AMÉRICA LATINA OU AMÉRICA DO SUL?
No contexto em que vivemos, de sociedade internacional global, à maneira de Hedley Bull , tecer reflexões sobre o Brasil e a área regional por esta proto-potência dominada, a América do Sul, adquire um significado muito especial. No particularismo da época, que é a nossa, totalmente voltada para os dramas do terrorismo e temáticas afins, as modas internacionalistas conduzem os académicos, e mesmo a comunicação social, a priorizar as análises voltadas para a área islâmica e do Médio Oriente, ao mesmo tempo que o surgimento económico-comercial da China leva ao crescimento indubitável dos estudos sobre tais matérias, estando a Europa, a União e a restante, totalmente na agenda internacional, com os dossiers quentes da Turquia e do Magreb. Presença constante em todo o panorama analítico e epistemológico das Relações Internacionais, como pano de fundo que abarca, transversalmente, toda a sociedade, estão, sem dúvida, os Estados Unidos da América. De fora ficam, sistematicamente, as áreas ditas periféricas, a África e a América do Sul, não obstante a importância insofismável que, especialmente a esta última, tem de ser dada. Assim o demonstra a História, nunca relegada para segundo plano em matéria de análises internacionalistas.
De facto, as análises sul-americanistas e, num quadro mais restrito e específico, brasilianistas, adquirem uma relevância a que, não raramente, pouca atenção se presta. A região assume-se liderada por um colosso prometedor para um futuro não muito longínquo – assim permitam os Estados Unidos … –, o Brasil, cuja actuação como global player e global trader na sociedade internacional mereceria melhor tratamento por parte dos académicos, tão pouco incomodados com estudos sobre estas temáticas. Daí a pertinência de umas periódicas reflexões sul-americanistas e brasilianistas, no âmbito das quais tentaremos ressoar os ecos dos acontecimentos que por tais paragens vão ocorrendo. Sem esquecer, naturalmente, a abordagem analítico-epistemológica, a que a Academia deve dedicar-se, desses mesmos acontecimentos.
Neste contexto, faz-se mister uma primeira reflexão, por forma a esclarecermos o que aqui será tratado como objecto de estudo. A América do Sul não se confunde, efectivamente, com aquilo que se convencionou designar por América Latina. Se quisermos, poderemos mesmo ir mais longe, afirmando que a América Latina não existe senão pelo facto de estar unida numa mesma língua – esquecendo agora o foco central da região, o Brasil. Aquilo que identifica a América Central como tal não é o que individualiza a América do Sul e, no seio desta, o Cone Sul. Surge, pois, no nosso horizonte analítico, a perspectiva do estudo das identidades, ímpar em demonstrar-nos que aquilo a que, normalmente, se designa por América Central é mais uma extensão latina dos Estados Unidos, do que, propriamente, uma região individualizada. Por outro lado, a América do Sul apresenta características próprias, apresenta uma idiossincrasia muito particular que a distingue do tal prolongamento latino dos Estados Unidos (a alegada América Central). A América do Sul ganha, pois, existência por si.
Daí a necessidade de apelar-se ao estudo das identidades, para percebermos, sustentadamente, até que ponto o que temos vindo a afirmar faz sentido.
Na verdade, o estudo das identidades, regionais e nacionais, é de extrema importância para a construção do argumento aqui em foco. A Teoria das Relações Internacionais ainda não incorporou este objecto cognitivo, porém o mesmo é fundamental para a elaboração argumentativa que temos vindo a desenvolver. “... los estudios de todo lo referido a las nacionalidades (...) han sido encarados con notoria profusión pero desde la perspectiva exclusiva de cada nácion, en tanto son muy escassos los esfuerzos que parten de la presunción de la existencia de un proceso común para la gran región” .
À parte o desprezo da Teoria das Relações Internacionais relativamente ao estudo da gran región, este é indispensável para compreender-se o significado da distinção entre a América Latina e a América do Sul e, dentro desta, o Cone Sul, pois que, se esta assenta sobre idiossincrasias, só pode concretizar-se se existir uma aceitação popular, dessas idiossincrasias, que lhe reconheça autoridade e legitimidade, o que apenas ocorrerá se houver uma identificação das nacionalidades com a região em si. Mais especificamente, se houver uma identificação das nacionalidades que se unem nessa região. No caso da América do Sul, esta identificação regional assenta sobre as bases identitárias que foram sendo criadas em torno das relações em eixo argentino-brasileiras, reforçadas pela existência de problemas comuns.
O termo identidade possui uma avaliação epistemológica complexa, embora possa ser compreendido, seguindo Celso Lafer, como “um conjunto mais ou menos ordenado de predicados por meio dos quais se responde à pergunta: quem sois? Se a resposta a esta pergunta no plano individual não é simples, no plano coletivo é sempre complexa” . O ponto de partida para construir a identidade colectiva é, para Lafer, “a idéia de um bem ou interesse comum que leva pessoas a afirmarem uma identidade por semelhança, lastreada numa visão compartilhada deste bem ou interesse comum” .
A identidade surge, deste modo, como “o princípio mais elementar das sociedades modernas” , como bem reconhece Frank Pfetsch, citando Weidenfeld. Como tal, possui diversas dimensões e níveis de análise, que vão do filosófico (o ser unitário consigo mesmo), o psicológico (sentimento de pertencer a um mesmo grupo), o geográfico (que identifica as fronteiras onde termina o grupo e começa o outro), o cultural (língua, religião, cultura material e estética) ao histórico-político (consciência histórica, nacionalismo, América Latina e América do Sul como realidades auto-definíveis por contraste com as demais) . Assim, tanto a América Latina como a América do Sul têm que ser mais do que mercados de produção e consumo; têm de ser aceites pelos respectivos cidadãos, por forma a emergirem como identidades colectivas capazes de superar o nacionalismo e o racismo como elementos constitutivos da identidade. Esta coloca, então, a questão da vinculação individual a uma colectividade, através de múltiplos pontos de referência e níveis de lealdade. “A identidade começa pelo indivíduo e sua família ou parentela e pode ser estendida (...) à comunidade, ao país, à nação, (...) ou a valores universais (...). Fala-se, assim, por conseguinte, da identidade pessoal, grupal, local ou regional (...) ou universal. Nessa escala de identidades (...) as lealdades podem ser diferentes e simultâneas, além de (...) serem mais ou menos importantes para tal ou qual pessoa” . É evidente que as identidades locais e nacionais são mais consistentes quando comparadas com a identidade latino-americana ou com a identidade sul-americana, que gozam de menor relevância, em função da vinculação mais emocional do indivíduo à identidade nacional, assente no reconhecimento do “território histórico como terra natal (pátria), [da existência de] mitos comuns e memória histórica, cultura de massa comum, direitos e deveres comuns a todos os cidadãos e um espaço econômico comum com mobilidade territorial” , o que apela à identificação da nação por referência a três planos distintos e complementares: o nacional (Hegel), o intra e transnacional (Herder) e o internacional (Marx) .
Na busca de uma identidade latino-americana e de uma outra sul-americana, deve ter-se em conta a definição histórica de identidade, assim como o conceito genético de identidade e, ainda, o conceito sócio-psicológico .
