A DINASTIA KIRCHNER
No dia 28 de Outubro de 2007, os Argentinos foram a votos para escolher o sucessor do presidente Néstor Kirchner. A vitória da senadora Cristina Kirchner, pelo movimento Força para a Vitória, mulher do actual presidente, não surpreendeu, embora desconcerte os analistas internacionais.
Liderando as sondagens, nas vésperas do escrutínio, com 43% dos votos, a folgada posição de Cristina à frente das pesquisas de intenção de voto nem sequer oscilou com a crise energética e os escândalos de corrupção envolvendo o governo do marido. Sendo certo que, na Argentina, ganha-se com 45% dos votos, ou com 40% desde que o segundo colocado não chegue aos 30%, Cristina foi eleita com 44,88% dos votos válidos, secundada por Elisa Carrió, da Coligação Cívica, com 22,97%[1]. E isto, embora nunca tenha anunciado qualquer plano de governo.
Apoiada pela Coligação Cívica, Elisa Carrió, também assumida como peronista, foi deputada nacional pela Província do Chaco de 1995 a 2003, ano em que se transformou na primeira candidata feminina à Presidência da Argentina, obtendo cerca de três milhões de votos. Apostando no combate à corrupção, Carrió centrou toda a sua campanha eleitoral nas promessas de criar um gabinete transparente e de diminuir as diferenças entre ricos e pobres.
Por seu lado, Roberto Lavagna, ex-ministro da Economia, apesar de considerado o símbolo da recuperação económica iniciada em 2001, não teve mais que 16,90%[2] dos votos. Candidato pela União Nação Avançada, também assumido como peronista, Lavagna entrou em litígio com Kirchner em 2005, demitindo-se em Dezembro desse ano e transformando-se num dos mais ferozes críticos do governo de Néstor Kirchner. Não obstante o papel desempenhado no verdadeiro milagre económico argentino e a habilidade demonstrada para negociar com as Instâncias Financeiras Internacionais a gigantesca dívida externa do país, não conseguiu vencer Cristina Kirchner, nem sequer levá-la a segundo turno.
Evidentemente, não está em causa a capacidade governativa de Cristina, cujo perfil de autonomia é amplamente reconhecido. Ademais, a sua formação política é superior à média dos políticos argentinos e do seu próprio marido, em relação a quem tem, também, bastante mais autoridade. Vale lembrar os problemas que, como senadora, criou ao então presidente Menem, sendo a única a opor-se-lhe com frequência. Eventualmente, a ausência de experiência de gestão seja relevante, já que a actuação de Cristina tem vindo a ser legislativa.
O que importa, sim, atestar, é a forma como decorreu e foi conduzida a campanha eleitoral de Cristina Kirchner. Evocando com frequência Eva Perón, a quem gosta de se comparar na versão da Eva Lutadora, Cristina transformou a Casa Rosada, o Palácio do Governo, em sede de campanha, convertendo ministros e secretários do presidente em seus assessores eleitorais, utilizando carros e aviões oficiais para deslocações de campanha, ou alugando-os com dinheiros públicos, fazendo-se acompanhar de fotógrafos oficiais, funcionários do cerimonial, tradutores e assessores da Presidência.
Diversas foram as vozes que, na Argentina, se levantaram contra a utilização desses recursos em campanha eleitoral, acusando-a de delito de uso irregular de fundos públicos, violação do código penal, infracção do código eleitoral e da lei de financiamento dos partidos políticos, chegando a candidata Cristina a ser denunciada na Justiça. Além do mais, Cristina não foi eleita por sufrágio interno no seu partido, tendo sido escolhida pelo marido, em violação do código eleitoral.
A questão vai muito além da conjuntural eleição de Cristina, por mais regras que a campanha eleitoral tenha infringido. A questão é estrutural e remonta ao peronismo. É impossível entender o autoritarismo do casal Kirchner sem antes se compreender o autoritarismo do peronismo, que nasceu na Argentina, em 1945, com uma identificação social mais do que política.
De facto, Cristina e Néstor Kirchner são, antes de mais, peronistas. Agem, pois, como peronistas, para quem o poder é para ser exercido e não partilhado. Por conseguinte, a escolha do sucessor do ainda presidente Néstor Kirchner pelo próprio presidente, não é acto isolado. Para o peronismo, quem governa o país manda no partido, de acordo com o princípio do líder, pelo que a escolha de Cristina para suceder a Néstor configura-se numa sucessão dinástica à moda de Juan Domingo Perón, totalmente pacífica entre os peronistas, que hoje chegam a ser, segundo Andrés Malamud, politólogo argentino, investigador do Instituto de Ciências Sociais, cerca de 40% da população argentina.
