A "PRESIDENTA" CRISTINA
A “Rainha” Cristina Kirchner tomou posse ontem, dia 10 de Dezembro de 2007, sucedendo ao marido, Nestor Kirchner, na Presidência da Argentina. A “Presidenta”, como gosta de ser chamada, é a segunda mulher a liderar o país, depois de Isabelita Perón (que governou de 1974 a 1976) e do eterno mito de Evita, tendo sida eleita basicamente graças aos votos das províncias que concentram a população mais miserável da Argentina; enquanto a classe média e os abastados compuseram parte da percentagem obtida pela rival Elisa Carrió, da Coligação Cívica de centro-esquerda.
Na cerimónia de posse, liderada pelo ainda presidente Nestor Kirchner – que deixa o cargo com um índice de popularidade de 60-65%, inédito na história recente do país –, Cristina Fernandéz de Kirchner recebeu das mãos deste, entre lágrimas, a faixa e o bastão presidenciais, discursando depois, pela primeira vez como “presidenta”, na Assembleia Legislativa, para de seguida dirigir-se até à Casa Rosada, sede do governo argentino, para, diante da histórica Plaza de Mayo, empossar os novos ministros.
No discurso de posse, iniciado em tom autoritário e finalizado de modo a beirar as lágrimas, num sóbrio vestido branco, a “Rainha Cristina”, evocando as mulheres por cujo exemplo se pautará durante a permanência no poder (Evita e as Mães e Avós da Plaza de Mayo), elogiou o marido por ter transformado a Argentina ao longo do seu mandato, prometendo que esse processo de transformações será mantido pelo seu governo. Sem mencionar as medidas específicas que pretende adoptar, Cristina afirmou, durante uma hora de discurso, que continuará a luta contra a pobreza, pois a «vitória definitiva» apenas ocorrerá «quando não existir mais nenhum pobre nessa Pátria». Afirmou, ainda, que a sua administração assentará na inclusão social, na inserção da Argentina no mundo, na protecção da independência da Justiça, no fortalecimento das instituições democráticas e no desafio de alcançar uma economia mais industrializada, sem todavia desprezar o sector agrícola. Conforme bandeira erguida durante a campanha eleitoral, Cristina falou também da importância de realizar o pacto social e fortalecer a educação pública no país, destacando que a justiça social e os direitos humanos terão um lugar muito especial ao longo da gestão a que agora dá início.
Neste sentido, a “Rainha Cristina” disse esperar uma maior rapidez da Justiça nas investigações dos crimes cometidos durante a ditadura militar argentina de 1976 a 1983, de modo a que os militares envolvidos sejam castigados pelo «maior genocídio» já cometido no país. No mesmo sentido, a “Rainha Cristina” prometeu, também, tudo fazer para que a Argentina colabore nas negociações para a libertação da ex-candidata presidencial colombiana, a franco-colombiana Ingrid Betancourt, sequestrada pela guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) desde Fevereiro de 2002.
Referindo-se à Venezuela, na presença de Chávez, como um importante país da região, a “Rainha” exortou os parceiros do Mercosul para que a Venezuela seja a este incorporada, de modo que se possa fechar a equação energética na América Latina. Agradecendo a presença de Tabaré Vasquez na cerimónia, Cristina preferiu, todavia, ser sincera, e culpou o Uruguai pelo desaguisado envolvendo os dois países a propósito da construção de uma fábrica de pasta de celulosa Botnia na localidade uruguaia de Fray Bentos, às margens do rio Uruguai, que provocou protestos da parte das populações argentinas ribeirinhas, num desacato que dura há já dois anos. Duramente, Cristina culpou publicamente o Uruguai pelo desentendimento, já que o país de Tabaré Vasquez decidiu criar a fábrica sem consultar a Argentina, violando, pois, o Tratado do Uruguai. Reclamando a soberania sobre as ilhas Malvinas/Falklands, Cristina criticou duramente o Reino Unido, que desde a guerra argentino-britânica de 1982 detém as referidas ilhas, denunciando, diante das Nações Unidas, a situação de «território colonial» existente nas mesmas, sendo pois hora de fazer cumprir o pedido argentino de retorno das Malvinas à sua soberania, no âmbito mesmo das Nações Unidas.