A perspectiva histórica é essencial e inicial. O conceito histórico de identidade apela à determinação da mesma pela relação com o passado, pela consideração do mundo existente no presente e pelas metas projectadas para o futuro. É evidente que, histórica e politicamente, nem a América Latina, nem a América do Sul, jamais constituíram unidades, pois que as dissensões foram a marca constante de ambas as regiões. Vistas de fora, porém, uma e outra ganham contornos distintos, identificando-se pelas diferenças que as opõem aos demais, aos outros, ao estrangeiro. Celso Lafer é ímpar na avaliação da identidade por referência àquilo que lhe é externo. Na pequena síntese sobre a questão da identidade internacional brasileira , refere que “traduzir necessidades internas em possibilidades externas para ampliar o poder de controlo de uma sociedade sobre o seu destino (...) é (...) a tarefa da política externa, considerada como política pública” ; porém, a diluição da diferença entre o interno e o externo, expressiva e intensificada pela lógica centrípeta da globalização, tem alterado os pressupostos do problema. A política externa deixa de surgir tanto como uma esfera de autonomia em relação à política interna – deixando o diplomata e o soldado de viver e simbolizar as relações internacionais assentes numa configuração interestatal – para surgir com aquela interligada – numa lógica de relações internacionais baseada nas complexas redes de interacção governamentais e não-governamentais . Todavia, a concepção da identidade continua a fazer-se, em primeiro lugar, através da autoafirmação externa, o que exige continuidade à política externa, requisito essencial para que “a projeção da conduta do Estado no seio da sociedade internacional revele um alto grau de estabilidade e assegure crédito aos compromissos assumidos” .
O conceito genético da identidade, proveniente da psicologia de grupos, enuncia, como elementos determinantes da coesão grupal, a homogeneização interna, a delimitação face a terceiros, a inclusão das tensões internas, o que nos permite identificar uma identidade para a América do Sul, e nem tanto para a América Latina, por surgir esta como um conjunto que abarca realidades totalmente distintas.
O conceito psicológico ou psicossocial da identidade apela ao vínculo afectivo dos cidadãos ou nações a certa comunidade política. A identificação individual, a partir dessa vinculação emocional de cada um ao grupo ou à comunidade transforma-se em identidade colectiva. A identidade sul-americana diz, assim, respeito a elementos comuns aos respectivos cidadãos que os percebem e julgam como tais. Neste contexto, o Cone Sul individualiza-se da América do Sul pela formatação do MERCOSUL, no seio do qual as lealdades locais, nacionais e regionais prevalecem sobre o todo integrado, mas são tidas em conta na formação da respectiva vontade, o que é feito diariamente, através do trabalho dos Órgãos do MERCOSUL e na conformação das policies, por contraposição à politics. Assim, na confrontação com outras identidades, exteriores ao MERCOSUL, uma consciência mercosulina emerge, ainda que este processo careça ainda de consolidação, por tratar-se de um processo integracionista bastante jovem. A América Latina, por seu lado, não integra elementos comuns aos respectivos cidadãos, que não os percebem nem julgam como tais, pois que um Nicaraguense pouco de comum tem com um Boliviano ou um Argentino.
Parece necessário, então, atentar sobre os conceitos de nação e de região. Assim, enquanto a nação, enfatizando determinado modelo ideológico, “es una creación intelectual, volitiva y deliberada” , a região “es el producto de una combinación de los factores ambientales y de los factores puramente humanos de orden colectivo o comunitario” , o que significa que não poderá existir senão por referência a determinado espaço geográfico, por oposição à nação, que poderá existir sem este. O conceito de nação inspira-se, fundamentalmente, na ideia e na busca da soberania, como forma de distinguir-se das outras nações e assim apresentar-se ao exterior, afirmando personalidade e integridade próprias. A região, por seu lado, “se há inspirado en la voluntad de establecer la identidade de una comunidad en relación con su ambiente, y es a partir de esa identificación que se projecta para establecer relaciones con otras unidades, ja sean de dimensión regional o nacional” , de modo a explicar o país para dentro, como parte de uma unidade maior. A região implica, assim, a existência de unidades complementares e semelhantes entre si, que não se desfazem mesmo em presença de rivalidades, até porque as relações intra-regiões procuram a harmonia, a suplementaridade e a complementaridade. O conceito de estrangeiro surge como elemento identificador das identidades nacional e regional.
Uma nação identifica-se não só para dentro, como para fora, por referência àquilo que lhe é distinto, estrangeiro. O mesmo sucede à região. Assim, a América do Sul identifica-se internamente, não apenas pelas características que apresenta, como também por referência àquilo que, exteriormente, lhe é distinto, isto é, estrangeiro. Transpondo a lógica analítica que Celso Lafer utiliza para estudar a identidade internacional do Brasil para a análise da identidade da América do Sul, é possível, perante o raciocínio que temos vindo a desenvolver, constatar-se que esta região possui, efectivamente, uma identidade internacional que se afirma válida na sociedade internacional global, enquanto funciona como região como tal reconhecida por essa sociedade, à escala continental, no contexto da vizinhança e no sistema internacional assimétrico como um todo. A América Latina, embora não afirme a coesão interna necessária para ser reconhecida como região, apresenta um reconhecimento por parte da sociedade internacional global, que lhe confere existência, não por aquilo que é internamente, mas pela forma como é apercebida externamente.
É bem verdade que, na sociedade internacional global, as imagens e os níveis de soberania e de poder de decisão dos Estados modificam-se em razão da participação em organizações internacionais, cuja ingerência cresce nos assuntos internos desses Estados. As identidades regionais saem, deste processo, indiscutivelmente reforçadas, não obstante a maior identificação emocional dos cidadãos às identidades nacionais e locais e não obstante aquelas identidades regionais assentarem sobre estas, cuja existência lhes confere consistência.
O que são, então, a América Latina e a América do Sul, inserindo-se neste o mais restrito conceito de Cone Sul? São espaços geográficos ou modelos civilizacionais? São projectos económicos ou projectos políticos? São novas realidades históricas ou doutrinas filosóficas?
Estas questões colocam-se por tangerem aspectos sensíveis da consciência individual e colectiva das sociedades neles englobadas.
A diversidade dos percursos históricos e das realidades políticas e sociais dos Estados-membros de cada região apenas mediante a adesão intelectual e cultural dos seus cidadãos pôde ser ultrapassada para dar origem a processos de convergência cujo início situa-se na vinculação emocional dos indivíduos à respectiva região. Por um lado, esta ligou indissoluvelmente os destinos dos Estados e, por outro, e por arrastamento, permitiu que aquela adesão, entre os cidadãos, ocorresse. A contiguidade territorial dos povos no território continental foi importante para associar os países. Porém, não foi suficiente. Embora os povos se sentissem identificados com essa unidade territorial, os modos de pensar, as mentalidades, as culturas, as formas de vida quotidiana, as práticas sociais sempre foram mais importantes , ainda que o imaginário unificador, como lhe chama o Professor Doutor Estevão Martins , venha sendo concretizado através da iniciativa política, da acção estatal, governamental.
É bem verdade que a América do Sul encerra em si uma realidade empírica assaz divergente. A América do Sul e os Sul-Americanos são, obviamente, um mosaico de espaços geográficos ricos de multissecular acção humana, um mosaico de sistemas políticos e sociais, de fidelidades políticas e sentimentos de pertença, de grupos étnicos e tradições históricas, de heranças culturais e religiosas e de relações económicas complexas. A ideia de América do Sul é, assim, uma ideia complexa, que assenta, basicamente, na existência de uma cultura comum, de uma língua comum, reforçada pela existência de problemas económicos e sociais também eles comuns.
Na verdade, a imensidade territorial, as dificuldades naturais de comunicação e as intermináveis lutas entre os herdeiros políticos dos vice-reinados coloniais transformaram a América do Sul em simples referência geográfica de origem económico-política. A identificação do espaço latino-americano era inexistente . O elemento comum guardado pelas nacionalidades das Américas seria, durante longo tempo, marcado apenas pelo nome.
“A ideia e o conceito primeiros do que é a América Latina se originam nos tempos da incorporação de suas nações à economia e ao sistema político mundiais, na segunda metade do século XIX. Sob esse nome ficaram envolvidas as nações compreendidas entre o Rio Bravo – fronteira setentrional do México – e o extremo sul-americano – limites austrais de Chile e Argentina” , ainda que Heredia teça algumas considerações sobre o cabimento de considerar-se o Canadá francófono – onde há uma forte tendência independentista e uma vontade política consequente de terminar com a tutela britânica, cuja existência é, todavia, apenas simbólica – como parte deste grande conjunto.