Na realidade, o peronismo nunca propôs um projecto propriamente coerente. De estilo caudilhista, o peronismo instrumentaliza a democracia e endeusa sistematicamente os líderes nacionais, invertendo a lógica do sistema político-partidário. Se, antes da crise de 2001-2002, o sistema de partidos argentino não era já muito claro, depois dessa crise tornou-se totalmente incompreensível. A queda do governo de Fernando de la Rúa, em Dezembro de 2001, provocou a falência do Partido Radical – o típico partidos das massas. No vazio deixado pelo desaparecimento desse partido político, diversos candidatos surgiram procurando, de modo anárquico, espaços políticos alternativos. É evidente que o Partido Justicialista (peronista) não escapou à crise partidária. Porém, com uma estrutura interna extremamente flexível e pragmática, o Partido Justicialista conseguiu debelar a crise e manter-se. A eleição de Néstor Kirchner, em Dezembro de 2003, é o melhor exemplo dessa capacidade de manutenção. Na segunda volta dessas eleições, Néstor disputou com o ex-presidente Carlos Menem, também de tradição peronista. Dois candidatos que, à moda de Perón, dispensaram sufragar-se internamente pelo partido político, no processo de validação clássica da democracia partidária.
A eleição de Cristina Kirchner seguiu esta mesma lógica, à margem, pois, do funcionamento tradicional dos partidos políticos. Também ela não foi sufragada internamente pelo Partido Justicialista, sendo simplesmente escolhida como candidata pelo ainda presidente Néstor Kirchner. É esta situação que leva o politólogo da Universidade de Buenos Aires, Nicolas Patrici, a falar da passagem da democracia partidária para a democracia pós-partidária. Uma democracia que altera a lógica da política tradicional, sustentando uma nova forma de fazer política: uma “democracia de audiências”, na expressão de Patrici, que põe em jogo “líderes de audiência que usam os partidos como instrumentos e movem-se num espaço político difuso em que os apoios são heterogéneos (...) os seus programas ultrapassam os programas clássicos dos partidos e as suas candidaturas dependem do posicionamento que conseguem nas sondagens de opinião. Os partidos políticos tornam-se estruturas difusas, gelatinosas. Já não têm um papel de primeiro plano nas eleições. Isto significa que a Argentina é uma democracia que deixou para trás a lógica partidária tradicional. Uma democracia em que se enfrentam líderes de audiência que constroem a sua legitimidade sobre a opinião pública”[3], servindo-se pragmaticamente da estrutura da apoio dos partidos políticos tradicionais.
Tal como em 1951 Perón quis impor a mulher, Eva Duarte, como candidata a vice-presidente, sem êxito, e em 1973 fez eleger, para esse cargo, a então mulher, Maria Estela Martinez, conhecida por Isabel Perón, que viria a suceder-lhe na Presidência após a sua morte, agora foi a vez de Néstor Kirchner impor Cristina como sucessora.
Imposição democraticamente escrutinada, já que Cristina venceu, confirmando as sondagens, logo na primeira volta.
Na realidade, o povo argentino confia no casal Kirchner. Afinal, foi Néstor Kirchner quem retirou o país da maior crise económica de sempre, vendo agora em Cristina a candidata que, tendo a ajuda do marido e dando-se bem com os governos europeus, está mais bem preparada para continuar o trabalho iniciado por Néstor, não obstante os críticos apontarem constantemente o vazio de ideias dos Kirchner, que não expõem planos de governo, não têm projecto, não dão entrevistas, recusam debates e controlam a imprensa, numa total traição ao peronismo. Apenas no encerramento da campanha Cristina quebrou o silêncio, falando à imprensa e dando três entrevistas.
