AS ELEIÇÕES BRASILEIRAS
É já no Domingo que mais de 134 milhões de eleitores Brasileiros vão às urnas escolher o sucessor de Lula, assim como os governadores dos estados, 2/3 dos deputados estaduais e federais e 2/3 dos senadores.
Interessante verificar, entretanto, a reviravolta que se tem processado ao nível das preferências da população relativamente ao novo presidente da República.
Até Julho/Agosto, as sondagens indicavam um empate técnico entre os dois principais candidatos: José Serra, do PSDB de Fernando Henrique Cardoso, e Dilma Rousseff, do PT de Lula. Em Abril, as sondagens davam 32% dos votos a Dilma e 40% a Serra, enquanto em Maio o empate fixava-se nos 37% para cada um. No início de Junho, Dilma chegou a ter 40% das preferências do eleitorado e Serra 35%, voltando o empate a surgir, no fim desse mês, nos 39%.
A partir de Julho, todavia, as variações caminhariam sempre no sentido do aumento de intenções de voto para Dilma e de diminuição para Serra, sendo de registar que, constante nos 8-9% entre Abril e o início de Setembro, Marina Silva, do Partido Verde (PV), subiu para 12%, de acordo com as sondagens do Ibope de meados de Setembro.
Na verdade, é Marina Silva quem mais se tem destacado no aumento das intenções de voto de Agosto até hoje, tendo passado dos 7% em finais de Agosto para 12% em meados de Setembro.
Significativo que, no último debate televisivo entre os candidatos, promovido Quinta Feira (30 de Setembro) pela Rede Globo, foi Marina Silva quem mais se destacou pela veemência do discurso inflamado (com que aliás já nos habituou). Embora o debate tenha sido morno, com Dilma e Serra a evitar o confronto bilateral e a jogar à defesa, optando, a primeira, por espicaçar Plínio Arruda, do PSOL (Partido Socialismo e Liberdade) e Marina, e o segundo por confrontar apenas Marina, a candidata do PV destacou-se também ao solicitar ao eleitorado que leve as eleições a segunda volta – o que cada vez se torna mais provável, embora há um mês não parecesse esse o caminho que tomariam as eleições de 3 de Outubro.
De facto, segundo as mais recentes sondagens, que têm vindo a realizar-se desde o início de Setembro, Dilma já passou de 51% (no início desse mês) para 50% (em meados do mês), situando-se hoje nos 49%, depois do debate de ontem. Isto tem resultado de uma clara migração de votos para Marina Silva, a candidata que mais cresce nas sondagens desde Agosto. Assim, bastam a Marina 3 ou 4 pontos percentuais para destronar a maioria absoluta de Dilma. E, se esta conseguir apenas 45-46% dos votos, como já foi cogitado, as eleições serão levadas a segundo turno a 31 de Outubro, entre Dilma e Serra.
As sondagens desta última semana têm sido mais sorridentes a Dilma, embora o espectro de uma segunda volta se mantenha, para o Instituto Datafolha, que, a 29 de Setembro, conferiu 52% a Dilma, 31% a Serra e 15% a Marina. O Ibope e o CNT/Sensus apresentam preferências de voto mais apelativas ainda para a candidata de Lula, segundo sondagens divulgadas a 28 de Setembro. Para o Ibope, Dilma segue à frente com 55%, seguida de Serra com 30% e de Marina com 14%. Para o CNT/Sensus, os dados revelados também no dia 28 são semelhantes: Dilma com 54,7%, Serra com 29,5% e Marina com 13,3%.
As sondagens têm apresentado oscilações nem sempre fáceis de interpretar. Fala-se mesmo de uma «guerra de sondagens», pois tão depressa Dilma surge como a grande vencedora logo na primeira volta, como se dá como certa uma ida a segundo turno, em função de algumas quedas que Dilma apresenta por vezes, que não têm afectado Serra, enquanto Marina continua a aumentar. Daí o espectro da segunda volta. Por outro lado, tomando em consideração as margens de erro das sondagens, que giram em torno dos 2 pontos percentuais, em alguns casos a vitória de Dilma a 3 de Outubro é posta em causa. Tomando como exemplo a sondagem do Datafolha acima mencionada, se a margem de erro de 2% se confirmasse, Dilma ficaria com apenas 50%, não alcançando os 50% mais um dos votos válidos para fazer eleger-se na primeira volta.
As margens estão, pois, muito reduzidas. A migração de votos para Marina e a diminuição dos votos nulos ou brancos nas sondagens, de 8% para 4%, segundo sondagem do Datafolha de 30 de Setembro, não animam o panorama para a candidata do PT.
Em caso de se ir a uma segunda volta, as últimas sondagens do Ibope, CNT/Sensus, Datafolha e Vox Populi dão a maioria absoluta a Dilma, com 55% dos votos, ficando-se José Serra pelos 38% (e os votos nulos ou brancos em 7%). Também nestas simulações de uma eventual segunda volta, Dilma vem crescendo significativamente desde Agosto. Até Julho, a diferença entre os dois candidatos era de 1-2%: em Maio registavam-se 46% para Dilma e 47% para Serra; em Junho 45% para Dilma e 45% para Serra e, em Julho, 46% para a primeira e 45% para o segundo. A partir de Agosto, a diferença foi-se alargando, chegando Dilma a ter, na sondagem referente aos dias 13 a 15 de Setembro, 57% e Serra apenas 35%. Ou seja, uma vantagem, para Dilma, de 22% sobre Serra. Na sondagem referente aos dias 21 e 22, essa vantagem baixou para 17%. Certo é que Fernando Henrique Cardoso já afirmou que, em caso de uma segunda volta, tudo fará para estabelecer uma ponte entre o seu candidato e Marina.
De alguma forma, estes resultados mostram que os escândalos envolvendo a Casa Civil do Presidente Lula, que levaram à resignação da Chefe da Casa Civil Erenice Guerra, não afectaram grandemente Dilma. A corrupção e o lobby da Casa Civil foram fortemente criticados pelos votantes das classes mais instruídas e de renda alta – uma fatia muito pequena do eleitorado brasileiro – mantendo-se todavia a preferência por Dilma nas restantes classes sociais.
Mas as eleições de 3 de Outubro e, se necessário, de 31 de Outubro, não são apenas para escolher o sucessor do carismático Lula. Os mais de 134 milhões de eleitores serão também chamados a escolher novos governadores para os estados, 2/3 dos deputados estaduais e federais e 2/3 dos senadores, de acordo com o sistema eleitoral brasileiro. Haverá, em consonância, a composição do governo que se espera, desde logo, vir a ser muito eclético, com uma base de suporte que irá do PT ao PCdoB (Partido Comunista do Brasil), passando pelo incontornável PMDB – o maior e mais constante vencedor das eleições estaduais e legislativas. Por uma razão muito simples: como não apresenta candidato à Presidência da República desde 1984, as negociações e as compensações em troca de apoios rendem-lhe sempre posições favoráveis e confortáveis, designadamente ao nível de grandes pastas do governo. Este facto é tanto mais verdadeiro quanto, em nome da nomeação de Dilma, Lula teve de conceder compensações. Afinal, enquanto Lula é fundador do PT, Dilma só se filiou no partido em 2001, o que constituiu um motivo forte para que muitas lideranças do PT criassem barreiras à indicação de Dilma. De alguma forma, Dilma terá sido «imposta» por Lula ao PT, sem possuir, nem capital político, nem o carisma de Lula. Além da margem de aprovação popular de Lula de 80%, segundo as últimas sondagens, Dilma nunca disputara antes qualquer pleito, enquanto Lula já se candidatara a presidente três vezes antes de ser eleito em 2002.