Seja como for, a primeira identificação do conjunto latino-americano proveio da Europa, cujos Estados mais avançados repararam nas riquezas naturais da região, indispensáveis aos processos industriais que aí tinham início. Quando os Estados Unidos saíram da Guerra da Secessão, entraram também na busca dessas riquezas latino-americanas, dando origem à forte competição por posições vantajosas. A partir daqui, a América Latina adquiriu a sua identidade como tal, explicada segundo os interesses perseguidos pelas potências europeias e norte-americana. Simultaneamente, as nações latino-americanas iniciavam um processo interno de auto-definição regional, ao sustentarem as lutas emancipadoras, sensivelmente de 1810 a 1824. Durante este período, as classes dirigentes latino-americanas compreenderam que haviam percorrido um caminho histórico mais ou menos comum e que os processos de inserção internacional eram, também, mais ou menos semelhantes. Aceitaram, então, que o conjunto regional ficasse englobado sob a comum denominação de América Latina.
No decorrer do século XIX, duas propostas opostas foram, entretanto, desenvolvidas no relacionamento das nações latino-americanas entre si. Uma primeira, que as inclinava a privilegiar os vínculos que tinham com a Europa. Uma segunda, que procurava resgatar os valores culturais originais mais ou menos comuns, o que permitiu, digamos, a entrada num segundo período, caracterizado pelo estabelecimento de sistemas de harmonização – sob as formas de anfictionia, confederação, federação ou liga de nações –, durante 1820 – data da criação da Federação Grancolombiana – até 1852 – data do término da Confederação Argentina. Este período viu, assim, transcorrerem processos que procuravam ultrapassar o estado de prostração colonial . Depois disso, a formação dos Estados nacionais teve início, dando corpo a uma terceira fase do processo formador das identidades nacionais latino-americanas, cujo término variaria consoante os casos específicos. A vontade unionista não morreria, contudo. A tendência proto-nacionalista que levaria os povos latino-americanos a regressar à primeira fase, copiando o modelo nacional e estatal então em consolidação na Europa, ver-se-ia em choque com o discurso integracionista que nasceria logo após a Segunda Guerra Mundial com alguma voracidade .
Desta forma, o termo América Latina “passou, sucessivamente, de uma conotação que vinculava este setor do mundo à civilização latina (...), a outra que denotava a oposição a uma América Anglo-Saxã (...) até uma terceira que encarnava os sentimentos e o empenho por resgatar outros valores considerados como mais originais, mais autênticos (...), os mais legítimos para afirmar e definir uma idiossincrasia diferenciada e distintiva; (...) valores (...) que tinham suas origens nas formas de vida dos habitantes dos tempos anteriores à chegada do homem europeu e os que resultaram das intensas mestiçagens biológicas e culturais posteriores” .
Neste processo, parte da região latino-americana foi adquirindo especificidades que levariam à sua distinção, ainda que integrada no conjunto maior da América Latina. Passar-se-ia, então, a identificar, no seio da América Latina, o Cone Sul – formado pelos actuais Estados do Brasil, da Argentina, do Paraguai, do Uruguai, do Chile e da Bolívia, os membros do MERCOSUL de pleno direito e os seus Estados associados, com excepção da Venezuela, tornada membro em Julho de 2006.
Evidentemente, tal como a Europa, e mais especificamente a União Europeia, também o Cone Sul – e dentro deste o MERCOSUL, cujos limites vêm-se coincidentes, aparte a especificidade venezuelana – pode ser entendido a partir de perspectivas distintas, todas elas funcionando como partes identificadoras do todo.
Assim, de uma perspectiva geográfica, o Cone Sul compõe-se como um espaço unitário em virtude de nele actuarem três fenómenos naturais: a região e a bacia platinas, a passagem interoceânica austral e a região e bacia amazónicas . A participação de cada Estado do Cone Sul nestes fenómenos é naturalmente distinta, pois varia consoante a integração territorial nessas áreas e também em função da capacidade de cada qual exercer poder face aos vizinhos.
Na mesma perspectiva, é notório que, não obstante estas identificações, os climas e os relevos sejam contrastantes, assim como os grupos étnicos que na região habitam. Protagonistas de um profundo processo de mestiçagem, estes grupos convivem apesar de serem diferentes e, não raras vezes, antagónicos. Estes grupos humanos não respeitam as fronteiras nacionais politicamente fixadas, antes compõem “formas culturais que respondem com notável persistência a moldagens étnicas peculiares, a ponto de se produzir uma fusão entre etnias e culturas que chegou a formar uma sólida contextura, com um profundo sentido grupal e comunitário” . Este é um dos aspectos mais controversos da história comum do Cone Sul e, por conseguinte, mais difíceis de com esta compatibilizar-se, pois os Estados não estão disponíveis para reconhecer que “seus países ficaram com um só metro de terra pertencente a seu vizinho, preferem, antes, mostrá-los tolerando direitos territoriais, como uma manifestação de sua vontade pacifista ou, em casos extremos, usando o legítimo direito da vitória das armas” . As evidências históricas, todavia, suplantam os desejos nacionalistas – que durante longo tempo procuraram forjar uma identidade nacional assente numa suposta cultura nacional. Hoje, esta complexidade étnica tem levado os líderes políticos dos Estados pertencentes ao Cone Sul a privilegiar os valores nacionais, as idiossincrasias nacionais que estruturam cada nacionalidade, desprezando os valores culturais originais comuns, o que, se é realizado ao nível político, não alcança o das realidades de facto, de modo que, mais acentuada do que as identificações nacionais, é a identificação sub-regional, que constitui um elemento decisivo da estruturação das relações em eixo argentino-brasileiras e, a partir daqui, da consistência do MERCOSUL enquanto processo regional de integração.
As idiossincrasias nacionais são, assim, incapazes de quebrar a identificação sub-regional, o que confere forte base de apoio ao entendimento regional, primeiro binacional, ulteriormente regional. A coesão assim alcançada é, evidentemente, reforçada pela língua – componente fundamental destas culturas – que identifica as comunidades proporcionando-lhes o mais valioso elemento para comunicar-se entre si, mantendo a coesão, que a particularidade linguística do Brasil no contexto castelhano do Cone Sul, não quebra. Afinal, o substrato linguístico do Português e do Castelhano é o mesmo, assim como o estrato e o superestrato .
Estas semelhanças histórico-culturais são reforçadas pela circunstância do Cone Sul haver sido, não só o confim austral do Império Hispânico na América, a zona de fricção e de conflito entre os domínios americanos de Portugal e Espanha, o cenário da confrontação entre brancos e indígenas, como ainda o receptor de várias culturas e nacionalidades provenientes da Europa em acentuadas vagas migratórias , o que faz do Cone Sul um espaço histórico-cultural distinto do exterior. Através da participação nestes acontecimentos, pré-história do Cone Sul, este foi ganhando alguma identidade unitária. A constituição do Vice-Reinado do Rio da Prata, que incluiu quatro Estados da área – hoje correspondentes ao Paraguai, Uruguai, Argentina e Bolívia –, apesar da breve existência que o caracterizou, teve um significado importante do ponto de vista da aquisição, pelo Cone Sul, daquela identidade unitária. Foi a partir das estruturas político-administrativas daquele Vice-Reinado que os líderes políticos da região desenvolveram o processo de formação e de construção da panóplia organizacional dos aparelhos de Estado.