Fundamentalmente, é, efectivamente, a continuidade que está em causa. Traumatizados com a recente crise económica, tudo o que os Argentinos querem agora é a estabilidade económica. E foi Néstor Kirchner quem conseguiu alcançar essa proeza. Porém, a memória do corralito continua bem viva na mente dos Argentinos, assim como o caminho que a ele conduziu. A 10 de Dezembro de 1999, Fernando de la Rúa substituiu Carlos Saúl Menem na Presidência argentina, desgastado por escândalos de corrupção após dez anos de mandato. Na linha ortodoxa do peronismo de de la Rúa, o ministro da Economia então empossado, Domingo Cavallo, lançou, em 2001, um plano com restrições à retirada de depósitos, o corralito, como forma de enfrentar a enorme fuga de capitais e os levantamentos bancários em massa que assolavam a Argentina há vários meses. A revolta popular estalou com uma onda de saques, levando o país, aflito, a falar do panelaço. A 13 de Dezembro era decretada a greve geral e a Argentina paralisava, levando o governo a decretar o estado de sítio cinco dias depois. Cavallo demitiu-se e de la Rúa renunciou à Presidência, fazendo a instabilidade política somar-se à crise económica e social, sob o aspecto da ruptura institucional e/ou eclosão de uma guerra social.
Passada a dança das cadeiras, que deu à Argentina cinco presidentes em duas semanas, o senador peronista Eduardo Duhalde (2002-2003) era eleito pelo Parlamento, com ampla maioria, para concluir o mandato de Fernando de la Rúa, que terminaria em Dezembro de 2003.
O novo governo rompeu, imediatamente, com o regime de convertibilidade que igualara o Peso ao Dólar norte-americano durante dez anos e, considerando esgotado o Institucionalismo Neoliberal que conduzira a Argentina ao caos, procedeu à peseficação (conversão dos depósitos e dívidas para a moeda local).
Com a substituição de Eduardo Duhalde por Néstor Kirchner, a 10 de Dezembro de 2003, a recuperação económica tornar-se-ia ainda mais visível, face ao estilo autoritário de governo de Kirchner. Seguramente, de todos os presidentes constitucionais, desde o retorno da Argentina à democracia, em 1983, Kirchner foi o que mais poder acumulou no Executivo, em detrimento do Judiciário e do Legislativo, sobretudo a partir das eleições legislativas de Outubro de 2005, quando o domínio do Congresso então alcançado lhe permitiu começar a emitir diversas leis polémicas. Em seu estilo autoritário, à moda de Domingo Perón, Kirchner foi eliminando as liberdades da oposição, da imprensa e dos demais poderes, ao mesmo tempo que fez aumentar as pressões sobre o Congresso, os juízes e a imprensa. Conseguiu, desta forma, que o Executivo adquirisse poderes especiais para modificar o orçamento nacional e usar o dinheiro previsto sem necessitar de autorização do Congresso. Conseguiu, ainda, segundo projecto de lei formulado pela senadora Cristina Kirchner, fazer aprovar a reforma do Conselho da Magistratura e do Jurado de Julgamento de Juízes, conferindo ao Executivo o controlo sobre o sistema judicial, designadamente sobre a selecção, designação e destituição de juízes. Enquanto isso, foi actuando na Economia para debelar a crise, através de diversas operações de maquiagem que, sem alterarem a essência, resultaram numa melhora dos indicadores, como por exemplo a intervenção directa no Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) para controlar o índice de preços num jogo de maquiagem que levaria o povo indignado a falar do Indek (K de Kirchner).
Não obstante estas formas de actuação pouco ortodoxas, a verdade é que, com Kirchner, a Argentina entrou numa fase de crescimento económico, de combate à pobreza e de redução do desemprego. Fase que, durando há já cinco anos, os Argentinos querem ver continuada. Daí que a eleição de Cristina, numa disputa eleitoral pouco quente, não tenha sido nada surpreendente. Os Argentinos mostraram, de facto, nas urnas, desejar dar seguimento aos cinco anos de recuperação económica do país; mostraram, claramente, apostar na política de Néstor Kirchner, agora corporizada na figura da mulher, Cristina.
Na realidade, os Argentinos esperam que Cristina mantenha a trilha económica do marido: o Peso desvalorizado para incentivar as exportações, altos subsídios para alimentar o consumo interno, uma política fiscal rigorosa e o controlo da inflação (seguindo o caminho que o ainda presidente Néstor terá de abrir, tomando medidas impopulares para evitar que a inflação atinja os três dígitos).