Estas condicionantes seguramente limitarão os alcances do PT nas eleições extra-presidenciais e, evidentemente, na composição do governo, onde se espera vir a ter uma participação menor. Ainda assim, cogitam-se, para a pasta da Fazenda, António Palocci, Guido Mantega ou Luciano Martinho. O que demonstra, claramente, a intenção, já muito anunciada por Dilma, de seguir o caminho da continuidade relativamente à Administração Lula. Em relação à Fazenda, de qualquer forma, quer ela, quer mesmo Serra, pouco poderiam inovar. Para além do próprio Serra ter tecido rasgados elogios a Lula durante a campanha eleitoral, não sendo de esperar que elaborasse grandes alterações, o Brasil tem regras relativas aos fluxos financeiros que tem de cumprir. E se já a política de Palocci e, depois, de Mantega, fora idêntica à de Pedro Malan do governo FHC, para os próximos quatro anos o cenário manter-se-á inalterado. Ademais, o sistema político brasileiro difere dos modelos anglo-saxónicos. Nestes, para que o candidato vença, tem de apregoar a mudança. No Brasil, a vitória é assegurada se apelar à continuidade. O que aliás explica a preferência do eleitorado por Dilma, ainda que, se esta está na sombra de Lula, o mesmo se pode dizer de Serra, para o qual atacar o ainda presidente seria dar um tiro no próprio pé. Já para a pasta das Relações Exteriores o nome mais falado é o do ex-Secretário Geral do Ministério das Relações Exteriores, Samuel Pinheiro Guimarães, que abandonou o cargo por ter completado 70 anos. Mas para ser ministro não existem limites etários.
Não esquecer, ainda, que o vice-presidente será do PMDB. O anterior vice-presidente, José de Alencar, empresário, era uma personalidade controversa, tendo mesmo defendido a bomba atómica (embora não tenha sido o único) e, ademais, oriundo de um partido pouco expressivo. Ao contrário, Michel Themer está bem posicionado. E deixará o PT em sérias dificuldades no caso de ter de assumir no lugar de Dilma que, embora tenha sido já dada como curada, persistem dúvidas quanto à sua capacidade física para liderar o Brasil herdado de Lula.
Para os quatro mais importantes estados do Brasil: São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul e Rio de Janeiro, esperam-se, respectivamente, as vitórias, para governador, de Geraldo Alckmin (PSDB), com 49%, frente a Aloísio Mercadante (PT), com apenas 27%; António Anastasia (PSDB), com 52% frente aos 43% de Hélio Costa (PMDB); Tarso Genro (PT), com 52% face a José Fogaça (PMDB), com 25%, e Yeda Crusius (PSDB), com apenas 15%; e de Sérgio Cabral (PMDB), com 67% contra os 21% de Fernando Gabeira (PV).
Vale lembrar que a lei eleitoral brasileira utiliza o pior sistema de representação proporcional de deputados eleitos: o sistema de lista aberta, de acordo com o qual os eleitores podem votar no partido ou num indivíduo de um partido. Em 95% dos casos em que os eleitores votam em nomes individuais, desconhecem a proveniência partidária dos candidatos. Até porque, muitas vezes, os próprios candidatos, na campanha eleitoral, omitem a sua referência partidária e apenas apresentam o nome, a fotografia e o número de código.
Este sistema de votação em nomes individuais tem levado ao aparecimento de candidatos, no mínimo, exóticos, mas que atraem camadas de eleitores, como por exemplo o humorista Tiririca, que se espera vir a obter cerca de 1 milhão de votos para o Senado. Recentemente, um artigo da BBC apelidou estes candidatos de «wacky». Além de Tiririca, são exemplos curiosos de candidatos a «Mulher Pêra» e a «Mulher Melão», sendo de ressaltar que também desportistas como Romário, Popó e Maguila se candidatam, assim como cantores como Netinho (candidato a senador por São Paulo, através do PCdoB) e Sérgio Reis.
Friday, October 1, 2010
Wednesday, September 22, 2010
Uma Incursão (Necessariamente Incompleta...) Pela História do Brasil
Descoberto a 22 de Abril de 1500, o Brasil, depois de ultrapassada a era pré-colombiana que antecedeu a expedição do navegador português Pedro Álvares Cabral, soma 507 anos de existência, primeiro como colónia portuguesa de além-mar, depois constituído como império e, finalmente, como república federativa de estados.
O Brasil criou, contudo, sob uma fachada de harmonia, uma sociedade amplamente contraditória, resultado da miscigenação de povos – indígenas, europeus e africanos –, da cultura portuguesa que manteve o país unido – ao contrário do sucedido com a América do Sul espanhola –, das promessas negadas pelas realidades da discriminação, da violência e da pobreza generalizada, assumindo-se, hoje, como uma das sociedades mais desiguais do mundo.
Quinta maior extensão política do Planeta, o Brasil localiza-se, em grande parte, na zona intertropical, já que 90% do território brasileiro situa-se entre o Equador e o Trópico de Capricórnio; sendo, duas vezes por ano, penetrado, perpendicularmente, ao meio-dia, pelos raios do Sol, quando este atinge o zénite; além de possuir outras características da tropicalidade: temperatura do mês mais frio do ano igual ou superior a 18º C, índice pluviométrico anual superior a 250mm, cultivo do solo sem necessidade de recorrer à irrigação, extensas florestas quentes e húmidas, territórios semelhantes às savanas tropicais, como as caatingas, os campos e os cerrados, existência de solos de aluvião e de vegetação acentuadamente marcados pela influência tropical[1]. Por outro lado, apenas a parcela meridional do Brasil – composta pelos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, por grande parte do Paraná, pelo Sul de São Paulo e pela extremidade Sul do Mato Grosso do Sul – se situa no espaço subtropical[2], a partir do Trópico de Capricórnio.
Possuindo, desta forma, 1,7% do território mundial, 5,7% das terras emersas, 1/5 das regiões tropicais, 41,5% de toda a América Latina e 47,3% da América do Sul[3], o Brasil detém uma dimensão continental, resultado, quer do processo secular de colonização portuguesa do litoral e de penetração no interior, quer da anexação paulatina de territórios que, pelo Tratado de Tordesilhas (1494), pertenciam, de jure, à América espanhola[4].
Foram a soberania sobre esta vasta área territorial, assim como a demarcação das fronteiras daí resultantes, que originaram os vários confrontos que Portugal travou, durante a época colonial, com a Espanha, a Holanda e a Grã-Bretanha. Do mesmo modo, seriam estes os motivos que levariam o Brasil independente a disputar, com a França, o Amapá; com a Bolívia, o Acre; e com a Argentina, o Uruguai e o Paraguai, territórios platinos.