Quer a constituição do Vice-Reinado do Rio da Prata, quer a afirmação do Cone Sul como zona de fricção e de conflito entre Portugal e Espanha foram decisivos na formação deste Cone Sul. Agiram, ambas as circunstâncias, “como causas efecientes de confrontações recorrentes e de receios permanentes (...) matizados (...) com tentativas sempre incompletas de variados acordos, entendimentos e concertos, estimulados primordialmente pela circunstância de ter que enfrentar inimigos comuns” . Predominou, porém, “o ensimesmamento das nações e o isolamento em relação a suas vizinhas, sob o argumento da necessidade de afirmar soberanias nacionais (...) e de assegurar os valores distintivos da nacionalidade (...)” .
O Cone Sul é, também, uma expressão geopolítica, por apresentar diversas hipóteses de conflito, sendo, simultaneamente, uma expressão económica, pelos recursos e riquezas naturais que possui e pelas hipóteses de integração que apresenta. O Cone Sul tem, todavia, na base da sua estrutura populacional, as questões sociais e culturais que produzem desproporções e disparidades tais que chegam a pôr em causa a real existência do MERCOSUL. A solução desta questão passa pelo reconhecimento desta região como parte integrante da América do Sul, em sua projecção imediata, da América Latina, de forma mais abrangente e, ainda, do continente americano, em sua projecção maior.
Todos estes factores contribuíram para que as populações do Cone Sul possuam um profundo traço multiétnico e multicultural sem dúvida cosmopolita. De um modo geral, demonstram adesão e lealdade às culturas nacionais, porém conservam importantes factores das suas culturas originais, estes sim verdadeiros elementos agregadores da região como tal. Acrescidos dos problemas comuns que enfrentam com os restantes países até ao Norte da sub-região, a América do Sul surge, indubitavelmente, acolhida nesta identificação. De facto, os contrastes mais notórios e visíveis não são, todavia, estes da cultura, antes os que apresentam a região como um mosaico de desigualdades de desenvolvimento – contrastes vivos entre a modernização e a estagnação. A América do Sul tanto surge, aos olhos do mundo, como o sector onde se desdobram importantes desenvolvimentos tecnológicos a serviço de um estilo de vida cosmopolita e ultra-moderno, semelhante aos países mais desenvolvidos, como aquele sector onde a miséria, o abandono, a delinquência e a falta daquilo que constitui a base da dignidade de qualquer ser humano imperam. Regiões ricas e regiões pobres são os contrastes mais marcantes da América do Sul, que assim aparece como um espaço de profundas e arraigadas desigualdades sociais, cujos efeitos são por demais nefastos a toda a sub-região, além de trazerem em si vinculado o problema da concentração do poder nas áreas mais ricas e economicamente mais poderosas. Estes contrastes são, porém, partes da mesma realidade, cujo entendimento exige ser o do conjunto. As desigualdades, longe de indiciarem que as partes estão divorciadas, surgem como “prova de que as interações entre as partes são as principais determinantes dos violentos contrastes” .
Estas características, que se encontram no conjunto latino-americano, marcam, sem dúvida, a participação da América do Sul e do Cone Sul na América Latina, ainda que apenas deste ponto de vista. Características complexas e variadas que comprovam a existência dos Estados da América do Sul como partes constitutivas de um conjunto de países vinculados a problemas comuns. Na verdade, paralelamente a todas as características que unem estes Estados numa família, é este o ponto fulcral que mais tem, por si, determinado a unidade da sub-região enquanto tal, voltada, pois, para a superação dos mesmos, através do objectivo comum do desenvolvimento económico. Com efeito, “as nações do Cone Sul [e da América do Sul] têm constituído tradicionalmente (...) uma verdadeira família, porém uma família mal havida, com parentescos às vezes não assumidos e, às vezes, aceitos com desgosto ou sob protesto” . A compreensão da unidade sub-regional sul-americana exige, pois, que se ultrapassem os paradigmas que permitem o entendimento da unidade europeia; e que se utilizem paradigmas que resultem das idiossincrasias próprias da sub-região e não de guerras europeias (mundiais) alheias e longínquas. A realidade sul-americana – e da própria América Latina – foge dos impulsos integradores que conduziram à União Europeia e fixa-se sobre a necessidade de compreender-se – e aceitar-se – as notáveis desigualdades sócio-económicas que caracterizam a região, onde a distribuição das riquezas naturais é desigual e a exploração, a alienação e as guerras sub-regionais são factores decisivos.
Os contrastes extremos que caracterizam as sociedades sul-americanas obrigam-nos a pensar a sub-região, não tanto do ponto de vista da superação de guerras, conflitos e realidades, mas mais da postura de procurar, ao máximo, ultrapassar as desigualdades sociais e regionais de que a pobreza, a marginalização, os índices de analfabetismo, a mortalidade infantil, a baixa esperança média de vida são índices flagrantes. As questões sociais e regionais são, deste modo, os aspectos fundamentais de uma problemática comum que une os Estados no seio da América do Sul e, deste ponto de vista, também no conceito mais abrangente de América Latina, sendo certo que o Cone Sul, no seio da América do Sul pode ser entendido, segundo excelente súmula de Heredia, como um espaço onde se reconhece que a “sua identidade e sentido unitário estão dados pela confluência neste espaço de um conjunto de problemas comuns e mais ou menos generalizados ou estendidos através do tempo; (...) o Cone Sul é formado por três países maiores – Brasil, Argentina e Chile, nessa ordem – e outros três que os são adjacentes e necessários. Os três primeiros têm tido algum protagonismo na ordem internacional, e isto, a seu turno, tem repercutido sobre a posição relativa dos restantes; porém (...) seus problemas estruturais na ordem social e econômica interna os assemelham notoriamente, relativizando, assim, de maneira definitiva as diferenças quando se comparam suas diferenças e os sucessos quanto a seu desenvolvimento e ao bem-estar de suas populações” .
O multiculturalismo, marca característica da América do Sul enquanto identidade regional, é também a marca distintiva do Cone Sul enquanto tal. Por isso, o Cone Sul, assente sobre a base política que lhe é fornecida pelas relações em eixo argentino-brasileiras, pode ser identificado, em última análise, pela moldagem étnico-cultural sub-regional reforçada pela confluência, neste sub-espaço, de um conjunto de problemas comuns que une os Quatro na tentativa de ultrapassá-los. No cerne da identidade do Cone Sul há, pois, a história comum, os problemas comuns, as obrigações que define para os Estados, os interesses comuns e os valores e princípios que assume serem os seus. O que pode estender-se à América do Sul, mas não à América Latina, cujo entendimento como região resulta, apenas, do reconhecimento internacional que, assim, o caracteriza e, ainda, da partilha dos mesmos problemas económico-sociais da América do Sul e do Cone Sul. A verdade, porém, é que a América Latina não existe do ponto de vista de englobar, em seu seio, a América Central e a América do Sul, porque esta tem uma coesão sub-regional forte, como resultado da moldagem étnico-cultural sub-regional reforçada pela união proporcionada pela existência de problemas comuns, mas a América Central não, auto-colando-se na esfera de influência – política e económica, mas também social e cultural – dos Estados Unidos, com o exemplo paradigmático do México. O qual, ainda por cima, geograficamente, na América do Norte se situa.
Falar de América Latina não surge, assim, como um erro propriamente dito. Afinal, a sociedade internacional global reconhece-lhe existência. Por outro lado, os problemas económico-sociais que a América do Sul enfrenta são os mesmos que a América Central. Trata-se, na realidade, de uma imprecisão, pois que a moldagem étnico-cultural sub-regional que agrega os Estados que vão do Norte da Venezuela à Terra do Fogo são características idiossincráticas que a América Central não possui. Agregar, pois, do ponto de vista da precisão exigida pela epistemologia conceptual académica, a América do Sul e a América Central no seio de uma realidade única, chamada América Latina, não é, de facto, o mais correcto. Daí a imprecisão de que se falava, reconhecida, todavia, pela própria sociedade internacional global, que não raramente engloba, num mesmo conjunto, identidades conceptuais distintas.