De facto, a sucessão ocorre num cenário amplamente favorável aos planos da dinastia Kirchner, que são, tudo indica, Néstor suceder a Cristina em 2011 e assim por diante. Governando em fase de recuperação da economia, Kirchner beneficiou de uma grande aceitação popular. É evidente que o período de bonança poderá durar por mais quatro anos, mas os economistas prevêem dificuldades já no curto prazo. Afinal, Cristina terá de arcar com as consequências das decisões populistas adoptadas pelo marido para acelerar o crescimento económico da Argentina. No último ano, o aumento exponencial do consumo e dos gastos públicos fez com que a inflação real – e não a mascarada pelo governo – alcançasse quase 20%, enquanto os investimentos externos diminuíram brutalmente em consequência da hostilidade de Kirchner face às empresas estrangeiras e da política de controlo dos preços. Enfrentar, pois, a galopante inflação, assim como um excedente orçamental em diminuição constante e, ainda, a crise energética, serão seguramente os desafios mais prementes da nova presidente da Argentina.
Por enquanto, porém, os efeitos destes problemas não foram suficientes para alterar a preferência dos Argentinos pelo casal Kirchner, já que a Argentina se recupera, economicamente, de forma surpreendente. Depois de ultrapassada a crise económica, a economia do país tem crescido a taxas que rondam os 9% ao ano. O desemprego baixou para cerca de 7,7% (no mês de Setembro de 2007) e os elegantes cafés de Buenos Aires estão cheios de turistas. Hoje, 27% dos Argentinos vivem em situação de pobreza, enquanto, há cinco anos atrás, essa percentagem era de mais da metade da população do país.
Em meio a ambiente tão favorável, nada nem ninguém faz o casal Kirchner estremecer ante prognósticos menos optimistas. Nas últimas semanas, Néstor voltou a insistir nas medidas populistas para estimular ainda mais o consumo, pressionou os bancos a oferecer empréstimos que, considerando a taxa de inflação real, terão juros negativos e pressionou as redes de supermercado a congelar voluntariamente os preços.
Evidentemente, suportado numa política assistencialista, que concede a reforma a 1,4 milhão de pessoas que nunca contribuíram para a Segurança Social (buscando recursos no aumento da arrecadação de impostos e no crescimento enorme da exportação de grãos, sobretudo soja), o casal Kirchner mostra-se totalmente indiferente aos riscos que a política económica adoptada contempla. Até mesmo a economista e deputada Mercedes Marco del Pont, que se prepara para assumir o Ministério da Economia no governo de Cristina Kirchner, se mostra compactuante com o plano de governo de Cristina, o qual assenta sobre o aumento da intervenção do Estado na Economia.
A grande alteração que a actual senadora Cristina imprimirá, relativamente à Administração do marido, refere-se à política externa, já que, actualmente, a Argentina não tem uma política voltada para o mundo. Quase sem relações internacionais, o país está isolado e perde influência; estado de coisas que Cristina pretende alterar, relançando as relações da Argentina com a sociedade internacional e recuperando o avanço que, no seio do Mercosul, o Brasil conquistou nos últimos anos. Efectivamente, recentemente, Cristina visitou e faz-se fotografar com Lula da Silva, Ângela Merckel, José Luís Zapatero e Nicolas Sarkozy, embora não deixe de parte os sectores regionais mais radicais, como Hugo Chávez, afirmando-se defensora da integração regional e preferencialmente adepta de Chávez do que de George Bush. Evidentemente, a abertura da Argentina ao exterior será benéfica para a economia do país, pois é necessário desvanecer as desconfianças dos investidores estrangeiros, que nem na Bolsa de Buenos Aires se aventuram muito.
Vencedora em primeiro turno com forte percentagem de apoio – a diferença mais ampla entre o primeiro e o segundo colocados desde o regresso da democracia ao país, em 1983 – a Rainha Cristina, como já é chamada por muitos, terá a força suficiente, no plano interno, para governar a Argentina. Mas terá, igualmente, força no plano externo para reactivar a inserção internacional do país, sendo uma esperança para todos aqueles que, na América do Sul, querem enfrentar em conjunto as questões regionais e impulsionar a integração sul-americana, que assim poderá vir a ter mais força nos assuntos multilaterais. Mas será, também, uma ameaça para aqueles que, como o Brasil, detêm a hegemonia regional, já que Cristina parece querer fazer renascer a pujança argentina de outrora. Para já, espera-se a participação do casal Kirchner na Cimeira Iberoamericana que terá lugar já nesta primeira semana de Novembro, em Santiago do Chile.
[1] Notícia da BBC Brasil, de 29 de Outubro de 2007.
[2] Cfr. Idem.
[3] Cfr. PATRICI, Nicolas; “Uma Democracia Pós-Partidária”, in Courrier Internacional, nº 134, 26/10/07 a 1/11/07, pp. 23, incluído no Dossiê Eleições na Argentina.
