americanos. Subiram, assim, ao poder, Evo Morales na Bolívia, Michelle Bachelet no Chile, René Préval no Haiti, Daniel Ortega na Nicarágua, Óscar Árias na Costa Rica, Lula no Brasil, Néstor Kirchner e, recentemente, Cristina Kirchner na Argentina, Rafael Corrêa no Equador, Tabaré Vasquez no Uruguai, numa viragem da região à esquerda apenas compensada pela vitória, no Peru, de Alan Garcia Pérez, pela sucessão, no México, de Vicente Fox por Felipe Calderón e pela reeleição de Álvaro Uribe na Colômbia.
Esta viragem à esquerda na América Latina pode significar uma politização da sociedade civil; mas mais do isso e acima de tudo, ela indica uma mudança significativa no panorama político e social da região, num cenário que demonstra um clamor da sociedade latino-americana no sentido de colocar o tema da inclusão social na agenda das políticas públicas nacionais.
Chávez enquadrou-se, num primeiro momento, neste ambiente. Executou muito bem esse lado social-reformista: fez reformas importantes na área educacional, trabalhista, de valorização da classe trabalhadora, suportadas nas receitas oriundas do petróleo, totalmente colocadas ao serviço dos programas sociais e assistencialistas, num puro «petropopulismo». Porém, essas reformas não foram suficientes para conduzir a Venezuela à visão da democracia que valoriza as instituições, a sociedade e o Estado. Pelo contrário, a partir exactamente da reeleição de 2006, Chávez tem protagonizado uma nova forma de «fazer política».
Na realidade, o governo de Chávez, desde que foi eleito pela primeira vez, em 1998, passou já por duas fases, estando agora na terceira. Na primeira, um ano depois de ser eleito, quando o preço do petróleo estava baixo, Chávez reescreveu, por seu próprio punho, a Constituição da Venezuela, no sentido de colonizar com aliados o Supremo Tribunal, por forma a remover esse obstáculo à sua pretensão de governar acima da lei e das instituições.
O início da escalada do preço do petróleo permitiu a passagem à segunda fase, caracterizada pela invenção da «Revolução Bolivariana». Até hoje mal definida ideologicamente, essa expressão tem-se traduzido na prática do clientelismo político que compra o apoio popular com programas assistencialistas suportados pela apropriação, por parte do presidente, das reservas internacionais do país e de um fundo formado a partir do lucro da PDVSA, a Companhia Petróleos da Venezuela, que Chávez nacionalizou após a longa greve do sector petrolífero em 2002 e 2003.
A terceira fase do governo de Hugo Chávez começou há dois anos atrás, com o anúncio de que o seu objectivo era construir o «socialismo do século XXI», cujo elemento ideológico mais marcante é o desejo de Chávez de concentrar o poder nas suas mãos pelo maior tempo possível.
Neste sentido, o regime que Chávez tem vindo a construir na Venezuela é, não só autoritário, como também, e fundamentalmente, um regime que propõe criar uma nação à imagem e semelhança do seu governante, numa lógica personalista fiel ao nacional-populismo. O estilo centralizado, a intolerância em relação a opiniões divergentes e, sobretudo, o modo como Chávez tenta transformar as instituições públicas num prolongamento da sua vontade e idiossincrasias colocam-no na mais fiel tradição caudilhesca do sub-continente, num protótipo do perfeito déspota sul-americano. É que não é o facto de ter sido democraticamente eleito que faz de Chávez um democrata. Também Hitler conquistou os aparelhos de repressão pela via eleitoral e fez da Alemanha Nazi tudo menos uma democracia. Na realidade, há democracias absolutistas e democracias pluralistas e poliárquicas, sendo certo que o nacional-populismo na maioria das vezes “tira o rei absoluto e põe, no lugar do dito, o povo absoluto, produtor de terror”[2], subvertendo o conceito de democracia pela instrumentalização das massas populares. Assim, é útil ter em conta como a noção de democracia de Robert Dahl e Karl Popper enfatiza a não democraticidade dos regimes nacional-populistas. Citado por José Adelino Maltez: “o problema fundamental das actuais democracias pluralistas e de Estado de Direito não é medir quem manda, mas controlar o poder daqueles que mandam, salvaguardando as minorias, isto é, permitindo que a liberdade as transforme, eventualmente, em futuras maiorias, isto é, admitindo os golpes de Estado sem sangue que resultam das alterações por via eleitoral”[3].