No contexto em que vivemos, de sociedade internacional global, à maneira de Hedley Bull , tecer reflexões sobre o Brasil e a área regional por esta proto-potência dominada, a América do Sul, adquire um significado muito especial. No particularismo da época, que é a nossa, totalmente voltada para os dramas do terrorismo e temáticas afins, as modas internacionalistas conduzem os académicos, e mesmo a comunicação social, a priorizar as análises voltadas para a área islâmica e do Médio Oriente, ao mesmo tempo que o surgimento económico-comercial da China leva ao crescimento indubitável dos estudos sobre tais matérias, estando a Europa, a União e a restante, totalmente na agenda internacional, com os dossiers quentes da Turquia e do Magreb. Presença constante em todo o panorama analítico e epistemológico das Relações Internacionais, como pano de fundo que abarca, transversalmente, toda a sociedade, estão, sem dúvida, os Estados Unidos da América. De fora ficam, sistematicamente, as áreas ditas periféricas, a África e a América do Sul, não obstante a importância insofismável que, especialmente a esta última, tem de ser dada. Assim o demonstra a História, nunca relegada para segundo plano em matéria de análises internacionalistas.
De facto, as análises sul-americanistas e, num quadro mais restrito e específico, brasilianistas, adquirem uma relevância a que, não raramente, pouca atenção se presta. A região assume-se liderada por um colosso prometedor para um futuro não muito longínquo – assim permitam os Estados Unidos … –, o Brasil, cuja actuação como global player e global trader na sociedade internacional mereceria melhor tratamento por parte dos académicos, tão pouco incomodados com estudos sobre estas temáticas. Daí a pertinência de umas periódicas reflexões sul-americanistas e brasilianistas, no âmbito das quais tentaremos ressoar os ecos dos acontecimentos que por tais paragens vão ocorrendo. Sem esquecer, naturalmente, a abordagem analítico-epistemológica, a que a Academia deve dedicar-se, desses mesmos acontecimentos.
Neste contexto, faz-se mister uma primeira reflexão, por forma a esclarecermos o que aqui será tratado como objecto de estudo. A América do Sul não se confunde, efectivamente, com aquilo que se convencionou designar por América Latina. Se quisermos, poderemos mesmo ir mais longe, afirmando que a América Latina não existe senão pelo facto de estar unida numa mesma língua – esquecendo agora o foco central da região, o Brasil. Aquilo que identifica a América Central como tal não é o que individualiza a América do Sul e, no seio desta, o Cone Sul. Surge, pois, no nosso horizonte analítico, a perspectiva do estudo das identidades, ímpar em demonstrar-nos que aquilo a que, normalmente, se designa por América Central é mais uma extensão latina dos Estados Unidos, do que, propriamente, uma região individualizada. Por outro lado, a América do Sul apresenta características próprias, apresenta uma idiossincrasia muito particular que a distingue do tal prolongamento latino dos Estados Unidos (a alegada América Central). A América do Sul ganha, pois, existência por si.
Daí a necessidade de apelar-se ao estudo das identidades, para percebermos, sustentadamente, até que ponto o que temos vindo a afirmar faz sentido.
Na verdade, o estudo das identidades, regionais e nacionais, é de extrema importância para a construção do argumento aqui em foco. A Teoria das Relações Internacionais ainda não incorporou este objecto cognitivo, porém o mesmo é fundamental para a elaboração argumentativa que temos vindo a desenvolver. “... los estudios de todo lo referido a las nacionalidades (...) han sido encarados con notoria profusión pero desde la perspectiva exclusiva de cada nácion, en tanto son muy escassos los esfuerzos que parten de la presunción de la existencia de un proceso común para la gran región” .
À parte o desprezo da Teoria das Relações Internacionais relativamente ao estudo da gran región, este é indispensável para compreender-se o significado da distinção entre a América Latina e a América do Sul e, dentro desta, o Cone Sul, pois que, se esta assenta sobre idiossincrasias, só pode concretizar-se se existir uma aceitação popular, dessas idiossincrasias, que lhe reconheça autoridade e legitimidade, o que apenas ocorrerá se houver uma identificação das nacionalidades com a região em si. Mais especificamente, se houver uma identificação das nacionalidades que se unem nessa região. No caso da América do Sul, esta identificação regional assenta sobre as bases identitárias que foram sendo criadas em torno das relações em eixo argentino-brasileiras, reforçadas pela existência de problemas comuns.
O termo identidade possui uma avaliação epistemológica complexa, embora possa ser compreendido, seguindo Celso Lafer, como “um conjunto mais ou menos ordenado de predicados por meio dos quais se responde à pergunta: quem sois? Se a resposta a esta pergunta no plano individual não é simples, no plano coletivo é sempre complexa” . O ponto de partida para construir a identidade colectiva é, para Lafer, “a idéia de um bem ou interesse comum que leva pessoas a afirmarem uma identidade por semelhança, lastreada numa visão compartilhada deste bem ou interesse comum” .
A identidade surge, deste modo, como “o princípio mais elementar das sociedades modernas” , como bem reconhece Frank Pfetsch, citando Weidenfeld. Como tal, possui diversas dimensões e níveis de análise, que vão do filosófico (o ser unitário consigo mesmo), o psicológico (sentimento de pertencer a um mesmo grupo), o geográfico (que identifica as fronteiras onde termina o grupo e começa o outro), o cultural (língua, religião, cultura material e estética) ao histórico-político (consciência histórica, nacionalismo, América Latina e América do Sul como realidades auto-definíveis por contraste com as demais) . Assim, tanto a América Latina como a América do Sul têm que ser mais do que mercados de produção e consumo; têm de ser aceites pelos respectivos cidadãos, por forma a emergirem como identidades colectivas capazes de superar o nacionalismo e o racismo como elementos constitutivos da identidade. Esta coloca, então, a questão da vinculação individual a uma colectividade, através de múltiplos pontos de referência e níveis de lealdade. “A identidade começa pelo indivíduo e sua família ou parentela e pode ser estendida (...) à comunidade, ao país, à nação, (...) ou a valores universais (...). Fala-se, assim, por conseguinte, da identidade pessoal, grupal, local ou regional (...) ou universal. Nessa escala de identidades (...) as lealdades podem ser diferentes e simultâneas, além de (...) serem mais ou menos importantes para tal ou qual pessoa” . É evidente que as identidades locais e nacionais são mais consistentes quando comparadas com a identidade latino-americana ou com a identidade sul-americana, que gozam de menor relevância, em função da vinculação mais emocional do indivíduo à identidade nacional, assente no reconhecimento do “território histórico como terra natal (pátria), [da existência de] mitos comuns e memória histórica, cultura de massa comum, direitos e deveres comuns a todos os cidadãos e um espaço econômico comum com mobilidade territorial” , o que apela à identificação da nação por referência a três planos distintos e complementares: o nacional (Hegel), o intra e transnacional (Herder) e o internacional (Marx) .
Na busca de uma identidade latino-americana e de uma outra sul-americana, deve ter-se em conta a definição histórica de identidade, assim como o conceito genético de identidade e, ainda, o conceito sócio-psicológico .