No dia 28 de Outubro de 2007, os Argentinos foram a votos para escolher o sucessor do presidente Néstor Kirchner. A vitória da senadora Cristina Kirchner, pelo movimento Força para a Vitória, mulher do actual presidente, não surpreendeu, embora desconcerte os analistas internacionais.
Liderando as sondagens, nas vésperas do escrutínio, com 43% dos votos, a folgada posição de Cristina à frente das pesquisas de intenção de voto nem sequer oscilou com a crise energética e os escândalos de corrupção envolvendo o governo do marido. Sendo certo que, na Argentina, ganha-se com 45% dos votos, ou com 40% desde que o segundo colocado não chegue aos 30%, Cristina foi eleita com 44,88% dos votos válidos, secundada por Elisa Carrió, da Coligação Cívica, com 22,97%[1]. E isto, embora nunca tenha anunciado qualquer plano de governo.
Apoiada pela Coligação Cívica, Elisa Carrió, também assumida como peronista, foi deputada nacional pela Província do Chaco de 1995 a 2003, ano em que se transformou na primeira candidata feminina à Presidência da Argentina, obtendo cerca de três milhões de votos. Apostando no combate à corrupção, Carrió centrou toda a sua campanha eleitoral nas promessas de criar um gabinete transparente e de diminuir as diferenças entre ricos e pobres.
Por seu lado, Roberto Lavagna, ex-ministro da Economia, apesar de considerado o símbolo da recuperação económica iniciada em 2001, não teve mais que 16,90%[2] dos votos. Candidato pela União Nação Avançada, também assumido como peronista, Lavagna entrou em litígio com Kirchner em 2005, demitindo-se em Dezembro desse ano e transformando-se num dos mais ferozes críticos do governo de Néstor Kirchner. Não obstante o papel desempenhado no verdadeiro milagre económico argentino e a habilidade demonstrada para negociar com as Instâncias Financeiras Internacionais a gigantesca dívida externa do país, não conseguiu vencer Cristina Kirchner, nem sequer levá-la a segundo turno.
Evidentemente, não está em causa a capacidade governativa de Cristina, cujo perfil de autonomia é amplamente reconhecido. Ademais, a sua formação política é superior à média dos políticos argentinos e do seu próprio marido, em relação a quem tem, também, bastante mais autoridade. Vale lembrar os problemas que, como senadora, criou ao então presidente Menem, sendo a única a opor-se-lhe com frequência. Eventualmente, a ausência de experiência de gestão seja relevante, já que a actuação de Cristina tem vindo a ser legislativa.
O que importa, sim, atestar, é a forma como decorreu e foi conduzida a campanha eleitoral de Cristina Kirchner. Evocando com frequência Eva Perón, a quem gosta de se comparar na versão da Eva Lutadora, Cristina transformou a Casa Rosada, o Palácio do Governo, em sede de campanha, convertendo ministros e secretários do presidente em seus assessores eleitorais, utilizando carros e aviões oficiais para deslocações de campanha, ou alugando-os com dinheiros públicos, fazendo-se acompanhar de fotógrafos oficiais, funcionários do cerimonial, tradutores e assessores da Presidência.
Diversas foram as vozes que, na Argentina, se levantaram contra a utilização desses recursos em campanha eleitoral, acusando-a de delito de uso irregular de fundos públicos, violação do código penal, infracção do código eleitoral e da lei de financiamento dos partidos políticos, chegando a candidata Cristina a ser denunciada na Justiça. Além do mais, Cristina não foi eleita por sufrágio interno no seu partido, tendo sido escolhida pelo marido, em violação do código eleitoral.
A questão vai muito além da conjuntural eleição de Cristina, por mais regras que a campanha eleitoral tenha infringido. A questão é estrutural e remonta ao peronismo. É impossível entender o autoritarismo do casal Kirchner sem antes se compreender o autoritarismo do peronismo, que nasceu na Argentina, em 1945, com uma identificação social mais do que política.
De facto, Cristina e Néstor Kirchner são, antes de mais, peronistas. Agem, pois, como peronistas, para quem o poder é para ser exercido e não partilhado. Por conseguinte, a escolha do sucessor do ainda presidente Néstor Kirchner pelo próprio presidente, não é acto isolado. Para o peronismo, quem governa o país manda no partido, de acordo com o princípio do líder, pelo que a escolha de Cristina para suceder a Néstor configura-se numa sucessão dinástica à moda de Juan Domingo Perón, totalmente pacífica entre os peronistas, que hoje chegam a ser, segundo Andrés Malamud, politólogo argentino, investigador do Instituto de Ciências Sociais, cerca de 40% da população argentina.