Após o discurso no Congresso argentino, a “Rainha Cristina” empossou o seu gabinete na Casa Rosada, mantendo a maior parte dos ministros do governo do marido, mas trazendo, para a estratégica pasta da Economia, um jovem de 37 anos. Economista que fez carreira no sector bancário, Martin Lousteau, defensor do câmbio competitivo e estável, garantirá a permanência da actual aliança com a indústria. Cristina empossou ainda a cunhada, Alicia Kirchner, na pasta do Desenvolvimento Social e trouxe Florência Randazzo para o Ministério do Interior, Lino Barañao para o Ministério da Ciência e Tecnologia, Gracielo Ocaña para a pasta da Saúde e Juan Carlos Tedesco para o Ministério da Educação; mantendo Alberto Fernández na chefia do gabinete, Jorge Taiana no Ministério dos Negócios Estrangeiros, Júlio de Vido no Planeamento Federal, Carlos Tomada no Ministério do Trabalho; e transferindo Aníbal Fernández do Interior para a pasta da Justiça e Segurança.
Cristina ascende agora ao poder em virtude da forma como o marido salvou a economia argentina, há sete anos simplesmente falida. Nestor foi o presidente que recuperou a economia, que recuperou a autoridade presidencial e que recuperou algum do prestígio argentino de outrora. Verdade que o fez através de um avultado excedente orçamental, que lhe permitiu trocar votos por favores; verdade que o fez à custa da debilidade dos outros poderes, usando essa autoridade com desprezo pela oposição e pela comunicação social. E, à boa maneira personalista, nomeou como candidata a mulher, a então senadora Cristina Fernandéz, que duplicou, nas urnas, os votos que haviam eleito o marido, naquilo que é já a maior concentração de poder político dos últimos tempos, em virtude da confortável maioria que detém nas duas Câmaras e do apoio de mais de metade dos prefeitos e de dezanove dos vinte e quatro governadores.
Formada nas fileiras do peronismo combativo dos agitados anos 1970, altura em que iniciava uma brilhante carreira na Universidade de La Plata, onde se formou advogada, contando hoje com quase quarenta anos de militância peronista, Cristina assume-se como o rosto moderno do peronismo. Preferiu, durante a campanha eleitoral, esquivar-se da ruidosa e tradicional liturgia peronista e optar por realizar ordenados actos de campanha nos quais discursava de modo consistente, ainda que improvisado.
É paradoxal, todavia, que o simbolismo de modernidade de Cristina, quando comparada com outras actuais figuras femininas na política (Michelle Bachelet, Ângela Merckel, Hillary Clinton, Gloria Arroyo, Ellen Johnson-Sirleaf), tenha sido rejeitado pelos sectores mais modernos da sociedade argentina, já que, nas classes médias e médias-altas urbanas, Cristina foi derrotada por Elisa, agora transformada na principal líder da oposição.
É evidente que, por ora, resta-nos esperar para saber se Cristina irá ocupar-se das carências institucionais de um país onde o Estado é confundido com Governo; ou se irá manter-se colada ao marido, que neste caso assumir-se-á como o verdadeiro chefe de Estado, cujas decisões serão ordens para aquela que, ao dar a face, limitar-se-á a cumpri-las. Para já, não são de esperar grandes alterações em matéria de política económica interna, ao mesmo tempo que não são, também, de esperar, grandes desvios da rota assistencialista traçada por Nestor – os dois grandes trunfos do êxito deste, em muito assumidos como trunfos da vitória de Cristina. Especialmente se o objectivo é fazer dos Kirchner a “dinastia K”, com Nestor a suceder a Cristina em 2011. As mudanças principais centrar-se-ão, certamente, na forma de lidar com a comunicação social e com as relações internacionais. Efectivamente, Cristina concedeu, enquanto candidata, três entrevistas, o que o marido nunca fizera. Do mesmo modo, deslocou-se também ao estrangeiro, algo a que o marido nunca dera prioridade. É intenção de Cristina reposicionar a Argentina no seio do sistema internacional, através de uma política externa activa, que (re)inclua o país no âmbito da política internacional e, por via disso, no quadro das relações internacionais.