A perspectiva histórica é essencial e inicial. O conceito histórico de identidade apela à determinação da mesma pela relação com o passado, pela consideração do mundo existente no presente e pelas metas projectadas para o futuro. É evidente que, histórica e politicamente, nem a América Latina, nem a América do Sul, jamais constituíram unidades, pois que as dissensões foram a marca constante de ambas as regiões. Vistas de fora, porém, uma e outra ganham contornos distintos, identificando-se pelas diferenças que as opõem aos demais, aos outros, ao estrangeiro. Celso Lafer é ímpar na avaliação da identidade por referência àquilo que lhe é externo. Na pequena síntese sobre a questão da identidade internacional brasileira , refere que “traduzir necessidades internas em possibilidades externas para ampliar o poder de controlo de uma sociedade sobre o seu destino (...) é (...) a tarefa da política externa, considerada como política pública” ; porém, a diluição da diferença entre o interno e o externo, expressiva e intensificada pela lógica centrípeta da globalização, tem alterado os pressupostos do problema. A política externa deixa de surgir tanto como uma esfera de autonomia em relação à política interna – deixando o diplomata e o soldado de viver e simbolizar as relações internacionais assentes numa configuração interestatal – para surgir com aquela interligada – numa lógica de relações internacionais baseada nas complexas redes de interacção governamentais e não-governamentais . Todavia, a concepção da identidade continua a fazer-se, em primeiro lugar, através da autoafirmação externa, o que exige continuidade à política externa, requisito essencial para que “a projeção da conduta do Estado no seio da sociedade internacional revele um alto grau de estabilidade e assegure crédito aos compromissos assumidos” .
O conceito genético da identidade, proveniente da psicologia de grupos, enuncia, como elementos determinantes da coesão grupal, a homogeneização interna, a delimitação face a terceiros, a inclusão das tensões internas, o que nos permite identificar uma identidade para a América do Sul, e nem tanto para a América Latina, por surgir esta como um conjunto que abarca realidades totalmente distintas.
O conceito psicológico ou psicossocial da identidade apela ao vínculo afectivo dos cidadãos ou nações a certa comunidade política. A identificação individual, a partir dessa vinculação emocional de cada um ao grupo ou à comunidade transforma-se em identidade colectiva. A identidade sul-americana diz, assim, respeito a elementos comuns aos respectivos cidadãos que os percebem e julgam como tais. Neste contexto, o Cone Sul individualiza-se da América do Sul pela formatação do MERCOSUL, no seio do qual as lealdades locais, nacionais e regionais prevalecem sobre o todo integrado, mas são tidas em conta na formação da respectiva vontade, o que é feito diariamente, através do trabalho dos Órgãos do MERCOSUL e na conformação das policies, por contraposição à politics. Assim, na confrontação com outras identidades, exteriores ao MERCOSUL, uma consciência mercosulina emerge, ainda que este processo careça ainda de consolidação, por tratar-se de um processo integracionista bastante jovem. A América Latina, por seu lado, não integra elementos comuns aos respectivos cidadãos, que não os percebem nem julgam como tais, pois que um Nicaraguense pouco de comum tem com um Boliviano ou um Argentino.
Parece necessário, então, atentar sobre os conceitos de nação e de região. Assim, enquanto a nação, enfatizando determinado modelo ideológico, “es una creación intelectual, volitiva y deliberada” , a região “es el producto de una combinación de los factores ambientales y de los factores puramente humanos de orden colectivo o comunitario” , o que significa que não poderá existir senão por referência a determinado espaço geográfico, por oposição à nação, que poderá existir sem este. O conceito de nação inspira-se, fundamentalmente, na ideia e na busca da soberania, como forma de distinguir-se das outras nações e assim apresentar-se ao exterior, afirmando personalidade e integridade próprias. A região, por seu lado, “se há inspirado en la voluntad de establecer la identidade de una comunidad en relación con su ambiente, y es a partir de esa identificación que se projecta para establecer relaciones con otras unidades, ja sean de dimensión regional o nacional” , de modo a explicar o país para dentro, como parte de uma unidade maior. A região implica, assim, a existência de unidades complementares e semelhantes entre si, que não se desfazem mesmo em presença de rivalidades, até porque as relações intra-regiões procuram a harmonia, a suplementaridade e a complementaridade. O conceito de estrangeiro surge como elemento identificador das identidades nacional e regional.
Uma nação identifica-se não só para dentro, como para fora, por referência àquilo que lhe é distinto, estrangeiro. O mesmo sucede à região. Assim, a América do Sul identifica-se internamente, não apenas pelas características que apresenta, como também por referência àquilo que, exteriormente, lhe é distinto, isto é, estrangeiro. Transpondo a lógica analítica que Celso Lafer utiliza para estudar a identidade internacional do Brasil para a análise da identidade da América do Sul, é possível, perante o raciocínio que temos vindo a desenvolver, constatar-se que esta região possui, efectivamente, uma identidade internacional que se afirma válida na sociedade internacional global, enquanto funciona como região como tal reconhecida por essa sociedade, à escala continental, no contexto da vizinhança e no sistema internacional assimétrico como um todo. A América Latina, embora não afirme a coesão interna necessária para ser reconhecida como região, apresenta um reconhecimento por parte da sociedade internacional global, que lhe confere existência, não por aquilo que é internamente, mas pela forma como é apercebida externamente.
É bem verdade que, na sociedade internacional global, as imagens e os níveis de soberania e de poder de decisão dos Estados modificam-se em razão da participação em organizações internacionais, cuja ingerência cresce nos assuntos internos desses Estados. As identidades regionais saem, deste processo, indiscutivelmente reforçadas, não obstante a maior identificação emocional dos cidadãos às identidades nacionais e locais e não obstante aquelas identidades regionais assentarem sobre estas, cuja existência lhes confere consistência.
O que são, então, a América Latina e a América do Sul, inserindo-se neste o mais restrito conceito de Cone Sul? São espaços geográficos ou modelos civilizacionais? São projectos económicos ou projectos políticos? São novas realidades históricas ou doutrinas filosóficas?
Estas questões colocam-se por tangerem aspectos sensíveis da consciência individual e colectiva das sociedades neles englobadas.
A diversidade dos percursos históricos e das realidades políticas e sociais dos Estados-membros de cada região apenas mediante a adesão intelectual e cultural dos seus cidadãos pôde ser ultrapassada para dar origem a processos de convergência cujo início situa-se na vinculação emocional dos indivíduos à respectiva região. Por um lado, esta ligou indissoluvelmente os destinos dos Estados e, por outro, e por arrastamento, permitiu que aquela adesão, entre os cidadãos, ocorresse. A contiguidade territorial dos povos no território continental foi importante para associar os países. Porém, não foi suficiente. Embora os povos se sentissem identificados com essa unidade territorial, os modos de pensar, as mentalidades, as culturas, as formas de vida quotidiana, as práticas sociais sempre foram mais importantes , ainda que o imaginário unificador, como lhe chama o Professor Doutor Estevão Martins , venha sendo concretizado através da iniciativa política, da acção estatal, governamental.
É bem verdade que a América do Sul encerra em si uma realidade empírica assaz divergente. A América do Sul e os Sul-Americanos são, obviamente, um mosaico de espaços geográficos ricos de multissecular acção humana, um mosaico de sistemas políticos e sociais, de fidelidades políticas e sentimentos de pertença, de grupos étnicos e tradições históricas, de heranças culturais e religiosas e de relações económicas complexas. A ideia de América do Sul é, assim, uma ideia complexa, que assenta, basicamente, na existência de uma cultura comum, de uma língua comum, reforçada pela existência de problemas económicos e sociais também eles comuns.
Na verdade, a imensidade territorial, as dificuldades naturais de comunicação e as intermináveis lutas entre os herdeiros políticos dos vice-reinados coloniais transformaram a América do Sul em simples referência geográfica de origem económico-política. A identificação do espaço latino-americano era inexistente . O elemento comum guardado pelas nacionalidades das Américas seria, durante longo tempo, marcado apenas pelo nome.
“A ideia e o conceito primeiros do que é a América Latina se originam nos tempos da incorporação de suas nações à economia e ao sistema político mundiais, na segunda metade do século XIX. Sob esse nome ficaram envolvidas as nações compreendidas entre o Rio Bravo – fronteira setentrional do México – e o extremo sul-americano – limites austrais de Chile e Argentina” , ainda que Heredia teça algumas considerações sobre o cabimento de considerar-se o Canadá francófono – onde há uma forte tendência independentista e uma vontade política consequente de terminar com a tutela britânica, cuja existência é, todavia, apenas simbólica – como parte deste grande conjunto.