Na realidade, o peronismo nunca propôs um projecto propriamente coerente. De estilo caudilhista, o peronismo instrumentaliza a democracia e endeusa sistematicamente os líderes nacionais, invertendo a lógica do sistema político-partidário. Se, antes da crise de 2001-2002, o sistema de partidos argentino não era já muito claro, depois dessa crise tornou-se totalmente incompreensível. A queda do governo de Fernando de la Rúa, em Dezembro de 2001, provocou a falência do Partido Radical – o típico partidos das massas. No vazio deixado pelo desaparecimento desse partido político, diversos candidatos surgiram procurando, de modo anárquico, espaços políticos alternativos. É evidente que o Partido Justicialista (peronista) não escapou à crise partidária. Porém, com uma estrutura interna extremamente flexível e pragmática, o Partido Justicialista conseguiu debelar a crise e manter-se. A eleição de Néstor Kirchner, em Dezembro de 2003, é o melhor exemplo dessa capacidade de manutenção. Na segunda volta dessas eleições, Néstor disputou com o ex-presidente Carlos Menem, também de tradição peronista. Dois candidatos que, à moda de Perón, dispensaram sufragar-se internamente pelo partido político, no processo de validação clássica da democracia partidária.
A eleição de Cristina Kirchner seguiu esta mesma lógica, à margem, pois, do funcionamento tradicional dos partidos políticos. Também ela não foi sufragada internamente pelo Partido Justicialista, sendo simplesmente escolhida como candidata pelo ainda presidente Néstor Kirchner. É esta situação que leva o politólogo da Universidade de Buenos Aires, Nicolas Patrici, a falar da passagem da democracia partidária para a democracia pós-partidária. Uma democracia que altera a lógica da política tradicional, sustentando uma nova forma de fazer política: uma “democracia de audiências”, na expressão de Patrici, que põe em jogo “líderes de audiência que usam os partidos como instrumentos e movem-se num espaço político difuso em que os apoios são heterogéneos (...) os seus programas ultrapassam os programas clássicos dos partidos e as suas candidaturas dependem do posicionamento que conseguem nas sondagens de opinião. Os partidos políticos tornam-se estruturas difusas, gelatinosas. Já não têm um papel de primeiro plano nas eleições. Isto significa que a Argentina é uma democracia que deixou para trás a lógica partidária tradicional. Uma democracia em que se enfrentam líderes de audiência que constroem a sua legitimidade sobre a opinião pública”[3], servindo-se pragmaticamente da estrutura da apoio dos partidos políticos tradicionais.
Tal como em 1951 Perón quis impor a mulher, Eva Duarte, como candidata a vice-presidente, sem êxito, e em 1973 fez eleger, para esse cargo, a então mulher, Maria Estela Martinez, conhecida por Isabel Perón, que viria a suceder-lhe na Presidência após a sua morte, agora foi a vez de Néstor Kirchner impor Cristina como sucessora.
Imposição democraticamente escrutinada, já que Cristina venceu, confirmando as sondagens, logo na primeira volta.
Na realidade, o povo argentino confia no casal Kirchner. Afinal, foi Néstor Kirchner quem retirou o país da maior crise económica de sempre, vendo agora em Cristina a candidata que, tendo a ajuda do marido e dando-se bem com os governos europeus, está mais bem preparada para continuar o trabalho iniciado por Néstor, não obstante os críticos apontarem constantemente o vazio de ideias dos Kirchner, que não expõem planos de governo, não têm projecto, não dão entrevistas, recusam debates e controlam a imprensa, numa total traição ao peronismo. Apenas no encerramento da campanha Cristina quebrou o silêncio, falando à imprensa e dando três entrevistas.
