A SURPREENDENTE (OU NÃO) DERROTA DE CHÁVEZ
Surpreendentemente (ou não), a proposta de reforma constitucional de Hugo Chávez foi rejeitada no Domingo, dia 2 de Dezembro de 2007, em referendo popular, por 50,7% dos votos (contra 49,29% favoráveis ao “sim” ), relativamente ao primeiro bloco de emendas , e por 51,05% (contra 49,29% de “sim”), no segundo bloco de emendas , numa abstenção que terá rondado os 44,11% . Sendo a primeira derrota eleitoral em quase nove anos de poder, Chávez reconheceu-a e pediu que o resultado fosse respeitado, não sem que, no discurso da derrota, se referisse aos adeptos do “não” como se de outra Venezuela se tratasse, numa preocupante divisão interna entre os apoiantes da “Revolução Bolivariana” e do “socialismo do século XXI” e os vendidos aos Estados Unidos e aos interesses capitalistas externos, prometendo batalha: “No se pudo por ahora, pero lo mantengo”.
É certo que o princípio da reforma constitucional, em si, não é um acto anti-democrático. Nas democracias parlamentares europeias, em que o poder está nas mãos de um primeiro-ministro, não existe um limite temporal de ocupação do cargo. Margareth Thatcher, Tony Blair e Felipe González são disso claro exemplo. Desde que a decisão seja tomada pelos eleitores e que as eleições sejam livres e transparentes, nada implica a contestação da reforma constitucional. O problema, na Venezuela, é que a decisão de Chávez surgiu num contexto em que nunca foi escamoteado o desejo do líder em tomar conta do poder no país por todo o tempo que considerasse necessário para produzir a transformação revolucionária da Venezuela.
Neste sentido, é evidente que o resultado do referendo representa uma vitória da democracia, da qual a alternância de poder e o pluralismo são partes integrantes, postas em causa pela «democracia directa» de Chávez. Por outro lado, a vitória do “não” significa que a proposta de Chávez de reduzir a jornada de trabalho, assim como a avalanche de programas assistencialistas e bem ainda o total controlo da oposição e a punição dos infractores, não foram suficientes para contrabalançar as duas medidas mais polémicas propostas pelo presidente venezuelano na reforma constitucional: a reeleição sem limite de mandatos consecutivos e a criação dos conceitos de propriedade social, propriedade colectiva e propriedade mista, ao lado da propriedade privada, o que possibilitaria o confisco de propriedades.
Milhares de Venezuelanos celebraram a vitória do "não", em cortejos de carros a buzinar, ocupando a Praça de França, num simbolismo difícil de esconder, dado ter sido esse o local onde, em 2002, dezenas de militares se declararam em desobediência ao regime de Chávez. Os apoiantes do “não” aplaudiram o RCTV, o mais antigo canal de televisão do país, forçado a deixar de transmitir em finais de Maio último, por não ter o líder venezuelano renovado a licença, argumentando ser o canal "golpista". Em contraste com o que acontecia naquela zona da capital e em diversos estados venezuelanos, as ruas do centro de Caracas, onde tradicionalmente se concentram os simpatizantes do presidente venezuelano, permaneceram vazias , em perfeita demonstração da primeira derrota de Chávez desde 1998.
Na verdade, a capacidade de iniciativa política (interna e externa) e o mediatismo do presidente venezuelano geraram a falsa impressão da sua real capacidade de influenciar efectivamente os processos políticos internos, assim como dos países vizinhos. A primeira derrota eleitoral de Chávez, numa reviravolta para muitos inesperada, inicia, assim, certamente, o declínio da ditadura chavista, cuja manipulação não conseguiu, sequer, impressionar os cidadãos venezuelanos.
O impacto do triunfo do “não” às propostas de Chávez foi seguramente menor do que teria sido a vitória do “sim”. Neste caso, o acirramento da polarização política dos vizinhos regionais da Venezuela provavelmente não poderia ser solucionado sem a mediação de actores externos, designadamente do Brasil de Lula, o único país sul-americano que merece de Chávez alguma atenção. Por outro lado, cresceriam as pressões internas no Brasil para que o Legislativo não aprovasse o ingresso definitivo da Venezuela no Mercosul – decisão que já tem merecido forte politização no Brasil, contaminando inclusive a agenda do Legislativo em matérias como a discussão em torno da CPMF. A vitória do “sim” colocaria, também, muito provavelmente, em pauta, a discussão, no Brasil, sobre a reeleição presidencial indefinida. A própria direcção do PT começou já a recolher assinaturas para a proposta de realização de um referendo a 31 de Janeiro de 2009 com vista a saber se a população é a favor de uma Assembleia Constituinte destinada a promover uma reforma constitucional que permita a reeleição para cargos maioritários, tendo em vista que as próximas presidenciais são em Outubro de 2010. Não que isso pudesse convencer os Brasileiros sobre um eventual terceiro mandato de Lula; mas fortaleceria certamente o argumento daqueles que, como o próprio presidente , pensam que a constitucionalização da reeleição indefinida não é assim tão excepcional nas práticas dos regimes políticos.