A primeira visita estratégica de Cristina foi ao Brasil, há três semanas. O país de Lula tem tido um imenso volume de vendas à Argentina e injectou US$ 8 milhões na economia vizinha, adquirindo empresas tradicionais. A descoberta de petróleo no campo Tupi Sul, ao potenciar o poder do Brasil no contexto regional, tem feito Cristina lidar com cautelas com Lula, com quem selou um acordo energético que inclui a desdolarização das transacções comerciais, um satélite e reactores nucleares. Embora o ministro brasileiro dos Negócios Estrangeiros, Celso Amorim, congratule sistematicamente a mudança de governo na Argentina, enfatizando a importância de ser uma mulher a ascender agora ao poder, a verdade é que ambos os países seguem sendo «muy amigos pero desconfiados», o que faz prever um acirramento das relações em eixo argentino-brasileiras, possivelmente caracterizadas, senão por uma reedição da fase de tensões e rivalidades que durante décadas as caracterizaram, certamente por alguma latente dificuldade de conciliar interesses, já que a Argentina de Cristina almeja claramente disputar, com o Brasil de Lula, o lugar de potência regional que este tem, nos últimos tempos, ocupado quase tranquilamente.
Seja como for, a verdade é que a tomada de posse de Cristina, na Argentina, ocorre num momento de grandes transformações na América Latina. Enquanto o incidente diplomático ocorrido na XVII Cimeira Ibero-Americana, entre o rei Juan Carlos de Espanha e Hugo Chávez, dá mostras de estar a ser ultrapassado, a Bolívia aprova uma nova Constituição, também a 9 de Dezembro, conforme desejava o presidente socialista Evo Morales, do Movimento para o Socialismo (MAS), ainda que rejeitada pela oposição de direita. De facto, embora os parlamentares conservadores e liberais se tenham retirado da discussão do projecto, os eleitores do MAS foram suficientes para fazer passar o diploma, que só entrará em vigor depois de referendado. Apresentada como uma «lei unitária, plurinacional, comunitária e laica», a nova Constituição boliviana não permite a reeleição do presidente Morales – a grande novidade introduzida na nova redacção da Lei Fundamental da Bolívia.
Perante todas estas evoluções, surge a América latina subitamente tornada vedeta pela comunicação social portuguesa, que lhe tem, inesperadamente, dedicado algum importante espaço, ainda que em sinal de pouco relevo o governo português tenha enviado, para a cerimónia de posse, apenas o presidente do Supremo Tribunal. Se no caso da comunicação social espanhola isto não causa grande admiração, porque a atenção dedicada à região é, de algum modo, relativamente constante, em matéria de comunicação social portuguesa o espanto é grande, se pensarmos que andamos sistematicamente esquecidos desta zona do Globo, precisamente a que inclui um país de Língua Portuguesa, onde por acaso até temos grandes interesses económicos, que é um dos mais promissores para o futuro, segundo conseguem mentes brilhantes avaliar, como Jim O`Neill. Economista do Grupo Goldman Sachs, O`Neill tornou-se famoso pela criação da eloquente designação de BRIC para referir-se, sugestivamente, ao Brasil, à Rússia, à Índia e à China, a que agora inclui o México, numa lógica «BRICM» e, mais ainda, as onze economias emergentes, numa abrangente «BRICM + SA», os países que, daqui a cinquenta anos, certamente farão sombra àqueles que, hoje, são os mais ricos.