Fundamentalmente, é, efectivamente, a continuidade que está em causa. Traumatizados com a recente crise económica, tudo o que os Argentinos querem agora é a estabilidade económica. E foi Néstor Kirchner quem conseguiu alcançar essa proeza. Porém, a memória do corralito continua bem viva na mente dos Argentinos, assim como o caminho que a ele conduziu. A 10 de Dezembro de 1999, Fernando de la Rúa substituiu Carlos Saúl Menem na Presidência argentina, desgastado por escândalos de corrupção após dez anos de mandato. Na linha ortodoxa do peronismo de de la Rúa, o ministro da Economia então empossado, Domingo Cavallo, lançou, em 2001, um plano com restrições à retirada de depósitos, o corralito, como forma de enfrentar a enorme fuga de capitais e os levantamentos bancários em massa que assolavam a Argentina há vários meses. A revolta popular estalou com uma onda de saques, levando o país, aflito, a falar do panelaço. A 13 de Dezembro era decretada a greve geral e a Argentina paralisava, levando o governo a decretar o estado de sítio cinco dias depois. Cavallo demitiu-se e de la Rúa renunciou à Presidência, fazendo a instabilidade política somar-se à crise económica e social, sob o aspecto da ruptura institucional e/ou eclosão de uma guerra social.
Passada a dança das cadeiras, que deu à Argentina cinco presidentes em duas semanas, o senador peronista Eduardo Duhalde (2002-2003) era eleito pelo Parlamento, com ampla maioria, para concluir o mandato de Fernando de la Rúa, que terminaria em Dezembro de 2003.
O novo governo rompeu, imediatamente, com o regime de convertibilidade que igualara o Peso ao Dólar norte-americano durante dez anos e, considerando esgotado o Institucionalismo Neoliberal que conduzira a Argentina ao caos, procedeu à peseficação (conversão dos depósitos e dívidas para a moeda local).
Com a substituição de Eduardo Duhalde por Néstor Kirchner, a 10 de Dezembro de 2003, a recuperação económica tornar-se-ia ainda mais visível, face ao estilo autoritário de governo de Kirchner. Seguramente, de todos os presidentes constitucionais, desde o retorno da Argentina à democracia, em 1983, Kirchner foi o que mais poder acumulou no Executivo, em detrimento do Judiciário e do Legislativo, sobretudo a partir das eleições legislativas de Outubro de 2005, quando o domínio do Congresso então alcançado lhe permitiu começar a emitir diversas leis polémicas. Em seu estilo autoritário, à moda de Domingo Perón, Kirchner foi eliminando as liberdades da oposição, da imprensa e dos demais poderes, ao mesmo tempo que fez aumentar as pressões sobre o Congresso, os juízes e a imprensa. Conseguiu, desta forma, que o Executivo adquirisse poderes especiais para modificar o orçamento nacional e usar o dinheiro previsto sem necessitar de autorização do Congresso. Conseguiu, ainda, segundo projecto de lei formulado pela senadora Cristina Kirchner, fazer aprovar a reforma do Conselho da Magistratura e do Jurado de Julgamento de Juízes, conferindo ao Executivo o controlo sobre o sistema judicial, designadamente sobre a selecção, designação e destituição de juízes. Enquanto isso, foi actuando na Economia para debelar a crise, através de diversas operações de maquiagem que, sem alterarem a essência, resultaram numa melhora dos indicadores, como por exemplo a intervenção directa no Instituto Nacional de Estatísticas e Censos (Indec) para controlar o índice de preços num jogo de maquiagem que levaria o povo indignado a falar do Indek (K de Kirchner).
Não obstante estas formas de actuação pouco ortodoxas, a verdade é que, com Kirchner, a Argentina entrou numa fase de crescimento económico, de combate à pobreza e de redução do desemprego. Fase que, durando há já cinco anos, os Argentinos querem ver continuada. Daí que a eleição de Cristina, numa disputa eleitoral pouco quente, não tenha sido nada surpreendente. Os Argentinos mostraram, de facto, nas urnas, desejar dar seguimento aos cinco anos de recuperação económica do país; mostraram, claramente, apostar na política de Néstor Kirchner, agora corporizada na figura da mulher, Cristina.
Na realidade, os Argentinos esperam que Cristina mantenha a trilha económica do marido: o Peso desvalorizado para incentivar as exportações, altos subsídios para alimentar o consumo interno, uma política fiscal rigorosa e o controlo da inflação (seguindo o caminho que o ainda presidente Néstor terá de abrir, tomando medidas impopulares para evitar que a inflação atinja os três dígitos).