Na verdade, o próprio descobrimento do Brasil resultou da intensa competição luso-castelhana pela obtenção de uma rota marítima para o Oriente. Rivalidade que conduziria, num primeiro momento, à assinatura do Tratado de Tordesilhas (1494), para a divisão do Oceano entre Portugal e Espanha e, num segundo, à celebração do Acordo de Saragoça (1529), para a partilha do Novo Mundo, do Oceano Pacífico e da Ásia Oriental. A contraposição de teses relativas ao descobrimento do Brasil é ilustrativa desta intensa rivalidade. Uma vez que argumentos geográficos referentes à análise do movimento das marés na costa brasileira desvirtuam a tese de que o Brasil terá sido descoberto por acaso (pois se assim fosse tê-lo-ia sido muito mais a Norte do que realmente sucedeu), ganha força a tese segundo a qual o rei D. Manuel I terá dado instruções confidenciais a Pedro Álvares Cabral, comandante da expedição, para parar no Brasil, então já descoberto. A necessidade de todo este secretismo em torno da expedição cabralina reside, como bem nota Jorge Couto, “por um lado, na complexa teia de relações familiares e políticas que ligavam os soberanos de Portugal e Castela-Aragão, que, todavia, não eliminava a intensa competição ultramarina em que as respectivas Coroas se encontravam envolvidas e, por outro, nas profundas divergências existentes entre as concepções geográficas perfilhadas e os métodos de navegação utilizados por Portugueses e Castelhanos”[5]. Empenhado, no início de 1500, na exploração e tomada de posse das terras ocidentais que se encontrassem no hemisfério português, D. Manuel I terá, assim, dado instruções reservadas a Cabral para, “no decurso da sua viagem para o Índico, explorar a região oeste do Atlântico Sul, com o objectivo de encontrar o prolongamento austral do continente visitado por Colombo, Caboto e Duarte Pacheco, a fim de aí estabelecer uma escala destinada a apoiar a operacionalidade da rota do Cabo”[6], sendo o secretismo resultado de motivos geopolíticos, diplomáticos, económicos e técnicos.
Uma vez descoberto, posteriormente colonizado, o Brasil seria alvo da rivalidade luso-espanhola, que ganharia terreno, depois acrescida da cobiça holandesa e britânica. Situação que seria mantida após a independência, marcando definitivamente aquilo que viria, depois, a ser o Brasil contemporâneo, sendo certo, todavia, que a compreensão deste exige, em particular, a análise das transformações sócio-político-económicas por que o país passou ao longo do século XX-início do século XXI, as quais estão na base da sociedade brasileira. Detentor de uma multirracialidade relativamente bem-sucedida, porém hierarquizada e extremamente desigual, sendo ainda de salientar a capacidade da elite política, relativamente pequena, de enfrentar as repetidas ameaças de revolução e os inúmeros protestos populares, o Brasil, designadamente a região sudeste, erigiu, na década de 1970, o maior parque industrial do Terceiro Mundo, adensando as contradições de uma sociedade que, industrializada, crescentemente urbana, é também pouco moderna, muito hierarquizada e com uma concentração de renda e de poder acima do normal.
A indagação de como essa sociedade emergiu e do que a tem permitido tornar-se aberta e igualitária como nunca o foi assume-se, assim, central para compreender-se as transformações por que o Brasil tem vindo a passar desde a independência, proclamada a 7 de Setembro de 1822, sendo certo, todavia, que o Brasil colónia estrutura, desde logo, a base sobre a qual assenta desde 1822. Uma base de continentalidade que determina as características da sociedade brasileira.
Na verdade, questionando-se, há dois séculos, a versão oficial de que Cabral chegara ao Brasil por acaso, ao afastar-se da África rumo à Índia, na mais possante frota da História de Portugal, com treze navios, em ligação com a problemática em torno do Tratado de Tordesilhas, o selvagem Brasil viu-se de início preterido em função do rico e promissor Oriente, sendo o pau-brasil o único atractivo da nova terra.
Algumas expedições colonizadoras, contudo, como a de Martim Afonso de Sousa, a primeira a ir além do extrativismo, foram-se realizando, tentando-se a ocupação assente na iniciativa particular, como havia já sido feito nas ilhas do Atlântico, com as capitanias hereditárias. Foram, porém, os bandeirantes que mais avançaram na expansão territorial do Brasil, assistindo-se, lentamente, à organização administrativa, social, política, económica e cultural da nova terra, ao mesmo tempo que incursões de Holandeses e crises esporádicas do sistema colonial se iam registando[7].
Na verdade, a decadência do domínio colonial ibérico agravou-se no século XVIII. A independência dos Estados Unidos da América (1776), a Revolução Francesa (1789-99) e os ideais da Liberdade, Igualdade e Fraternidade e a independência progressiva da América Latina despoletaram a crise no Brasil, que muito maior, mais rico e já mais populoso que a Metrópole, encarava a condição de colónia como um fardo.
A proibição das fábricas no Brasil por alvará régio e a cada vez maior dependência de Portugal face aos ditames britânicos acentuaram o processo independentista que parecia já irreversível, num terreno onde prosperavam os ideais da Revolução Francesa.
Neste ambiente, as inconfidências mineira e baiana, ambas da segunda metade do século XVIII, prenunciaram já a transição para a independência da colónia, que a transferência da Corte tornaria, de imediato, realidade. A propósito do Bloqueio Continental decretado por Napoleão em 1806 e a impossibilidade da neutralidade, a Corte cedeu à pressão de Londres e mudou-se para o Rio de Janeiro, ficando a administração do reino a cargo de uma regência que Beresford dominava completamente[8].
Como bem nota Luiz Alberto Moniz Bandeira, desde 1783 que Dom luís da Cunha, notável diplomata português, avaliava que D. João V, para conservar Portugal, necessitava totalmente das riquezas do Brasil e não das de Portugal, já que era mais cómodo e seguro estar onde a riqueza económica subsistia[9]. De facto, a economia do Brasil, até meados do século XVIII, era, do ponto de vista industrial, bastante maior que a da Grã-Bretanha. Só a produção e exportação da indústria açucareira ultrapassaram, em largos períodos, o valor de £ 3 milhões anuais, enquanto a exportação britânica não alcançava tal cifra[10]. Posto isto, naturalmente que, no início do século XIX, a política económica portuguesa assentava em grande parte sobre a produção brasileira. Ainda que as rendas provenientes do Brasil tivessem, no orçamento do erário régio, um peso inferior a 25%, a verdade é que as exportações brasileiras para Portugal, de 1796 para 1807, passaram de 28 687 000 para 34 819 000, sendo ainda certo que grande parte dos produtos exportados por Portugal eram provenientes da colónia brasileira[11]. Dados que assumem uma relevância ainda mais acentuada se tivermos em conta o estado dramático da economia portuguesa a partir de meados do século XVIII, em virtude dos efeitos colaterais produzidos pela assinatura do Tratado de Meethuen com a Grã-Bretanha (1703). Desde esse ano que Portugal vinha, efectivamente, abandonando paulatinamente as suas incipientes manufacturas, em favor de um retorno à viticultura e à exportação de vinho e azeite, o que o tornava cada vez mais dependente do mundo exterior, em especial da Grã-Bretanha, seu principal parceiro comercial e fornecedor de produtos manufacturados. É evidente que, com as reformas económicas do Marquês de Pombal e seus sucessores, aproveitando as tendências internacionais – que operavam em favor do comércio – Portugal foi conseguindo expandir o seu comércio. Todavia, sempre com base na promoção dos produtos provenientes das colónias, em especial do Brasil. O algodão brasileiro, por exemplo, tinha uma importância determinante neste contexto. Entre 1781 e 1792, a exportação anual total do algodão brasileiro de Portugal para a Grã-Bretanha subiu de 135 para 3 500 toneladas, enquanto, em igual período, a França importou anualmente cerca de 620 toneladas[12].Assim, de 1796 a 1807 (com excepção dos anos 1797 e 1799), Portugal desfrutou de um saldo positivo na Balança Comercial, sendo que o Brasil, sozinho, era responsável por 83% do valor total de bens importados por Portugal das suas colónias[13].