Em termos sociológicos, Chávez tem vindo a erigir, na Venezuela, um regime personalista como o que Perón erigiu na Argentina nos anos 1940-1950 e como muitos outros erigiram noutros países da região. Um regime assente na ideia de que o governante é o único capaz de liderar a nação para um futuro melhor; assente no princípio de que, independentemente do apoio popular ao regime, o líder necessita de cimentar a sua força política através do controlo das Forças Armadas e das milícias civis armadas; assente na destruição do Estado de direito, já que todas as instituições públicas têm de se submeter à vontade do governante; e assente, finalmente, no culto à imagem do líder.
Idolatrando Simón Bolívar, cuja obra de construção de uma grande nação sul-americana pretende concluir, Chávez apresenta-se como o herdeiro histórico de Bolívar[4], reunindo, no seu regime personalista, o narcisismo exacerbado, o controlo das Forças Armadas e das milícias civis armadas e a prepotência contra opositores; que o levam a colocar cartazes com o seu rosto espalhados pelas ruas do país, a fazer pronunciamentos constantes na televisão e a controlar o conteúdo de oito canais televisivos abertos e a fechar outros.
A reforma constitucional que a Assembleia Nacional venezuelana aprovou, a 24 de Outubro de 2007, legitima a actuação de Chávez. Proposta em Agosto pelo presidente para alterar 33 dos 350 artigos que a compõem, segundo ideia inicialmente gizada por Chávez, a Constituição acabou por ver 20% dos seus artigos alterados, numa tarefa nada árdua, já que todos os deputados são chavistas (porque a oposição boicotou as legislativas de 2005), havendo uma escassa meia dúzia que se absteve por razões de consciência, designadamente por considerarem que as alterações, em especial a que dá a Chávez a Presidência vitalícia, enformam um golpe de Estado.
Essa reforma veio institucionalizar o socialismo na Venezuela, o que é bem diferente de se ter, num país, um governo que faz a apologia do socialismo e apoia um partido com essa tendência. A institucionalização do socialismo vai muito além dessa apologia, pois significa a institucionalização de uma ideologia, através de uma Constituição, pondo gravemente em causa o pluralismo democrático do Estado de direito.
A nova Constituição, que será submetida a aprovação popular a 2 de Dezembro de 2007 (sendo certo que a Justiça Eleitoral, na Venezuela, está sob controlo de funcionários fiéis a Chávez), dá sustentação legal às medidas autoritárias que Chávez vem praticando desde 1998. A centralização do poder nas mãos do presidente, a militarização do país e o desrespeito pela propriedade privada não são novidade no governo Chávez, mas surgem agora institucionalizadas pela Lei Fundamental da Venezuela. Novidade é o mandato presidencial passar de seis para sete anos, podendo ser renovado por tempo indeterminado nas urnas, o que confere a Chávez a possibilidade da Presidência vitalícia. Além do mais, consagra a nova Constituição a possibilidade de o país ser fragmentado com o objectivo de subordinar governadores e prefeitos à autoridade de um militar nomeado por Chávez, sendo igualmente certo que os governos locais, como as câmaras municipais, passam também a ser controladas directamente pelo presidente. Chávez reuniu, ainda, poderes para criar ou suprimir províncias, cidades, distritos, municípios, regiões marítimas e regiões estratégicas, além de poder designar e remover as respectivas autoridades. Ademais, Chávez pode destituir o vice-presidente e nomear vice-presidentes para governar as novas regiões, além de promover oficiais das Forças Armadas em todos os graus e hierarquias, bem como administrar as finanças públicas e as reservas internacionais. Em matéria de propriedade privada, a nova Lei Fundamental da Venezuela estabelece a distinção entre oito tipos de propriedade, não podendo o proprietário privado recorrer à Justiça contra a expropriação. Chávez pode, ainda, decretar, pelo tempo que quiser, o estado de excepção, com suspensão dos direitos individuais e de imprensa, passando também a controlar o Banco Central, que perde a sua autonomia, ao mesmo tempo que se atribui o dever de interferir na política interna dos países vizinhos[5].
É assim, com base na nova redacção do artigo 153º da Constituição venezuelana (“Criação de um espaço geopolítico dentro do qual os povos e os governos de nossa América possam construir um só projecto nacional, a que Simón Bolívar chamou uma Nação de Repúblicas”[6]), que Chávez ameaça, juntamente com o armamentismo da Venezuela, alterar os equilíbrios regionais de modo amplamente perigoso para o Brasil, aquele que, até agora, tem dominado o sub-continente sul-americano, pelo menos enquanto Cristina Kirchner o permitir, já que a presidente eleita da Argentina, a 28 de Outubro de 2007, tem afirmado pretender recuperar o espaço que a Argentina deixou vago no sistema internacional durante a gestão do marido, Néstor Kircnher, quando o país praticamente não participava das relações internacionais, tampouco da política internacional.