A realidade, de facto, é que a tomada de posse de Cristina Fernández de Kirchner serviu de pretexto para que os líderes da região, reunidos em Buenos Aires, fortalecessem as suas relações e discutissem assuntos pendentes, como os temas energéticos, a troca humanitária para a libertação de reféns das Farc, o desenvolvimento do Mercosul, as dívidas dos países face a organismos multilaterais, entre muitos outros.
Assim, mesmo antes da cerimónia de tomada de posse, as delegações estrangeiras tiveram oportunidade de encontrar-se na cerimónia oficial, organizada pelo presidente cessante, que teve lugar na véspera, dia 9 de Dezembro, incluindo um jantar de gala no Palácio San Martín, sede do Ministério argentino dos Negócios Estrangeiros.
Os convidados puderam, ainda, encontrar-se por ocasião da assinatura, também no dia 9, do instrumento jurídico instituidor do Banco do Sul, designadamente o Brasil, a Argentina, a Bolívia, o Equador, o Paraguai, a Venezuela e o Uruguai (que enviou um ministro em representação do chefe de Estado, o único que se deslocou a Buenos Aires apenas para a cerimónia da tomada de posse de Cristina Kirchner). Juntamente com os líderes de vários outros Estados extra-região, os temas mais veemente tratados, à margem da cerimónia da tomada de posse, foram a questão de Ingrid Betancourt e os encontros que diversos líderes regionais mantiveram com o director do Fundo Monetário Internacional (FMI), Dominique Strauss-Kahn.
Seja como for, a verdade é que a Argentina passa agora a ter uma nova presidente, a “Presidenta”, ex-senadora e ex-deputada federal, recebida por uma chuva de papel picado ao entrar no plenário do Congresso Nacional e aplaudida pelas Mães e Avós da Plaza de Mayo e por uma multidão estimada em três mil pessoas, que do lado de fora realizavam uma verdadeira festa popular. Com tamanho capital político e apoio popular, é de esperar que a “Rainha Cristina” alcance os objectivos propostos, sem defraudar as expectativas daqueles que, por ora, assim a apoiam. Diria ela, neste sentido, antes de deixar o Congresso: «Que Deus me ajude a não me equivocar, a dizer e a escutar, e a continuar defendendo a Pátria». Assim esperamos.
A “Rainha” Cristina Kirchner tomou posse ontem, dia 10 de Dezembro de 2007, sucedendo ao marido, Nestor Kirchner, na Presidência da Argentina. A “Presidenta”, como gosta de ser chamada, é a segunda mulher a liderar o país, depois de Isabelita Perón (que governou de 1974 a 1976) e do eterno mito de Evita, tendo sida eleita basicamente graças aos votos das províncias que concentram a população mais miserável da Argentina; enquanto a classe média e os abastados compuseram parte da percentagem obtida pela rival Elisa Carrió, da Coligação Cívica de centro-esquerda.
Na cerimónia de posse, liderada pelo ainda presidente Nestor Kirchner – que deixa o cargo com um índice de popularidade de 60-65%, inédito na história recente do país –, Cristina Fernandéz de Kirchner recebeu das mãos deste, entre lágrimas, a faixa e o bastão presidenciais, discursando depois, pela primeira vez como “presidenta”, na Assembleia Legislativa, para de seguida dirigir-se até à Casa Rosada, sede do governo argentino, para, diante da histórica Plaza de Mayo, empossar os novos ministros.