Torna-se evidente, a partir desta análise, que o vector económico era, à época, um instrumento crucial na sustentação do Império Lusitano. Para D. João VI era certo que não existiria tal império caso o Brasil fosse dos Britânicos ou caso o seu rei fosse feito prisioneiro pelos Franceses ou pelos Espanhóis. Assim, mesmo com Portugal subjugado pelos Franceses, a única forma de conservar a riqueza do império, e simultaneamente empreender a resistência aos Franceses, seria deslocar o centro de gravidade da decisão política do Reino, de Lisboa para o Rio de Janeiro, permitindo a solidificação da monarquia. Ademais, como nota Moniz Bandeira, o diplomata Dom Luís da Cunha considerava, ainda, a hipótese de D. João VI, assumindo-se como imperador do Ocidente, poder expandir o seu império através da conquista do Reino do Peru e de um acordo com a Espanha, mediante a troca do Algarve pelo Chile, até ao Estreito de Magalhães[14].
A extensão e a riqueza do império eram, assim, tidas em consideração como factor decisivo na equação geoestratégica do posicionamento de Portugal no mundo. No entanto, não eram apenas as considerações económicas que imperavam na base deste pensamento geoestratégico. No final do século XVIII, quando Napoleão começou a sua ascensão, invadindo depois Portugal e promovendo o bloqueio à Grã-Bretanha, o nosso país sentiu, uma vez mais, as fragilidades geoestratégicas do seu posicionamento na Europa, surgindo, então, uma vez mais, a defesa da tese da transferência da Corte para o Brasil, o que acabou por ocorrer de facto. O Brasil surgiu, deste modo, como a solução geopolítica por excelência que, para além de apontar para a renovação do império português, punha cobro às pressões diplomáticas e agressões que Portugal vinha, há tanto tempo, sofrendo na Europa.
Surge claro, pois, que a viagem do príncipe regente, da respectiva família e Corte, para o Brasil, não significou a fuga real às responsabilidades nacionais; pelo contrário, representou a materialização de uma visão estratégica que vinha sendo amadurecida há mais de um século, na esperança de se vir a formar, na América do Sul, longe das vulnerabilidades e das ameaças de Portugal, um grande império. Esperança que acabaria por ser catalisada pelas convulsões napoleónicas.
A condição de sede do Reino lisonjeou a colónia, que assim viveu uma metamorfose económica, social, política, administrativa e cultural. Assistiu-se à abertura de portos, à liberação das indústrias e a uma série de outros progressos concretos que levariam o rei D. João VI, sem pressa de regressar a Lisboa uma vez vencido Napoleão e reposta a ordem pelo Congresso de Viena, a alterar o estatuto político da América Portuguesa, criando o Reino do Brasil, unido a Portugal e aos Algarves. Acalentando o plano de fazer do Brasil um vasto império, expandido ao Prata, e confiar Portugal a seu filho primogénito D. Pedro, D. João VI traçava, pela primeira vez, os contornos de um estado brasileiro com territorialidade bem definida[15].
Os movimentos de independência, grandemente impulsionados pela Maçonaria – activa na Europa desde a Renascença e pregando nas Américas a independência –, porém, frustrariam todos os planos neste sentido. Em 1817 assistiu-se à primeira de uma longa série de revoltas que, da Amazónia ao Rio Grande do Sul, ambicionavam a independência, ao mesmo tempo que a Revolução Liberal de 1820, na Metrópole, inaugurava, na colónia brasileira, a profunda crise político-institucional que desembocaria no Grito do Ipiranga[16].
A revolução de 1820, na verdade, expôs a crise do regime, não só em Portugal, onde a regência fora substituída por uma junta provisória, como também no Brasil. E enquanto em Portugal a crise aprofundava-se e as contradições aguçavam-se, nas lutas entre os liberais e os absolutistas chefiados pelo infante D. Miguel, no Brasil, D. Pedro, de influência liberal, suprimia impostos abusivos e proclamava liberdades e garantias. Exigido o seu regresso a Portugal pelas Cortes, em Janeiro de 1822, decidiu, porém, ante petições e pressões várias, permanecer no Brasil, mantendo-se sob a decisiva influência de José Bonifácio de Andrada e Silva, Patriarca da Independência[17].
Logo após a ficada, como então se dizia, tudo conduziu à independência. A tropa portuguesa, amotinada no Rio de Janeiro em apoio às Cortes, foi dominada e o príncipe-regente expulsou e proibiu a chegada de outras, ordenando também que os decretos de Lisboa apenas fossem aplicados com o seu aval. Indicou cônsules brasileiros em Buenos Aires, Londres, Washington e Paris, recebeu o título de Defensor Perpétuo do Brasil e convocou uma Assembleia Constituinte e Legislativa do Brasil, num percurso que conduziria ao Grito do Ipiranga, quando D. Pedro, a 7 de Setembro de 1822, anunciasse a célebre divisa Independência ou Morte, ficando para a História de Portugal como um traidor e, para a do Brasil, como um herói[18].
Iniciar-se-ia o modelo liberal-conservador de organização interna e inserção internacional que, marcado pelos parâmetros da agroexportação, esgotar-se-ia na ampla margem de manobra do Brasil entre a Grande Depressão e o fim da Segunda Guerra Mundial, quando se estruturou o desenvolvimentismo que, se do ponto de vista externo rompeu com o alinhamento automático face aos Estados Unidos, retomando a orientação diplomática do Brão do Rio Branco, internamente assentaria numa busca incessante pelo desenvolvimento económico através do método da substituição de importações. Regendo-se internamente por este nacional desenvolvimentismo populista de esquerda, o Brasil de Vargas actuaria, externamente, de acordo com esse padrão de comportamento, numa postura que atingiria o apogeu na barganha nacionalista às vésperas da Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil desenvolveu o nacional desenvolvimentismo em termos de actuação externa. Neste período, o Brasil vendeu a preço elevado a sua adesão a um conflito que não lhe interessava. O Brasil jogava com o Eixo e com os Aliados, negociando e apoiando aquele que, no momento, mais vantagens económicas lhe oferecesse, sem pejo em voltar-se de um para outro consoante essas vantagens. O Brasil e a América do Sul ganhavam rapidamente um poder de negociação como nunca haviam tido, sem que os EUA se apercebessem dessa relevância no contexto declarado de beligerância.
Apenas com as vitórias de Rommel no Norte d`África é que os Estados Unidos se aperceberam da importância da região, começando Roosevelt a temer uma invasão alemã às Américas, a partir do Nordeste brasileiro. Roosevelt oferece a Vargas, neste contexto, no célebre encontro de 1942, o financiamento integral da Siderurgia de Volta Redonda, nos arredores do Rio de Janeiro, como forma de comprar a adesão brasileira aos Aliados. Conseguiu e, Volta Redonda, a maior siderurgia da América Latina, seria construída em tempo recorde, começando a funcionar logo em 1946.
Todavia, o propósito de Getúlio teve uma duração limitada. Ele actuava ainda num momento dominado pelas velhas estruturas regionais de poder e, quando as contradições internas da sociedade brasileira se avolumaram, ele caiu e, junto, o seu nacional desenvolvimentismo. Em 1946, a reacção conservadora a Vargas colocou no poder Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), por forma a terminar com o varguismo incómodo ao status quo da ordem interna brasileira e da ordem externa hemisférica.
O desenvolvimento económico do Brasil – que já havia estado presente na equidistância pragmática de 1935 a 1942 e no alinhamento do Brasil aos EUA em 1942, quando o país lucrou em reequipamento económico e militar – não deixou de dominar a política brasileira. Muito pelo contrário: o alinhamento incondicional de Dutra aos EUA visava, precisamente, uma relação especial com a superpotência ocidental, que deveria implicar um tratamento especial face às reivindicações brasileiras de auxílio económico para o desenvolvimento económico interno.