É evidente que o isolamento regional da Venezuela, limitada aos apoios de Cuba, Equador, Nicarágua e Bolívia, funciona como um factor de contenção das ambições regionais de Chávez. Por outro lado, a atracção que o caudilho exerce sobre esses países, com os quais construiu, até, uma aliança anti-EUA de apoio ao programa nuclear do Irão, advém exclusivamente do poder e da influência que o petróleo lhe concede, o que a descoberta de petróleo no Brasil, a 7000 km de profundidade na bacia de Santos, tendo o campo de Tupi Sul entre 5 a 8 mil milhões de barris de petróleo, elevando a mais de 50% as reservas brasileiras[7], poderá vir a alterar. Sobretudo agora, que o Brasil de Lula tem repetidamente afirmado que dentro de cinco ou seis anos, quando estiver em condições de fornecer crude a outros países, estará apto a aderir à Organização dos Países Produtores e Exportadores de Petróleo (OPEP). A descoberta tem, inclusive, o potencial de alterar o papel do Brasil na região e no mundo, podendo permitir-lhe alcançar objectivos como o assento permanente no Conselho de Segurança das Nações Unidas e a entrada no G8.
É evidente, por outro lado, que, paralelamente ao papel de mediador que tem desempenhado entre os guerrilheiros das Farc, com quem tem declaradamente uma proximidade ideológica, e o governo colombiano, para a libertação de Ingrid Betancourt e outros prisioneiros políticos, ganha forma o projecto de Chávez com que ele mais espera vir a intervir na região: a criação do Banco do Sul. A iniciativa, que arrancou no espírito do líder bolivariano há dois anos, insere-se no âmbito de tornar a Venezuela o mais independente possível dos EUA e das Instituições Financeiras Internacionais por estes controladas (o Fundo Monetário Internacional – FMI – e o banco Mundial – BIRD). Mas é claro que, ao pretender criar um banco sul-americano, com capitais sul-americanos e para os sul-americanos, Chávez pretende liderar o projecto, em paralelo com a construção do gasoduto do Sul, de 11 mil quilómetros de extensão, ligando a Venezuela à Argentina, na área energética. Não é à toa que o Banco do Sul terá sede em Caracas e subsedes em Buenos Aires e La Paz, já que foi com Néstor Kirchner e Evo Morales que Chávez lançou a primeira pedra do Banco do Sul, que contará também com a participação do Equador, do Uruguai e do Brasil[8].
A questão é que a concepção chavista de unidade sul-americana é equivocada, o que poderá conduzir à quebra das unidades nacionais e à interferência na autodeterminação dos povos. É que a visão de unidade sul-americana de Chávez é uma visão expansionista, que o leva a gastar o muito dinheiro que tem na compra de vinte e oito caças russos e na transformação da Força Aérea venezuelana na primeira da América Latina.
De facto, Hugo Chávez tem investido R$ 4 biliões em armas, caças de última geração, helicópetros, armamento de submarinos, foguetes e fuzis kalashnikov[9], o que tem feito surgir, no horizonte regional, o receio de nascimento de uma potência militar que provoque uma corrida armamentista no sub-continente. Um sub-continente tradicionalmente pacífico, onde há cem anos os vizinhos não se envolvem em guerras entre si, e onde os países não têm recursos no Orçamento para destinar às Forças Armadas, o que significará, se tal vier a acontecer, a necessidade de desviar verbas fundamentais para a área social para enfrentar o desafio armamentista.
A verdade, todavia, é que essa corrida armamentista teve já início. A América Latina, de facto, entre nesta rota, na maior movimentação desde a época das ditaduras. Alarmado pelo fortalecimento militar venezuelano, o Brasil acorda da letargia em que, após o fim do regime militar (1985), deixara as suas Forças Armadas, totalmente despreparadas para qualquer tarefa de dissuasão. Por isso, o governo brasileiro retoma, agora, os investimentos na área militar, prevendo já para 2008 um aumento de 50% no orçamento das Forças Armadas[10]. Mas o ministro brasileiro da Defesa, Nelson Jobim, não pretende apenas o reaparelhamento das Forças Armadas brasileiras. Pretende, isso sim, que os produtos bélicos importados do exterior sejam importados de fornecedores que ofereçam transferência de tecnologia, de modo a vincular a defesa nacional ao desenvolvimento nacional, a toda a política industrial, isto é, à criação de um parque industrial de defesa, de acordo com um plano concreto de estratégia de defesa[11]. É neste sentido que se torna necessário estabelecer uma política de defesa clara, que justifique o actual gasto com armamento; razão que levou o presidente Lula a editar, a 6 de setembro de 2007, um decreto que criou o Comité Ministerial da Formulação da estratégia Nacional de Defesa, até porque a Política Nacional de Defesa, já transformada em lei, estabelece que a estratégia militar brasileira é dissuasória, isto é, defensiva[12].