No discurso de posse, iniciado em tom autoritário e finalizado de modo a beirar as lágrimas, num sóbrio vestido branco, a “Rainha Cristina”, evocando as mulheres por cujo exemplo se pautará durante a permanência no poder (Evita e as Mães e Avós da Plaza de Mayo), elogiou o marido por ter transformado a Argentina ao longo do seu mandato, prometendo que esse processo de transformações será mantido pelo seu governo. Sem mencionar as medidas específicas que pretende adoptar, Cristina afirmou, durante uma hora de discurso, que continuará a luta contra a pobreza, pois a «vitória definitiva» apenas ocorrerá «quando não existir mais nenhum pobre nessa Pátria». Afirmou, ainda, que a sua administração assentará na inclusão social, na inserção da Argentina no mundo, na protecção da independência da Justiça, no fortalecimento das instituições democráticas e no desafio de alcançar uma economia mais industrializada, sem todavia desprezar o sector agrícola. Conforme bandeira erguida durante a campanha eleitoral, Cristina falou também da importância de realizar o pacto social e fortalecer a educação pública no país, destacando que a justiça social e os direitos humanos terão um lugar muito especial ao longo da gestão a que agora dá início.
Neste sentido, a “Rainha Cristina” disse esperar uma maior rapidez da Justiça nas investigações dos crimes cometidos durante a ditadura militar argentina de 1976 a 1983, de modo a que os militares envolvidos sejam castigados pelo «maior genocídio» já cometido no país. No mesmo sentido, a “Rainha Cristina” prometeu, também, tudo fazer para que a Argentina colabore nas negociações para a libertação da ex-candidata presidencial colombiana, a franco-colombiana Ingrid Betancourt, sequestrada pela guerrilha das Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia (Farc) desde Fevereiro de 2002.
Referindo-se à Venezuela, na presença de Chávez, como um importante país da região, a “Rainha” exortou os parceiros do Mercosul para que a Venezuela seja a este incorporada, de modo que se possa fechar a equação energética na América Latina. Agradecendo a presença de Tabaré Vasquez na cerimónia, Cristina preferiu, todavia, ser sincera, e culpou o Uruguai pelo desaguisado envolvendo os dois países a propósito da construção de uma fábrica de pasta de celulosa Botnia na localidade uruguaia de Fray Bentos, às margens do rio Uruguai, que provocou protestos da parte das populações argentinas ribeirinhas, num desacato que dura há já dois anos. Duramente, Cristina culpou publicamente o Uruguai pelo desentendimento, já que o país de Tabaré Vasquez decidiu criar a fábrica sem consultar a Argentina, violando, pois, o Tratado do Uruguai. Reclamando a soberania sobre as ilhas Malvinas/Falklands, Cristina criticou duramente o Reino Unido, que desde a guerra argentino-britânica de 1982 detém as referidas ilhas, denunciando, diante das Nações Unidas, a situação de «território colonial» existente nas mesmas, sendo pois hora de fazer cumprir o pedido argentino de retorno das Malvinas à sua soberania, no âmbito mesmo das Nações Unidas.
Após o discurso no Congresso argentino, a “Rainha Cristina” empossou o seu gabinete na Casa Rosada, mantendo a maior parte dos ministros do governo do marido, mas trazendo, para a estratégica pasta da Economia, um jovem de 37 anos. Economista que fez carreira no sector bancário, Martin Lousteau, defensor do câmbio competitivo e estável, garantirá a permanência da actual aliança com a indústria. Cristina empossou ainda a cunhada, Alicia Kirchner, na pasta do Desenvolvimento Social e trouxe Florência Randazzo para o Ministério do Interior, Lino Barañao para o Ministério da Ciência e Tecnologia, Gracielo Ocaña para a pasta da Saúde e Juan Carlos Tedesco para o Ministério da Educação; mantendo Alberto Fernández na chefia do gabinete, Jorge Taiana no Ministério dos Negócios Estrangeiros, Júlio de Vido no Planeamento Federal, Carlos Tomada no Ministério do Trabalho; e transferindo Aníbal Fernández do Interior para a pasta da Justiça e Segurança.