O método do alinhamento a Washington para o alcance desse fim não foi, todavia, o mais acertado perante as dinâmicas do Brasil de então e, nesse contexto, germinariam as sementes desenvolvimentistas de Vargas. Ou seja, o nacional desenvolvimentismo de Vargas, conquanto não tenha vingado na sua época, viria a ter muito mais importância no futuro do que se poderia supor, pois funcionaria como as raízes profundas das características sócio-político-económicas internas e de autonomia que a política externa brasileira voltaria a ter, assim que Dutra saísse do poder.
De facto, em 1951, houve uma reacção ao conservadorismo de Dutra, que levou Vargas novamente ao poder (1951-1954), com uma nova aplicação, interna e externa, do nacional desenvolvimentismo populista de esquerda de outros tempos. O desenvolvimento económico do país continuava a ser a prioridade, mas desta vez Vargas teria de adaptar-se à era bipolar.
O contexto interno e externo que Vargas encontrou era bastante distinto do que o que existira entre 1930 e 1945.
Internamente, o incremento da industrialização e da consequente urbanização levaram à afirmação da burguesia e de uma classe operária nascente que, porém, impunha novas exigências ao poder político. O sistema político era obrigado a dar resposta à crescente participação popular, o que levou Vargas a retomar o desenvolvimentismo todavia abrindo a economia brasileira ao exterior, em busca de capitais, tecnologia e cooperação económica.
Externamente, e uma vez que Getúlio precisava desses capitais e, por conseguinte, da cooperação norte-americana, no contexto de Guerra Fria, em que os EUA, mais preocupados com a Europa, desligavam-se da América Latina, que sabiam de antemão estar do seu lado, a margem de manobra do Brasil foi drasticamente reduzida. Situação que se acentuou quando, em 1953, o republicano Eisenhower se tornou presidente dos Estados Unidos. Estando a Europa e o Japão ainda em processo de reconstrução e o Terceiro Mundo ainda muito embrionário, restava ao Brasil apenas a cooperação de origem norte-americana, à qual não tinham como fugir.
Esta contradição externa somava-se aos distúrbios pelos quais passava a sociedade brasileira, a braços com uma crescente polarização entre direita e esquerda, ao mesmo tempo que o desenvolvimentismo de Vargas era cada vez menos apoiado e gerava sucessivamente mais críticas. Esta situação conduziu Vargas ao suicídio – para não ter de renunciar – o que provocou uma imensa comoção nacional.
Em seu lugar, a reacção conservadora fez ascender ao poder uma figura manejável pelos EUA, Café Filho (1954-1955), visando pôr ordem ao caos populista esquerdizante do Brasil. Novamente, interna e externamente, o Brasil voltou a alinhar-se com a potência norte-americana, promovendo uma total abertura económica ao capitalismo, assim como a afirmação das teses da Escola Superior de Guerra (ESG). A política externa brasileira vivia o primeiro hiato da linha de autonomia e independência na inserção internacional do país que tem vingado até hoje.
Figura apagada da História do Brasil, que permaneceria na Presidência nem um ano completo, Café Filho – dos períodos do país menos estudados – depressa motivaria uma forte reacção ao conservadorismo que tentou imprimir às dinâmicas do Brasil, com a eleição de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-1961). O desenvolvimentismo ganhava novamente força, especialmente consubstanciado no Plano de Metas dos 50 anos em 5. Necessitando de capitais externos para levar adiante esse plano, em função da escassez de reservas do Brasil, Jk teria de associar esse desenvolvimentismo à entrada desses capitais estrangeiros no país, o que, se criou um desfasamento entre a política e a economia, depressa deu origem a uma síntese entre o desenvolvimentismo e a necessidade de capitais estrangeiros – leia-se norte-americanos – na formulação do que seria o desenvolvimentismo associado (associado aos capitais externos).
Jânio Quadros e João Goulart prosseguiriam na via desenvolvimentista, mais autónoma que a da era JK, levando-a aos extremos com a radicalização expressa na Política Externa Independente.
Com estas características, o paradigma desenvolvimentista, que havia substituído o modelo liberal-conservador de inserção internacional, predominante do final do século XIX até meados de 1930, produziu o que podemos denominar de hiperpolitização das sociedades latino-americanas, designadamente a argentina, a brasileira, a chilena e a mexicana. Afinal de contas, o Estado era o centro das decisões sobre as principais questões económicas e políticas da sociedade; tendo sido justamente sob essa matriz que as sociedades latino-americanas incorporaram politicamente, a partir da década de 1930, as classes médias e populares urbanas[19].
A ordem internacional então vigente permitiu a estruturação desse paradigma desenvolvimentista, já que tolerou que as principais sociedades latino-americanas gozassem de autonomia para gerir e organizar os respectivos subsistemas capitalistas nacionais (ainda que dependentes do centro) e para construir formas próprias de domínio político[20].
Sob tal lógica internacional, acrescentada da regulação e directa actuação do Estado, a Argentina logrou alcançar taxas razoáveis de crescimento económico, chegando o Brasil e o México a obter taxas consideradas muito boas.
O desenvolvimentismo, assente numa lógica de acentuado pragmatismo, foi a marca característica de todo o regime militar brasileiro. Na realidade, desde a implantação do regime militar no Brasil, em 1964 (e, mais especificamente, desde o segundo governo militar, com Costa e Silva no poder a partir de 1967) que a política externa brasileira foi fortemente guiada pelo desenvolvimentismo e pelo pragmatismo, assim se mantendo até que a crise da dívida viesse alterar os pressupostos sobre os quais assentava o paradigma desenvolvimentista, provocando, a partir daí, mutações consideráveis no ordenamento brasileiro, quer interno, quer externo, designadamente o fim do regime militar em 1985.
De facto, a subida ao poder, nos EUA, de Ronald Reagan (1980-1988) viria bloquear a trajectória precedente. Convencido da necessidade de recuperar a hegemonia norte-americana, Reagan colocaria um ponto final no diálogo Norte-Sul e na proposta da Nova Ordem Económica Internacional.
Os vectores de estrangulamento histórico do desenvolvimento nacional brasileiro tornar-se-iam, a partir daqui, perfeitamente evidentes: a dependência energética do exterior, especialmente no referente ao petróleo bruto, e os serviços da dívida externa[21], crescentemente preocupantes e impeditivos da aplicação de recursos em investimentos produtivos[22].
O modelo vinculado ao desenvolvimentismo evoluía, assim, para uma fase de crise e de contradições, passando o Brasil a sofrer os efeitos perversos do sistema internacional, no qual passava a ser sujeito passivo, não obstante o influxo positivo do Itamaraty relativamente às políticas e possibilidades do comércio externo[23].
Deste modo, o período da crise da dívida assiste à redução do espaço de actuação que o sistema de poder internacional deixava aos Estados nacionais. Desde logo, tornava-se mais evidente a globalização financeira, que minava notoriamente a ordem económica do pós-guerra. Por outro lado, a ideologia institucional-neoliberal, que desde o final da década de 1970, se convertera em matriz dos governos britânico e norte-americano, expandia-se aos organismos financeiros multilaterais do Ocidente, que passavam a exigir, dos governos que necessitavam do seu auxílio, a adopção de políticas monetárias e fiscais ortodoxas, concordantes com o figurino neoliberal[24].
A situação internacional passava, assim, a deixar um espaço de actuação reduzido às elites governamentais dos países periféricos da América Latina para reconstruírem a ordem interna nos moldes o anterior desenvolvimentismo. Por conseguinte, as sociedades latino-americanas começaram a transformar-se, fosse por processos de democratização, fosse através da liberalização económica, fosse por meio de ambos.