A vitória do “não” ao referendo sobre ter ou não uma doutrina oficial do Estado, querer ou não o “socialismo do século XXI”, colocou ao Brasil desafios outros, não menos relevantes. Não tanto em função de Chávez, porém da forma como a oposição venezuelana lidará agora com o resultado. De facto, a oposição venezuelana está bastante dividida entre aqueles que apelam a meios violentos e desestabilizadores para retirar Chávez do poder por qualquer forma; e aqueles que acreditam ser possível fazê-lo, a médio prazo, pela via eleitoral. Por enquanto, este sector é maioritário; no entanto, ambos rejeitam liminarmente Lula, porque vêem no apoio deste a Chávez um dos factores externos que mais contribuem para a permanência do líder venezuelano no poder. Naturalmente, Lula, que se esquivou de comentar o resultado do referendo, alegando tratar-se de uma questão interna da Venezuela, deverá agora mudar discretamente o seu apoio ao venezuelano, de modo a fazer do sector oposicionista que acredita na mudança pela via eleitoral, o seu interlocutor privilegiado. Afinal, será com essa oposição, em função de um eventual futuro governo sem Chávez, que Lula terá de negociar os interesses brasileiros na Venezuela, que não são poucos.
Evidentemente, a vitória do “não” mostrou que a legitimidade interna de Chávez para prosseguir a construção de uma “sociedade modelo” assente no projecto abstracto do “socialismo do século XXI” não está tão consolidada como à primeira vista parecia crer-se. Ao mesmo tempo, mostrou que os mecanismos de “checks and balances” no regime venezuelano funcionam melhor do que também parecia à primeira vista crer-se. E isto, não obstante o domínio que os partidários de Chávez detêm na Assembleia e do facto de a Justiça Eleitoral estar nas mãos de funcionários leais a Hugo Chávez. Finalmente, a vitória do “não” confirmou o pouco senso estratégico do líder venezuelano em matéria de política externa, ao acreditar, erradamente, que a região estava preparada para a exportação do seu modelo de sociedade e para a aceitação da sua liderança regional.
Já a discussão política interna que antecedeu o referendo mostrou um aspecto interessante da política venezuelana, que não se via desde o referendo presidencial de Agosto de 2004. Pela primeira vez desde então, o chavismo mostra-se enfraquecido. Não é apenas a oposição partidária que tem dificultado a vida a Chávez; a mesma oposição que, nas legislativas, havia optado pelo bloqueio, faltando em massa às eleições, adoptando, agora, uma táctica diferente. Não é, tampouco, a campanha anti-chavista que a ex-mulher do líder venezuelano lhe tem ferozmente movido. Diversos sectores sociais, especialmente a Igreja Católica e os estudantes, têm-se mostrado activos empreendedores do anti-chavismo, ao mesmo tempo que, no interior do próprio grupo partidário de Chávez, vozes críticas têm surgido, em muito motivadas pela legalização dos conselhos populares – que retiram poder aos sindicatos – e de outras entidades representativas e pela própria oposição do respeitado general Raul Baduel, que em 2002 liderara a recondução de Chávez no poder após a tentativa de golpe. Por outro lado, muitos chavistas mostraram-se contrários ao carácter apressado e pouco amadurecido com que a consulta popular de 2 de Dezembro de 2007 foi levada a efeito. Evidentemente que, neste contexto, para que a reforma constitucional se afirmasse legítima, teria de ter sido ratificada por elevados índices de votação favorável. O que não ocorreu, num sinal claro de que a popularidade do “nacional-petropopulismo” de esquerda de Hugo Chávez não é, efectivamente, uma realidade, ao contrário do que indicava o apoio popular comprado pelas políticas assistencialistas. Ao contrário, também, do que indicavam algumas sondagens sobre as intenções de voto dos Venezuelanos no referendo, que conferiam uma vitória do “sim” por 55,5% (contra 39,9% de “não”), ainda que a maioria das pesquisas indicasse um empate técnico entre o “sim” e o “não”.