De facto, a sucessão ocorre num cenário amplamente favorável aos planos da dinastia Kirchner, que são, tudo indica, Néstor suceder a Cristina em 2011 e assim por diante. Governando em fase de recuperação da economia, Kirchner beneficiou de uma grande aceitação popular. É evidente que o período de bonança poderá durar por mais quatro anos, mas os economistas prevêem dificuldades já no curto prazo. Afinal, Cristina terá de arcar com as consequências das decisões populistas adoptadas pelo marido para acelerar o crescimento económico da Argentina. No último ano, o aumento exponencial do consumo e dos gastos públicos fez com que a inflação real – e não a mascarada pelo governo – alcançasse quase 20%, enquanto os investimentos externos diminuíram brutalmente em consequência da hostilidade de Kirchner face às empresas estrangeiras e da política de controlo dos preços. Enfrentar, pois, a galopante inflação, assim como um excedente orçamental em diminuição constante e, ainda, a crise energética, serão seguramente os desafios mais prementes da nova presidente da Argentina.
Por enquanto, porém, os efeitos destes problemas não foram suficientes para alterar a preferência dos Argentinos pelo casal Kirchner, já que a Argentina se recupera, economicamente, de forma surpreendente. Depois de ultrapassada a crise económica, a economia do país tem crescido a taxas que rondam os 9% ao ano. O desemprego baixou para cerca de 7,7% (no mês de Setembro de 2007) e os elegantes cafés de Buenos Aires estão cheios de turistas. Hoje, 27% dos Argentinos vivem em situação de pobreza, enquanto, há cinco anos atrás, essa percentagem era de mais da metade da população do país.
Em meio a ambiente tão favorável, nada nem ninguém faz o casal Kirchner estremecer ante prognósticos menos optimistas. Nas últimas semanas, Néstor voltou a insistir nas medidas populistas para estimular ainda mais o consumo, pressionou os bancos a oferecer empréstimos que, considerando a taxa de inflação real, terão juros negativos e pressionou as redes de supermercado a congelar voluntariamente os preços.
Evidentemente, suportado numa política assistencialista, que concede a reforma a 1,4 milhão de pessoas que nunca contribuíram para a Segurança Social (buscando recursos no aumento da arrecadação de impostos e no crescimento enorme da exportação de grãos, sobretudo soja), o casal Kirchner mostra-se totalmente indiferente aos riscos que a política económica adoptada contempla. Até mesmo a economista e deputada Mercedes Marco del Pont, que se prepara para assumir o Ministério da Economia no governo de Cristina Kirchner, se mostra compactuante com o plano de governo de Cristina, o qual assenta sobre o aumento da intervenção do Estado na Economia.
A grande alteração que a actual senadora Cristina imprimirá, relativamente à Administração do marido, refere-se à política externa, já que, actualmente, a Argentina não tem uma política voltada para o mundo. Quase sem relações internacionais, o país está isolado e perde influência; estado de coisas que Cristina pretende alterar, relançando as relações da Argentina com a sociedade internacional e recuperando o avanço que, no seio do Mercosul, o Brasil conquistou nos últimos anos. Efectivamente, recentemente, Cristina visitou e faz-se fotografar com Lula da Silva, Ângela Merckel, José Luís Zapatero e Nicolas Sarkozy, embora não deixe de parte os sectores regionais mais radicais, como Hugo Chávez, afirmando-se defensora da integração regional e preferencialmente adepta de Chávez do que de George Bush. Evidentemente, a abertura da Argentina ao exterior será benéfica para a economia do país, pois é necessário desvanecer as desconfianças dos investidores estrangeiros, que nem na Bolsa de Buenos Aires se aventuram muito.
Vencedora em primeiro turno com forte percentagem de apoio – a diferença mais ampla entre o primeiro e o segundo colocados desde o regresso da democracia ao país, em 1983 – a Rainha Cristina, como já é chamada por muitos, terá a força suficiente, no plano interno, para governar a Argentina. Mas terá, igualmente, força no plano externo para reactivar a inserção internacional do país, sendo uma esperança para todos aqueles que, na América do Sul, querem enfrentar em conjunto as questões regionais e impulsionar a integração sul-americana, que assim poderá vir a ter mais força nos assuntos multilaterais. Mas será, também, uma ameaça para aqueles que, como o Brasil, detêm a hegemonia regional, já que Cristina parece querer fazer renascer a pujança argentina de outrora. Para já, espera-se a participação do casal Kirchner na Cimeira Iberoamericana que terá lugar já nesta primeira semana de Novembro, em Santiago do Chile.
[1] Notícia da BBC Brasil, de 29 de Outubro de 2007.
[2] Cfr. Idem.
[3] Cfr. PATRICI, Nicolas; “Uma Democracia Pós-Partidária”, in Courrier Internacional, nº 134, 26/10/07 a 1/11/07, pp. 23, incluído no Dossiê Eleições na Argentina.
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