No Brasil, a democratização ocorreu antes da liberalização económica. O regime autoritário não resistiu à alteração da ordem internacional, ao mesmo tempo que, face às dificuldades internas, a democracia parecia o melhor meio para enfrentá-las, porque supunha uma maior capacidade para manejar os instrumentos da gestão económica sem romper com o intervencionismo estatal do passado. Por isso, o novo regime democrático brasileiro optou pela manutenção da anterior articulação entre o Estado e a economia, em meio à falta de recursos externos e às pressões internacionais contrárias[25].
No fim da década de 1980 e início da seguinte, o fracasso desse modelo tornou-se evidente, generalizando-se a crença de que era absolutamente necessário que a sociedade brasileira se ajustasse às exigências da globalização, e do próprio Institucionalismo-Neoliberal, no sentido de liberalizar a economia. Foi assim que, a partir de Fernando Collor de Melo (1990-1992), a intelectualidade governamental brasileira deixou-se dominar pelos postulados do Washington Consensus. Encerrando o ciclo desenvolvimentista em 1989, as novas orientações, moldando o Estado Normal[26], apareciam, todavia, confusas e contraditórias, ainda que plenamente dominadas pelos interesses económicos.
Na verdade, diante do novo cenário internacional, a política externa brasileira parecia perdida, incapaz de manter a racionalidade e a continuidade que, durante 60 anos, lhe havia impresso, na busca incessante pelo desenvolvimento nacional. O Itamaraty não reagiu com facilidade ao novo contexto internacional. O processo de impeachment de Collor de Mello, em 1992, e o hiato do governo de Itamar Franco até 1994 contribuiram para a indefinição.
Apenas a partir de 1995, com Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e a continuidade da gestão do ministro dos Negócios Estrangeiros Luiz Felipe Lampreia (1995-2000) o Brasil pareceu capaz de reagir, ainda que sob os postulados neoliberais vindos de Washington. Reagindo aos novos condicionalismos externos, essa reacção não era, contudo, coerente e firme; antes fazia crer que a responsável pela crise do endividamento era a estratégia tradicional da racionalidade desenvolvimentista e, por isso, esta deixava de ser o centro nevrálgico da política do governo, de ora em diante marcada pelas directrizes de Washington, ao mesmo tempo que a liberalização económica iniciada por Collor dava mostras de insustentabilidade.
Na realidade, o Brasil encontrava, nos fluxos de capitais, nova fonte de dependência, enquanto revigorava o multilateralismo, com base no entendimento com a Argentina em torno da resolução do contencioso das águas, que daria origem à assinatura, em Março de 1991, do Tratado de Assunção, criando o Mercosul, juntamente com o Uruguai e o Paraguai.
Dando prosseguimento à política económica de Fernando Henrique, o governo Lula não só não rompeu com a orientação liberal do segundo mandato de Cardoso, como inclusive, a aprofundou. O primeiro governo Lula (2003-2006) exerceu um ajuste fiscal ainda mais forte que o realizado sob a era Cardoso, aplicando uma política monetária ainda mais rígida e retomou o programa de reformas (tributária, da Segurança Social, de autonomia do Banco Central, laboral, entre outras) de carácter amplamente liberal, que a Administração Fernando Henrique tinha suspenso por falta de condições políticas para levar a efeito[27]. Lula lançou assim, no início do segundo mandato, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), no qual a política liberalizante surge evidente. Mas nele nota-se, também, como já se tornara claro no primeiro mandato, a preocupação social do presidente sindicalista, que à lógica capitalista tem agregado o estado interventor da era desenvolvimentista.
De facto, é necessário atentar sobre algo que parece fundamental. Em toda a manutenção que traduz da política económica, em termos práticos, o PAC reflecte uma mudança da essência dessa mesma política, ao ressuscitar o papel mais activo do Estado na promoção do desenvolvimento, que há muito vinha sendo afastado da lógica económica do Brasil, em outros tempos desenvolvimentista. E, mais importante, a orientação de Lula resultou em ganhos económicos sustentados para o Brasil, que tem revelado capacidade para reduzir e, até, solucionar, a médio prazo, alguns dos mais graves problemas internos. Sendo a décima economia mundial, a economia brasileira prova estar apta a superar situações que, outrora, a afastariam dos seus intentos de transformar a Nação em potência regional.
Neste sentido, existe uma correlação entre o papel desempenhado pelo Brasil na América do Sul e no mundo e a sua própria evolução interna. O Brasil funciona, assim, como âncora da América do Sul, cujo desempenho económico e actuação externa, na base das relações em eixo, o têm levado ao patamar de potência regional prestes a transformar-se em potência mundial.
A sua diplomacia multilateral e pragmática, o incremento da sua capacidade de emprego dos meios de defesa – ainda embrionária – permitem o cálculo positivo dos interesses nacionais. Com o apoio mútuo do seu comércio externo global, o Brasil, líder regional do Mercosul e dos mecanismos de integração política, económica, física e social sul-americanos, tem assumido, no contexto internacional global, o papel de interlocutor dos países emergentes com os países mais avançados, ao contestar a hegemonia norte-americana através da estruturação de alianças com esses emergentes. O G20 permite-lhe influir no comércio mundial; o G4 coloca-o no centro das questões de segurança e defesa; o G3 lança-o na liderança da cooperação Sul-Sul; a UNASUL e o seu Conselho de Defesa (criado em Março de 2009), permitem-lhe liderar os esforços de integração na América do Sul, a partir das relações em eixo com a Argentina.
Por outro lado, a manutenção da integridade territorial – com a sensível questão da Amazónia – o combate às recentes ameaças – como o macroterrorismo, o narcotráfico e o crime organizado – a capacidade de dissuasão e projecção no Atlântico Sul, permitiram ao Brasil de Lula começar a afirmar a sua dimensão estratégica, ao mesmo tempo que os tradicionais problemas políticos, económicos e sociais internos viram, com Lula, um combate mais objectivo e sustentado.
O Brasil, desta forma, a partir da plataforma regional, projecta-se como actor global, como o gigante adormecido que finalmente acorda.
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O Brasil criou, contudo, sob uma fachada de harmonia, uma sociedade amplamente contraditória, resultado da miscigenação de povos – indígenas, europeus e africanos –, da cultura portuguesa que manteve o país unido – ao contrário do sucedido com a América do Sul espanhola –, das promessas negadas pelas realidades da discriminação, da violência e da pobreza generalizada, assumindo-se, hoje, como uma das sociedades mais desiguais do mundo.
Quinta maior extensão política do Planeta, o Brasil localiza-se, em grande parte, na zona intertropical, já que 90% do território brasileiro situa-se entre o Equador e o Trópico de Capricórnio; sendo, duas vezes por ano, penetrado, perpendicularmente, ao meio-dia, pelos raios do Sol, quando este atinge o zénite; além de possuir outras características da tropicalidade: temperatura do mês mais frio do ano igual ou superior a 18º C, índice pluviométrico anual superior a 250mm, cultivo do solo sem necessidade de recorrer à irrigação, extensas florestas quentes e húmidas, territórios semelhantes às savanas tropicais, como as caatingas, os campos e os cerrados, existência de solos de aluvião e de vegetação acentuadamente marcados pela influência tropical[1]. Por outro lado, apenas a parcela meridional do Brasil – composta pelos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, por grande parte do Paraná, pelo Sul de São Paulo e pela extremidade Sul do Mato Grosso do Sul – se situa no espaço subtropical[2], a partir do Trópico de Capricórnio.
Possuindo, desta forma, 1,7% do território mundial, 5,7% das terras emersas, 1/5 das regiões tropicais, 41,5% de toda a América Latina e 47,3% da América do Sul[3], o Brasil detém uma dimensão continental, resultado, quer do processo secular de colonização portuguesa do litoral e de penetração no interior, quer da anexação paulatina de territórios que, pelo Tratado de Tordesilhas (1494), pertenciam, de jure, à América espanhola[4].