É evidente que toda esta movimentação bélica tem por detrás a geopolítica da região, previsivelmente alterada em função dos avanços militaristas de Chávez, que não esconde a ambição de concretizar os planos que tem para a Bolívia, em acordo com Evo Morales. Situação que tem causado inquietação nos meios políticos e militares brasileiros.
Por outro lado, a crise energética do Brasil, onde falta claramente gás para o crescimento, poderá levar o presidente Lula a investir novamente na Bolívia, podendo o país ficar dependente do imprevisível Morales.
Naturalmente, o poder de Chávez, assente no elevado preço do petróleo, dá-lhe a liberdade de actuar de modo prepotente e arrogante face aos seus vizinhos. E face, mesmo, a outros países, que na Venezuela têm fortes interesses económicos, assim estando na mão de Hugo Chávez. Foi assim que, em Santiago do Chile, no último dia da XVII Cimeira Ibero-Americana (9 e 10 de Novembro de 2007), Chávez exasperou o rei Juan Carlos, insultou o antigo chefe do governo espanhol, José María Aznar, acusando-o de ter dado apoio ao fracassado golpe de Estado anti-chavista de Abril de 2002, enxovalhou o presidente do Partido Popular espanhol, Mariano Rajoy, e acusou o actual primeiro-ministro, José Luís Rodriguez Zapatero, de apoiar personalidades semelhantes a Hitler. A tudo isto responderam Zapatero e o rei Juan Carlos, criando um incidente diplomático que tem saído caro à diplomacia (económica) espanhola.
Madrid tem procurado salvaguardar a forte presença de empresas espanholas na Venezuela, sobretudo nos sectores da banca, seguros e energia. Porém, a verdade é que os quase € 94mil milhões de investimentos espanhóis na Venezuela em 2006[13] estão sujeitos ao arbítrio de Chávez, com os poderes reforçados pela nova Constituição, ainda que na medida em que a alta do preço do petróleo o permita. Enquanto isso, a diplomacia portuguesa pouco refere sobre o incidente de Santiago do Chile, na tentativa de defender a imensa comunidade portuguesa no país com quem assinou, a 20 de Novembro de 2007, quando Chávez esteve em visita oficial a Portugal, um acordo energético, complementar ao assinado em Outubro passado, com a participação, designadamente, da GALP Energia, firmando a relação da Galp com a Petróleos da Venezuela[14], paralela à relação com a russa Gasprom.
Apesar de toda a pujança demonstrada por Hugo Chávez, traduzida numa arrogância populista e personalista que o transforma numa figura controversa, o presidente venezuelano começa a enfrentar as primeiras dificuldades na arena internacional, em virtude da não ratificação do Tratado de Adesão da Venezuela ao Mercosul pelo Congresso Brasileiro. É verdade que foi o Brasil quem convidou a Venezuela a integrar o grupo regional, numa tentativa de Lula de, com a Venezuela presa a compromissos formais de carácter regional, conseguir controlar Chávez e, assim, manter intocável a preponderância sub-regional do Brasil.
Efectivamente, o certo é que a actuação nacional-petropopulista de esquerda de Chávez lhe tem rendido dificuldades na ratificação do Tratado de Adesão ao Mercosul, assinado em Julho de 2006, por parte do Brasil e do Paraguai, alegando ser a venezuela de Chávez tudo menos um país democrático, não obstante ter Chávez sido eleito democraticamente pelos Venezuelanos, com elevado índice de aprovação.
De facto, o Congresso Brasileiro não parece disposto a ratificar o Tratado de Adesão, alegando que a Venezuela fere a cláusula de defesa democrática do Tratado de Assunção. E isto, muito embora o tratado tenha sido aprovado pela Comissão de Relações Exteriores da Câmara dos Deputados, a 24 de Outubro de 2007, em função da necessidade do Brasil controlar Chávez e assegurar os interesses económicos e energéticos do país.