Seja como for, a primeira identificação do conjunto latino-americano proveio da Europa, cujos Estados mais avançados repararam nas riquezas naturais da região, indispensáveis aos processos industriais que aí tinham início. Quando os Estados Unidos saíram da Guerra da Secessão, entraram também na busca dessas riquezas latino-americanas, dando origem à forte competição por posições vantajosas. A partir daqui, a América Latina adquiriu a sua identidade como tal, explicada segundo os interesses perseguidos pelas potências europeias e norte-americana. Simultaneamente, as nações latino-americanas iniciavam um processo interno de auto-definição regional, ao sustentarem as lutas emancipadoras, sensivelmente de 1810 a 1824. Durante este período, as classes dirigentes latino-americanas compreenderam que haviam percorrido um caminho histórico mais ou menos comum e que os processos de inserção internacional eram, também, mais ou menos semelhantes. Aceitaram, então, que o conjunto regional ficasse englobado sob a comum denominação de América Latina.
No decorrer do século XIX, duas propostas opostas foram, entretanto, desenvolvidas no relacionamento das nações latino-americanas entre si. Uma primeira, que as inclinava a privilegiar os vínculos que tinham com a Europa. Uma segunda, que procurava resgatar os valores culturais originais mais ou menos comuns, o que permitiu, digamos, a entrada num segundo período, caracterizado pelo estabelecimento de sistemas de harmonização – sob as formas de anfictionia, confederação, federação ou liga de nações –, durante 1820 – data da criação da Federação Grancolombiana – até 1852 – data do término da Confederação Argentina. Este período viu, assim, transcorrerem processos que procuravam ultrapassar o estado de prostração colonial . Depois disso, a formação dos Estados nacionais teve início, dando corpo a uma terceira fase do processo formador das identidades nacionais latino-americanas, cujo término variaria consoante os casos específicos. A vontade unionista não morreria, contudo. A tendência proto-nacionalista que levaria os povos latino-americanos a regressar à primeira fase, copiando o modelo nacional e estatal então em consolidação na Europa, ver-se-ia em choque com o discurso integracionista que nasceria logo após a Segunda Guerra Mundial com alguma voracidade .
Desta forma, o termo América Latina “passou, sucessivamente, de uma conotação que vinculava este setor do mundo à civilização latina (...), a outra que denotava a oposição a uma América Anglo-Saxã (...) até uma terceira que encarnava os sentimentos e o empenho por resgatar outros valores considerados como mais originais, mais autênticos (...), os mais legítimos para afirmar e definir uma idiossincrasia diferenciada e distintiva; (...) valores (...) que tinham suas origens nas formas de vida dos habitantes dos tempos anteriores à chegada do homem europeu e os que resultaram das intensas mestiçagens biológicas e culturais posteriores” .
Neste processo, parte da região latino-americana foi adquirindo especificidades que levariam à sua distinção, ainda que integrada no conjunto maior da América Latina. Passar-se-ia, então, a identificar, no seio da América Latina, o Cone Sul – formado pelos actuais Estados do Brasil, da Argentina, do Paraguai, do Uruguai, do Chile e da Bolívia, os membros do MERCOSUL de pleno direito e os seus Estados associados, com excepção da Venezuela, tornada membro em Julho de 2006.
Evidentemente, tal como a Europa, e mais especificamente a União Europeia, também o Cone Sul – e dentro deste o MERCOSUL, cujos limites vêm-se coincidentes, aparte a especificidade venezuelana – pode ser entendido a partir de perspectivas distintas, todas elas funcionando como partes identificadoras do todo.
Assim, de uma perspectiva geográfica, o Cone Sul compõe-se como um espaço unitário em virtude de nele actuarem três fenómenos naturais: a região e a bacia platinas, a passagem interoceânica austral e a região e bacia amazónicas . A participação de cada Estado do Cone Sul nestes fenómenos é naturalmente distinta, pois varia consoante a integração territorial nessas áreas e também em função da capacidade de cada qual exercer poder face aos vizinhos.
Na mesma perspectiva, é notório que, não obstante estas identificações, os climas e os relevos sejam contrastantes, assim como os grupos étnicos que na região habitam. Protagonistas de um profundo processo de mestiçagem, estes grupos convivem apesar de serem diferentes e, não raras vezes, antagónicos. Estes grupos humanos não respeitam as fronteiras nacionais politicamente fixadas, antes compõem “formas culturais que respondem com notável persistência a moldagens étnicas peculiares, a ponto de se produzir uma fusão entre etnias e culturas que chegou a formar uma sólida contextura, com um profundo sentido grupal e comunitário” . Este é um dos aspectos mais controversos da história comum do Cone Sul e, por conseguinte, mais difíceis de com esta compatibilizar-se, pois os Estados não estão disponíveis para reconhecer que “seus países ficaram com um só metro de terra pertencente a seu vizinho, preferem, antes, mostrá-los tolerando direitos territoriais, como uma manifestação de sua vontade pacifista ou, em casos extremos, usando o legítimo direito da vitória das armas” . As evidências históricas, todavia, suplantam os desejos nacionalistas – que durante longo tempo procuraram forjar uma identidade nacional assente numa suposta cultura nacional. Hoje, esta complexidade étnica tem levado os líderes políticos dos Estados pertencentes ao Cone Sul a privilegiar os valores nacionais, as idiossincrasias nacionais que estruturam cada nacionalidade, desprezando os valores culturais originais comuns, o que, se é realizado ao nível político, não alcança o das realidades de facto, de modo que, mais acentuada do que as identificações nacionais, é a identificação sub-regional, que constitui um elemento decisivo da estruturação das relações em eixo argentino-brasileiras e, a partir daqui, da consistência do MERCOSUL enquanto processo regional de integração.
As idiossincrasias nacionais são, assim, incapazes de quebrar a identificação sub-regional, o que confere forte base de apoio ao entendimento regional, primeiro binacional, ulteriormente regional. A coesão assim alcançada é, evidentemente, reforçada pela língua – componente fundamental destas culturas – que identifica as comunidades proporcionando-lhes o mais valioso elemento para comunicar-se entre si, mantendo a coesão, que a particularidade linguística do Brasil no contexto castelhano do Cone Sul, não quebra. Afinal, o substrato linguístico do Português e do Castelhano é o mesmo, assim como o estrato e o superestrato .
Estas semelhanças histórico-culturais são reforçadas pela circunstância do Cone Sul haver sido, não só o confim austral do Império Hispânico na América, a zona de fricção e de conflito entre os domínios americanos de Portugal e Espanha, o cenário da confrontação entre brancos e indígenas, como ainda o receptor de várias culturas e nacionalidades provenientes da Europa em acentuadas vagas migratórias , o que faz do Cone Sul um espaço histórico-cultural distinto do exterior. Através da participação nestes acontecimentos, pré-história do Cone Sul, este foi ganhando alguma identidade unitária. A constituição do Vice-Reinado do Rio da Prata, que incluiu quatro Estados da área – hoje correspondentes ao Paraguai, Uruguai, Argentina e Bolívia –, apesar da breve existência que o caracterizou, teve um significado importante do ponto de vista da aquisição, pelo Cone Sul, daquela identidade unitária. Foi a partir das estruturas político-administrativas daquele Vice-Reinado que os líderes políticos da região desenvolveram o processo de formação e de construção da panóplia organizacional dos aparelhos de Estado.