Foram a soberania sobre esta vasta área territorial, assim como a demarcação das fronteiras daí resultantes, que originaram os vários confrontos que Portugal travou, durante a época colonial, com a Espanha, a Holanda e a Grã-Bretanha. Do mesmo modo, seriam estes os motivos que levariam o Brasil independente a disputar, com a França, o Amapá; com a Bolívia, o Acre; e com a Argentina, o Uruguai e o Paraguai, territórios platinos.
Na verdade, o próprio descobrimento do Brasil resultou da intensa competição luso-castelhana pela obtenção de uma rota marítima para o Oriente. Rivalidade que conduziria, num primeiro momento, à assinatura do Tratado de Tordesilhas (1494), para a divisão do Oceano entre Portugal e Espanha e, num segundo, à celebração do Acordo de Saragoça (1529), para a partilha do Novo Mundo, do Oceano Pacífico e da Ásia Oriental. A contraposição de teses relativas ao descobrimento do Brasil é ilustrativa desta intensa rivalidade. Uma vez que argumentos geográficos referentes à análise do movimento das marés na costa brasileira desvirtuam a tese de que o Brasil terá sido descoberto por acaso (pois se assim fosse tê-lo-ia sido muito mais a Norte do que realmente sucedeu), ganha força a tese segundo a qual o rei D. Manuel I terá dado instruções confidenciais a Pedro Álvares Cabral, comandante da expedição, para parar no Brasil, então já descoberto. A necessidade de todo este secretismo em torno da expedição cabralina reside, como bem nota Jorge Couto, “por um lado, na complexa teia de relações familiares e políticas que ligavam os soberanos de Portugal e Castela-Aragão, que, todavia, não eliminava a intensa competição ultramarina em que as respectivas Coroas se encontravam envolvidas e, por outro, nas profundas divergências existentes entre as concepções geográficas perfilhadas e os métodos de navegação utilizados por Portugueses e Castelhanos”[5]. Empenhado, no início de 1500, na exploração e tomada de posse das terras ocidentais que se encontrassem no hemisfério português, D. Manuel I terá, assim, dado instruções reservadas a Cabral para, “no decurso da sua viagem para o Índico, explorar a região oeste do Atlântico Sul, com o objectivo de encontrar o prolongamento austral do continente visitado por Colombo, Caboto e Duarte Pacheco, a fim de aí estabelecer uma escala destinada a apoiar a operacionalidade da rota do Cabo”[6], sendo o secretismo resultado de motivos geopolíticos, diplomáticos, económicos e técnicos.
Uma vez descoberto, posteriormente colonizado, o Brasil seria alvo da rivalidade luso-espanhola, que ganharia terreno, depois acrescida da cobiça holandesa e britânica. Situação que seria mantida após a independência, marcando definitivamente aquilo que viria, depois, a ser o Brasil contemporâneo, sendo certo, todavia, que a compreensão deste exige, em particular, a análise das transformações sócio-político-económicas por que o país passou ao longo do século XX-início do século XXI, as quais estão na base da sociedade brasileira. Detentor de uma multirracialidade relativamente bem-sucedida, porém hierarquizada e extremamente desigual, sendo ainda de salientar a capacidade da elite política, relativamente pequena, de enfrentar as repetidas ameaças de revolução e os inúmeros protestos populares, o Brasil, designadamente a região sudeste, erigiu, na década de 1970, o maior parque industrial do Terceiro Mundo, adensando as contradições de uma sociedade que, industrializada, crescentemente urbana, é também pouco moderna, muito hierarquizada e com uma concentração de renda e de poder acima do normal.
A indagação de como essa sociedade emergiu e do que a tem permitido tornar-se aberta e igualitária como nunca o foi assume-se, assim, central para compreender-se as transformações por que o Brasil tem vindo a passar desde a independência, proclamada a 7 de Setembro de 1822, sendo certo, todavia, que o Brasil colónia estrutura, desde logo, a base sobre a qual assenta desde 1822. Uma base de continentalidade que determina as características da sociedade brasileira.
Na verdade, questionando-se, há dois séculos, a versão oficial de que Cabral chegara ao Brasil por acaso, ao afastar-se da África rumo à Índia, na mais possante frota da História de Portugal, com treze navios, em ligação com a problemática em torno do Tratado de Tordesilhas, o selvagem Brasil viu-se de início preterido em função do rico e promissor Oriente, sendo o pau-brasil o único atractivo da nova terra.
Algumas expedições colonizadoras, contudo, como a de Martim Afonso de Sousa, a primeira a ir além do extrativismo, foram-se realizando, tentando-se a ocupação assente na iniciativa particular, como havia já sido feito nas ilhas do Atlântico, com as capitanias hereditárias. Foram, porém, os bandeirantes que mais avançaram na expansão territorial do Brasil, assistindo-se, lentamente, à organização administrativa, social, política, económica e cultural da nova terra, ao mesmo tempo que incursões de Holandeses e crises esporádicas do sistema colonial se iam registando[7].
Na verdade, a decadência do domínio colonial ibérico agravou-se no século XVIII. A independência dos Estados Unidos da América (1776), a Revolução Francesa (1789-99) e os ideais da Liberdade, Igualdade e Fraternidade e a independência progressiva da América Latina despoletaram a crise no Brasil, que muito maior, mais rico e já mais populoso que a Metrópole, encarava a condição de colónia como um fardo.
A proibição das fábricas no Brasil por alvará régio e a cada vez maior dependência de Portugal face aos ditames britânicos acentuaram o processo independentista que parecia já irreversível, num terreno onde prosperavam os ideais da Revolução Francesa.
Neste ambiente, as inconfidências mineira e baiana, ambas da segunda metade do século XVIII, prenunciaram já a transição para a independência da colónia, que a transferência da Corte tornaria, de imediato, realidade. A propósito do Bloqueio Continental decretado por Napoleão em 1806 e a impossibilidade da neutralidade, a Corte cedeu à pressão de Londres e mudou-se para o Rio de Janeiro, ficando a administração do reino a cargo de uma regência que Beresford dominava completamente[8].
Como bem nota Luiz Alberto Moniz Bandeira, desde 1783 que Dom luís da Cunha, notável diplomata português, avaliava que D. João V, para conservar Portugal, necessitava totalmente das riquezas do Brasil e não das de Portugal, já que era mais cómodo e seguro estar onde a riqueza económica subsistia[9]. De facto, a economia do Brasil, até meados do século XVIII, era, do ponto de vista industrial, bastante maior que a da Grã-Bretanha. Só a produção e exportação da indústria açucareira ultrapassaram, em largos períodos, o valor de £ 3 milhões anuais, enquanto a exportação britânica não alcançava tal cifra[10]. Posto isto, naturalmente que, no início do século XIX, a política económica portuguesa assentava em grande parte sobre a produção brasileira. Ainda que as rendas provenientes do Brasil tivessem, no orçamento do erário régio, um peso inferior a 25%, a verdade é que as exportações brasileiras para Portugal, de 1796 para 1807, passaram de 28 687 000 para 34 819 000, sendo ainda certo que grande parte dos produtos exportados por Portugal eram provenientes da colónia brasileira[11]. Dados que assumem uma relevância ainda mais acentuada se tivermos em conta o estado dramático da economia portuguesa a partir de meados do século XVIII, em virtude dos efeitos colaterais produzidos pela assinatura do Tratado de Meethuen com a Grã-Bretanha (1703). Desde esse ano que Portugal vinha, efectivamente, abandonando paulatinamente as suas incipientes manufacturas, em favor de um retorno à viticultura e à exportação de vinho e azeite, o que o tornava cada vez mais dependente do mundo exterior, em especial da Grã-Bretanha, seu principal parceiro comercial e fornecedor de produtos manufacturados. É evidente que, com as reformas económicas do Marquês de Pombal e seus sucessores, aproveitando as tendências internacionais – que operavam em favor do comércio – Portugal foi conseguindo expandir o seu comércio. Todavia, sempre com base na promoção dos produtos provenientes das colónias, em especial do Brasil. O algodão brasileiro, por exemplo, tinha uma importância determinante neste contexto. Entre 1781 e 1792, a exportação anual total do algodão brasileiro de Portugal para a Grã-Bretanha subiu de 135 para 3 500 toneladas, enquanto, em igual período, a França importou anualmente cerca de 620 toneladas[12].Assim, de 1796 a 1807 (com excepção dos anos 1797 e 1799), Portugal desfrutou de um saldo positivo na Balança Comercial, sendo que o Brasil, sozinho, era responsável por 83% do valor total de bens importados por Portugal das suas colónias[13].