Naturalmente, estes apoios, “comprados”, são apenas aparentes. Em regimes nacional-populistas de cariz ditatorial como o chavismo, a sociedade civil não manifesta abertamente as suas opiniões, não expressa com clareza as suas intenções, já que o medo de represálias é superior à capacidade de se oporem ao regime com firmeza. Apenas uma minoria o faz declaradamente. O que cria a impressão, falsa, de que o regime é altamente popular. Impressão favorecida pela actuação de Chávez, designadamente aquando da sua ascensão ao poder, em 1998, quando a vitória eleitoral esteve perfeitamente enquadrada no amplo processo de transformações sociais e políticas então em curso na América Latina, onde a reacção contra os efeitos destrutivos causados pelo neoliberalismo na região provocava a substituição das velhas oligarquias dominantes por forças oriundas das lutas sociais comprometidas com a soberania e a integração regional. Assim, Chávez deu corpo ao lado social-reformista do nacional-populismo, ao executar reformas importantes nas áreas educacional e trabalhista e ao valorizar a classe trabalhadora, num extenso programa social e assistencialista perfeitamente suportado pelas receitas oriundas do petróleo, num puro “petropopulismo”, que lhe tem permitido comprar o apoio popular, já que aqueles que beneficiam dos programas assistencialistas ficam prisioneiros de um esquema que exige absoluta submissão e frequentes demonstrações de fidelidade, e, sobre aqueles que abertamente discordam do governo, recai o poder do aparato oficial, que pune directa ou indirectamente os infractores .
Estes programas assistencialistas e a suposta popularidade do “nacional-petropopulismo” de esquerda de Hugo Chávez desta vez foram, contudo, insuficientes para garantir mais uma vitória nas urnas. A táctica de Chávez de fazer-se de vítima dos Estados Unidos também não deu os habituais frutos. Nem sequer a ameaça do presidente venezuelano de que, se o “sim” ganhasse, paralisaria de imediato o envio de petróleo para os EUA, chegando mesmo a denunciar um suposto plano imperialista norte-americano, apoiado pela oligarquia venezuelana que faz o jogo do império, para desestabilizar o país, foram suficientes para evitar a derrota. Chávez havia, mesmo, dado instruções para accionar um plano de protecção dos campos petrolíferos até Segunda-Feira, dia 3, altura em que esperava ter conquistado a vitória.
Numa campanha eleitoral marcada pela violência, os avisos de Chávez de que precisava de um novo mandato para alargar os programas sociais e ampliar as leis destinadas a melhorar a vida dos cidadãos, assim como de que, caso a reforma não fosse referendada, a revolução sofreria um perigoso abrandamento e, até, o risco de ser travada, não foram, de igual modo, suficientes para garantir a vitória.
Nada foi suficiente para que, encobertos pelo voto secreto, os cidadãos aceitassem a implementação do “socialismo venezuelano”, numa atitude que engendra sérias incógnitas quanto às eventuais consequências, mas que representa uma nova configuração da oposição.
Na verdade, já nas presidenciais de 2006, a mudança estava em gestação. A campanha eleitoral de Manuel Rosales, o candidato da oposição, fundador do partido Novo Tempo (social-democrata) contribuiu para uma estratégia de acumulação de forças por parte da oposição. As sondagens diziam que Rosales perderia e perdeu. Porém, o esforço que fez permitiu vencer a forte abstenção, o que, para a oposição, foi já uma grande vitória.
A recente eleição presidencial teve, ainda, outras virtualidades para a oposição venezuelana. Permitiu que dois movimentos políticos insignificantes, o Novo Tempo e o Primeiro Justiça, saíssem da disputa como referências nacionais, já que tiveram eleitores e uma forte presença em todo o país.
Ademais, a entrada de Baduel na dissidência e a oposição à reforma constitucional pelo PODEMOS (partido político saído da coligação no poder) contribuíram para arregimentar os opositores num caminho que, mais do que conduzir à vitória do “não”, prenuncia uma nova configuração da oposição, mais forte e consolidada, mais confiante e pujante, na luta contra a estratégia chavista de atacar os partidos políticos, polarizar a sociedade, redistribuir a riqueza colectivamente, incentivar as disfunções do Estado e alterar as regras do jogo, explorando habilmente o anti-americanismo mundial, num quase monopólio do poder.
Wednesday, December 5, 2007
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