Cristina ascende agora ao poder em virtude da forma como o marido salvou a economia argentina, há sete anos simplesmente falida. Nestor foi o presidente que recuperou a economia, que recuperou a autoridade presidencial e que recuperou algum do prestígio argentino de outrora. Verdade que o fez através de um avultado excedente orçamental, que lhe permitiu trocar votos por favores; verdade que o fez à custa da debilidade dos outros poderes, usando essa autoridade com desprezo pela oposição e pela comunicação social. E, à boa maneira personalista, nomeou como candidata a mulher, a então senadora Cristina Fernandéz, que duplicou, nas urnas, os votos que haviam eleito o marido, naquilo que é já a maior concentração de poder político dos últimos tempos, em virtude da confortável maioria que detém nas duas Câmaras e do apoio de mais de metade dos prefeitos e de dezanove dos vinte e quatro governadores.
Formada nas fileiras do peronismo combativo dos agitados anos 1970, altura em que iniciava uma brilhante carreira na Universidade de La Plata, onde se formou advogada, contando hoje com quase quarenta anos de militância peronista, Cristina assume-se como o rosto moderno do peronismo. Preferiu, durante a campanha eleitoral, esquivar-se da ruidosa e tradicional liturgia peronista e optar por realizar ordenados actos de campanha nos quais discursava de modo consistente, ainda que improvisado.
É paradoxal, todavia, que o simbolismo de modernidade de Cristina, quando comparada com outras actuais figuras femininas na política (Michelle Bachelet, Ângela Merckel, Hillary Clinton, Gloria Arroyo, Ellen Johnson-Sirleaf), tenha sido rejeitado pelos sectores mais modernos da sociedade argentina, já que, nas classes médias e médias-altas urbanas, Cristina foi derrotada por Elisa, agora transformada na principal líder da oposição.
É evidente que, por ora, resta-nos esperar para saber se Cristina irá ocupar-se das carências institucionais de um país onde o Estado é confundido com Governo; ou se irá manter-se colada ao marido, que neste caso assumir-se-á como o verdadeiro chefe de Estado, cujas decisões serão ordens para aquela que, ao dar a face, limitar-se-á a cumpri-las. Para já, não são de esperar grandes alterações em matéria de política económica interna, ao mesmo tempo que não são, também, de esperar, grandes desvios da rota assistencialista traçada por Nestor – os dois grandes trunfos do êxito deste, em muito assumidos como trunfos da vitória de Cristina. Especialmente se o objectivo é fazer dos Kirchner a “dinastia K”, com Nestor a suceder a Cristina em 2011. As mudanças principais centrar-se-ão, certamente, na forma de lidar com a comunicação social e com as relações internacionais. Efectivamente, Cristina concedeu, enquanto candidata, três entrevistas, o que o marido nunca fizera. Do mesmo modo, deslocou-se também ao estrangeiro, algo a que o marido nunca dera prioridade. É intenção de Cristina reposicionar a Argentina no seio do sistema internacional, através de uma política externa activa, que (re)inclua o país no âmbito da política internacional e, por via disso, no quadro das relações internacionais.
A primeira visita estratégica de Cristina foi ao Brasil, há três semanas. O país de Lula tem tido um imenso volume de vendas à Argentina e injectou US$ 8 milhões na economia vizinha, adquirindo empresas tradicionais. A descoberta de petróleo no campo Tupi Sul, ao potenciar o
Seja como for, a verdade é que a tomada de posse de Cristina, na Argentina, ocorre num momento de grandes transformações na América Latina. Enquanto o incidente diplomático ocorrido na XVII Cimeira Ibero-Americana, entre o rei Juan Carlos de Espanha e Hugo Chávez, dá mostras de estar a ser ultrapassado, a Bolívia aprova uma nova Constituição, também a 9 de Dezembro, conforme desejava o presidente socialista Evo Morales, do Movimento para o Socialismo (MAS), ainda que rejeitada pela oposição de direita. De facto, embora os parlamentares conservadores e liberais se tenham retirado da discussão do projecto, os eleitores do MAS foram suficientes para fazer passar o diploma, que só entrará em vigor depois de referendado. Apresentada como uma «lei unitária, plurinacional, comunitária e laica», a nova Constituição boliviana não permite a reeleição do presidente Morales – a grande novidade introduzida na nova redacção da Lei Fundamental da Bolívia.