Na realidade, a democracia venezuelana, mascarada de plebiscitos e referendos, serve-se destes instrumentos democráticos para destruir a democracia. Ao mesmo tempo, pretende uma unidade sul-americana à maneira de Bolívar, porém sob sua hegemonia. O mundo, hoje, é todavia outro. Mas os visionários continuam a ler nas entrelinhas da História. Napoleão fez da Europa uma só nação. Acabou os seus dias prisioneiro dos Britânicos na Ilha de Santa Helena. Hitler quis criar um mundo nazi. Acabou por suicidar-se enquanto os Soviéticos conquistavam Berlim.
[1] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; A Reeleição de Hugo Chávez na Venezuela, in Reflexões Brasilianistas e Sul-Americanistas, http://www.brasil-americadosul.blogspot.com/ .
[2] Cfr. MALTEZ, José Adelino; Entre Chávez e Hitler, Venha o Diabo e Escolha o Fornecedor de Gás Natural!, in Sobre o Tempo que Passa, http://www.tempoquepassa.blogspot.com/ .
[3] Cfr. Idem, ibidem.
[4] De facto, Chávez reedita Simón Bolívar, o Libertador, fazendo do Mundo Novo (América do Sul) uma só nação, como afirmou Bolívar em 1815, na “Carta da Jamaica”.
[5] Cfr. À Sombra de «El Supremo», in Revista Veja, edição 2033, ano 40, nº44, 7 de Novembro de 2007, pp.87.
[6] Cfr. Idem, ibidem.
[7] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; As Novas Parcerias Estratégicas do Brasil, in Reflexões Brasilianistas e Sul-Americanistas, http://www.brasil-americadosul.blogspot.com/ .
[8] O Brasil, ainda que inicialmente tivesse ponderado não aderir ao projecto de Hugo Chávez, concluiu depois que não poderia ficar de fora de tal iniciativa, sob pena de ver a hegemonia que detém sobre o sub-continente sul-americano definitiva e rapidamente substituída pela venezuelana.
[9] Cfr. Notícia de Raquel Ulhôa, Para Sarney, Venezuela deve ficar fora do Mercosul, in Valor Econômico, O Globo Online.
[10] Cfr. O Brasil se Arma, in Revista Isto É, nº1985, ano 30, 14 de Novembro de 2007, pp.30.
[11] A este respeito, o ministro Nelson Jobim iniciará, em dezembro próximo, pelo Chile, uma série de visitas aos países sul-americanos que durará, previsivelmente, todo o primeiro semestre de 2008. O objectivo da digressão é discutir com os vizinhos um plano de segurança e defesa para o sub-continente, funcionando como contra-ofensiva diplomática à militarização da Venezuela.
[12] Cfr. O Brasil se Arma, in Revista Isto É, nº1985, ano 30, 14 de Novembro de 2007, pp. 31-32.
[13] Consolidando a entrada de capitais espanhóis na Venezuela iniciada na década de 1990.
[14] A Galp e a PDVSA assinaram, no dia 20 de Novembro de 2007, um acordo de parceria para a área do gás natural, que envolve a participação da petrolífera portuguesa na produção de gás natural liquefeito na Venezuela, mais concretamente no terminal de liquefação de gás que a PDVSA pretende instalar no Complexo Industrial Gran Mariscal Ayacucho. Trata-se de um dos projectos que as duas petrolíferas se compremetram, em Outubro, a estudar com vista a transformarem-se em parceiros energéticos. Esta parceria, com o Complexo de Ayacucho permite à Venezuela aumentar as suas exportações de gás, transportando-o por barco para os mercados de destino. Para a Galp, a parceria representa a entrada num negócio muito promissor, em virtude da escassez de capacidade de transporte e falta de unidades de liquefação no mundo, significando, ainda, para Portugal, uma garantia de aprovisionamento de gás.
2 comments:
Uma perspectiva enquadrada no âmbito de uma análise da realidade de uma política interna cujas consequências externas se estão a verificar, tal como é aqui referido neste artigo.
Evidentemente que não devemos permanecer na indiferença, no mais do mesmo, e sim marcar como é aqui feito pela Raquel Patrício, uma visão das relações internacionais num dos seus níveis de análise.
Vou seguir atentamente o que aqui se produz.
Marco António Martins
Ao Encontro do Tempo
http://aoencontrodotempo.blogspot.com/
Análise tendenciosa e baseada em inúmeras falácias. Um texto essencialmente burguês, em que o autor levanta o dedo para criticar e apontar situações políticas realizadas pelos mais fracos, ignorando o fato da opressão sofrida pelos países latinos.
Típico discurso de quem detém o poder e utiliza seu modelo de normas de modo universal, de modo a permanecer no topo.
Neoliberal sim!
E, ou alienado ou mal intencionado.
Post a Comment