Quer a constituição do Vice-Reinado do Rio da Prata, quer a afirmação do Cone Sul como zona de fricção e de conflito entre Portugal e Espanha foram decisivos na formação deste Cone Sul. Agiram, ambas as circunstâncias, “como causas efecientes de confrontações recorrentes e de receios permanentes (...) matizados (...) com tentativas sempre incompletas de variados acordos, entendimentos e concertos, estimulados primordialmente pela circunstância de ter que enfrentar inimigos comuns” . Predominou, porém, “o ensimesmamento das nações e o isolamento em relação a suas vizinhas, sob o argumento da necessidade de afirmar soberanias nacionais (...) e de assegurar os valores distintivos da nacionalidade (...)” .
O Cone Sul é, também, uma expressão geopolítica, por apresentar diversas hipóteses de conflito, sendo, simultaneamente, uma expressão económica, pelos recursos e riquezas naturais que possui e pelas hipóteses de integração que apresenta. O Cone Sul tem, todavia, na base da sua estrutura populacional, as questões sociais e culturais que produzem desproporções e disparidades tais que chegam a pôr em causa a real existência do MERCOSUL. A solução desta questão passa pelo reconhecimento desta região como parte integrante da América do Sul, em sua projecção imediata, da América Latina, de forma mais abrangente e, ainda, do continente americano, em sua projecção maior.
Todos estes factores contribuíram para que as populações do Cone Sul possuam um profundo traço multiétnico e multicultural sem dúvida cosmopolita. De um modo geral, demonstram adesão e lealdade às culturas nacionais, porém conservam importantes factores das suas culturas originais, estes sim verdadeiros elementos agregadores da região como tal. Acrescidos dos problemas comuns que enfrentam com os restantes países até ao Norte da sub-região, a América do Sul surge, indubitavelmente, acolhida nesta identificação. De facto, os contrastes mais notórios e visíveis não são, todavia, estes da cultura, antes os que apresentam a região como um mosaico de desigualdades de desenvolvimento – contrastes vivos entre a modernização e a estagnação. A América do Sul tanto surge, aos olhos do mundo, como o sector onde se desdobram importantes desenvolvimentos tecnológicos a serviço de um estilo de vida cosmopolita e ultra-moderno, semelhante aos países mais desenvolvidos, como aquele sector onde a miséria, o abandono, a delinquência e a falta daquilo que constitui a base da dignidade de qualquer ser humano imperam. Regiões ricas e regiões pobres são os contrastes mais marcantes da América do Sul, que assim aparece como um espaço de profundas e arraigadas desigualdades sociais, cujos efeitos são por demais nefastos a toda a sub-região, além de trazerem em si vinculado o problema da concentração do poder nas áreas mais ricas e economicamente mais poderosas. Estes contrastes são, porém, partes da mesma realidade, cujo entendimento exige ser o do conjunto. As desigualdades, longe de indiciarem que as partes estão divorciadas, surgem como “prova de que as interações entre as partes são as principais determinantes dos violentos contrastes” .
Estas características, que se encontram no conjunto latino-americano, marcam, sem dúvida, a participação da América do Sul e do Cone Sul na América Latina, ainda que apenas deste ponto de vista. Características complexas e variadas que comprovam a existência dos Estados da América do Sul como partes constitutivas de um conjunto de países vinculados a problemas comuns. Na verdade, paralelamente a todas as características que unem estes Estados numa família, é este o ponto fulcral que mais tem, por si, determinado a unidade da sub-região enquanto tal, voltada, pois, para a superação dos mesmos, através do objectivo comum do desenvolvimento económico. Com efeito, “as nações do Cone Sul [e da América do Sul] têm constituído tradicionalmente (...) uma verdadeira família, porém uma família mal havida, com parentescos às vezes não assumidos e, às vezes, aceitos com desgosto ou sob protesto” . A compreensão da unidade sub-regional sul-americana exige, pois, que se ultrapassem os paradigmas que permitem o entendimento da unidade europeia; e que se utilizem paradigmas que resultem das idiossincrasias próprias da sub-região e não de guerras europeias (mundiais) alheias e longínquas. A realidade sul-americana – e da própria América Latina – foge dos impulsos integradores que conduziram à União Europeia e fixa-se sobre a necessidade de compreender-se – e aceitar-se – as notáveis desigualdades sócio-económicas que caracterizam a região, onde a distribuição das riquezas naturais é desigual e a exploração, a alienação e as guerras sub-regionais são factores decisivos.
Os contrastes extremos que caracterizam as sociedades sul-americanas obrigam-nos a pensar a sub-região, não tanto do ponto de vista da superação de guerras, conflitos e realidades, mas mais da postura de procurar, ao máximo, ultrapassar as desigualdades sociais e regionais de que a pobreza, a marginalização, os índices de analfabetismo, a mortalidade infantil, a baixa esperança média de vida são índices flagrantes. As questões sociais e regionais são, deste modo, os aspectos fundamentais de uma problemática comum que une os Estados no seio da América do Sul e, deste ponto de vista, também no conceito mais abrangente de América Latina, sendo certo que o Cone Sul, no seio da América do Sul pode ser entendido, segundo excelente súmula de Heredia, como um espaço onde se reconhece que a “sua identidade e sentido unitário estão dados pela confluência neste espaço de um conjunto de problemas comuns e mais ou menos generalizados ou estendidos através do tempo; (...) o Cone Sul é formado por três países maiores – Brasil, Argentina e Chile, nessa ordem – e outros três que os são adjacentes e necessários. Os três primeiros têm tido algum protagonismo na ordem internacional, e isto, a seu turno, tem repercutido sobre a posição relativa dos restantes; porém (...) seus problemas estruturais na ordem social e econômica interna os assemelham notoriamente, relativizando, assim, de maneira definitiva as diferenças quando se comparam suas diferenças e os sucessos quanto a seu desenvolvimento e ao bem-estar de suas populações” .
O multiculturalismo, marca característica da América do Sul enquanto identidade regional, é também a marca distintiva do Cone Sul enquanto tal. Por isso, o Cone Sul, assente sobre a base política que lhe é fornecida pelas relações em eixo argentino-brasileiras, pode ser identificado, em última análise, pela moldagem étnico-cultural sub-regional reforçada pela confluência, neste sub-espaço, de um conjunto de problemas comuns que une os Quatro na tentativa de ultrapassá-los. No cerne da identidade do Cone Sul há, pois, a história comum, os problemas comuns, as obrigações que define para os Estados, os interesses comuns e os valores e princípios que assume serem os seus. O que pode estender-se à América do Sul, mas não à América Latina, cujo entendimento como região resulta, apenas, do reconhecimento internacional que, assim, o caracteriza e, ainda, da partilha dos mesmos problemas económico-sociais da América do Sul e do Cone Sul. A verdade, porém, é que a América Latina não existe do ponto de vista de englobar, em seu seio, a América Central e a América do Sul, porque esta tem uma coesão sub-regional forte, como resultado da moldagem étnico-cultural sub-regional reforçada pela união proporcionada pela existência de problemas comuns, mas a América Central não, auto-colando-se na esfera de influência – política e económica, mas também social e cultural – dos Estados Unidos, com o exemplo paradigmático do México. O qual, ainda por cima, geograficamente, na América do Norte se situa.
Falar de América Latina não surge, assim, como um erro propriamente dito. Afinal, a sociedade internacional global reconhece-lhe existência. Por outro lado, os problemas económico-sociais que a América do Sul enfrenta são os mesmos que a América Central. Trata-se, na realidade, de uma imprecisão, pois que a moldagem étnico-cultural sub-regional que agrega os Estados que vão do Norte da Venezuela à Terra do Fogo são características idiossincráticas que a América Central não possui. Agregar, pois, do ponto de vista da precisão exigida pela epistemologia conceptual académica, a América do Sul e a América Central no seio de uma realidade única, chamada América Latina, não é, de facto, o mais correcto. Daí a imprecisão de que se falava, reconhecida, todavia, pela própria sociedade internacional global, que não raramente engloba, num mesmo conjunto, identidades conceptuais distintas.
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