Perante todas estas evoluções, surge a América latina subitamente tornada vedeta pela comunicação social portuguesa, que lhe tem, inesperadamente, dedicado algum importante espaço, ainda que em sinal de pouco relevo o governo português tenha enviado, para a cerimónia de posse, apenas o presidente do Supremo Tribunal. Se no caso da comunicação social espanhola isto não causa grande admiração, porque a atenção dedicada à região é, de algum modo, relativamente constante, em matéria de comunicação social portuguesa o espanto é grande, se pensarmos que andamos sistematicamente esquecidos desta zona do Globo, precisamente a que inclui um país de Língua Portuguesa, onde por acaso até temos grandes interesses económicos, que é um dos mais promissores para o futuro, segundo conseguem mentes brilhantes avaliar, como Jim O`Neill. Economista do Grupo Goldman Sachs, O`Neill tornou-se famoso pela criação da eloquente designação de BRIC para referir-se, sugestivamente, ao Brasil, à Rússia, à Índia e à China, a que agora inclui o México, numa lógica «BRICM» e, mais ainda, as onze economias emergentes, numa abrangente «BRICM + SA», os países que, daqui a cinquenta anos, certamente farão sombra àqueles que, hoje, são os mais ricos.
A realidade, de facto, é que a tomada de posse de Cristina Fernández de Kirchner serviu de pretexto para que os líderes da região, reunidos em Buenos Aires, fortalecessem as suas relações e discutissem assuntos pendentes, como os temas energéticos, a troca humanitária para a libertação de reféns das Farc, o desenvolvimento do Mercosul, as dívidas dos países face a organismos multilaterais, entre muitos outros.
Assim, mesmo antes da cerimónia de tomada de posse, as delegações estrangeiras tiveram oportunidade de encontrar-se na cerimónia oficial, organizada pelo presidente cessante, que teve lugar na véspera, dia 9 de Dezembro, incluindo um jantar de gala no Palácio San Martín, sede do Ministério argentino dos Negócios Estrangeiros.
Os convidados puderam, ainda, encontrar-se por ocasião da assinatura, também no dia 9, do instrumento jurídico instituidor do Banco do Sul, designadamente o Brasil, a Argentina, a Bolívia, o Equador, o Paraguai, a Venezuela e o Uruguai (que enviou um ministro em representação do chefe de Estado, o único que se deslocou a Buenos Aires apenas para a cerimónia da tomada de posse de Cristina Kirchner). Juntamente com os líderes de vários outros Estados extra-região, os temas mais veemente tratados, à margem da cerimónia da tomada de posse, foram a questão de Ingrid Betancourt e os encontros que diversos líderes regionais mantiveram com o director do Fundo Monetário Internacional (FMI), Dominique Strauss-Kahn.
Seja como for, a verdade é que a Argentina passa agora a ter uma nova presidente, a “Presidenta”, ex-senadora e ex-deputada federal, recebida por uma chuva de papel picado ao entrar no plenário do Congresso Nacional e aplaudida pelas Mães e Avós da Plaza de Mayo e por uma multidão estimada em três mil pessoas, que do lado de fora realizavam uma verdadeira festa popular. Com tamanho capital político e apoio popular, é de esperar que a “Rainha Cristina” alcance os objectivos propostos, sem defraudar as expectativas daqueles que, por ora, assim a apoiam. Diria ela, neste sentido, antes de deixar o Congresso: «Que Deus me ajude a não me equivocar, a dizer e a escutar, e a continuar defendendo a Pátria». Assim esperamos.
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