Torna-se evidente, a partir desta análise, que o vector económico era, à época, um instrumento crucial na sustentação do Império Lusitano. Para D. João VI era certo que não existiria tal império caso o Brasil fosse dos Britânicos ou caso o seu rei fosse feito prisioneiro pelos Franceses ou pelos Espanhóis. Assim, mesmo com Portugal subjugado pelos Franceses, a única forma de conservar a riqueza do império, e simultaneamente empreender a resistência aos Franceses, seria deslocar o centro de gravidade da decisão política do Reino, de Lisboa para o Rio de Janeiro, permitindo a solidificação da monarquia. Ademais, como nota Moniz Bandeira, o diplomata Dom Luís da Cunha considerava, ainda, a hipótese de D. João VI, assumindo-se como imperador do Ocidente, poder expandir o seu império através da conquista do Reino do Peru e de um acordo com a Espanha, mediante a troca do Algarve pelo Chile, até ao Estreito de Magalhães[14].
A extensão e a riqueza do império eram, assim, tidas em consideração como factor decisivo na equação geoestratégica do posicionamento de Portugal no mundo. No entanto, não eram apenas as considerações económicas que imperavam na base deste pensamento geoestratégico. No final do século XVIII, quando Napoleão começou a sua ascensão, invadindo depois Portugal e promovendo o bloqueio à Grã-Bretanha, o nosso país sentiu, uma vez mais, as fragilidades geoestratégicas do seu posicionamento na Europa, surgindo, então, uma vez mais, a defesa da tese da transferência da Corte para o Brasil, o que acabou por ocorrer de facto. O Brasil surgiu, deste modo, como a solução geopolítica por excelência que, para além de apontar para a renovação do império português, punha cobro às pressões diplomáticas e agressões que Portugal vinha, há tanto tempo, sofrendo na Europa.
Surge claro, pois, que a viagem do príncipe regente, da respectiva família e Corte, para o Brasil, não significou a fuga real às responsabilidades nacionais; pelo contrário, representou a materialização de uma visão estratégica que vinha sendo amadurecida há mais de um século, na esperança de se vir a formar, na América do Sul, longe das vulnerabilidades e das ameaças de Portugal, um grande império. Esperança que acabaria por ser catalisada pelas convulsões napoleónicas.
A condição de sede do Reino lisonjeou a colónia, que assim viveu uma metamorfose económica, social, política, administrativa e cultural. Assistiu-se à abertura de portos, à liberação das indústrias e a uma série de outros progressos concretos que levariam o rei D. João VI, sem pressa de regressar a Lisboa uma vez vencido Napoleão e reposta a ordem pelo Congresso de Viena, a alterar o estatuto político da América Portuguesa, criando o Reino do Brasil, unido a Portugal e aos Algarves. Acalentando o plano de fazer do Brasil um vasto império, expandido ao Prata, e confiar Portugal a seu filho primogénito D. Pedro, D. João VI traçava, pela primeira vez, os contornos de um estado brasileiro com territorialidade bem definida[15].
Os movimentos de independência, grandemente impulsionados pela Maçonaria – activa na Europa desde a Renascença e pregando nas Américas a independência –, porém, frustrariam todos os planos neste sentido. Em 1817 assistiu-se à primeira de uma longa série de revoltas que, da Amazónia ao Rio Grande do Sul, ambicionavam a independência, ao mesmo tempo que a Revolução Liberal de 1820, na Metrópole, inaugurava, na colónia brasileira, a profunda crise político-institucional que desembocaria no Grito do Ipiranga[16].
A revolução de 1820, na verdade, expôs a crise do regime, não só em Portugal, onde a regência fora substituída por uma junta provisória, como também no Brasil. E enquanto em Portugal a crise aprofundava-se e as contradições aguçavam-se, nas lutas entre os liberais e os absolutistas chefiados pelo infante D. Miguel, no Brasil, D. Pedro, de influência liberal, suprimia impostos abusivos e proclamava liberdades e garantias. Exigido o seu regresso a Portugal pelas Cortes, em Janeiro de 1822, decidiu, porém, ante petições e pressões várias, permanecer no Brasil, mantendo-se sob a decisiva influência de José Bonifácio de Andrada e Silva, Patriarca da Independência[17].
Logo após a ficada, como então se dizia, tudo conduziu à independência. A tropa portuguesa, amotinada no Rio de Janeiro em apoio às Cortes, foi dominada e o príncipe-regente expulsou e proibiu a chegada de outras, ordenando também que os decretos de Lisboa apenas fossem aplicados com o seu aval. Indicou cônsules brasileiros em Buenos Aires, Londres, Washington e Paris, recebeu o título de Defensor Perpétuo do Brasil e convocou uma Assembleia Constituinte e Legislativa do Brasil, num percurso que conduziria ao Grito do Ipiranga, quando D. Pedro, a 7 de Setembro de 1822, anunciasse a célebre divisa Independência ou Morte, ficando para a História de Portugal como um traidor e, para a do Brasil, como um herói[18].
Iniciar-se-ia o modelo liberal-conservador de organização interna e inserção internacional que, marcado pelos parâmetros da agroexportação, esgotar-se-ia na ampla margem de manobra do Brasil entre a Grande Depressão e o fim da Segunda Guerra Mundial, quando se estruturou o desenvolvimentismo que, se do ponto de vista externo rompeu com o alinhamento automático face aos Estados Unidos, retomando a orientação diplomática do Brão do Rio Branco, internamente assentaria numa busca incessante pelo desenvolvimento económico através do método da substituição de importações. Regendo-se internamente por este nacional desenvolvimentismo populista de esquerda, o Brasil de Vargas actuaria, externamente, de acordo com esse padrão de comportamento, numa postura que atingiria o apogeu na barganha nacionalista às vésperas da Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil desenvolveu o nacional desenvolvimentismo em termos de actuação externa. Neste período, o Brasil vendeu a preço elevado a sua adesão a um conflito que não lhe interessava. O Brasil jogava com o Eixo e com os Aliados, negociando e apoiando aquele que, no momento, mais vantagens económicas lhe oferecesse, sem pejo em voltar-se de um para outro consoante essas vantagens. O Brasil e a América do Sul ganhavam rapidamente um poder de negociação como nunca haviam tido, sem que os EUA se apercebessem dessa relevância no contexto declarado de beligerância.
Apenas com as vitórias de Rommel no Norte d`África é que os Estados Unidos se aperceberam da importância da região, começando Roosevelt a temer uma invasão alemã às Américas, a partir do Nordeste brasileiro. Roosevelt oferece a Vargas, neste contexto, no célebre encontro de 1942, o financiamento integral da Siderurgia de Volta Redonda, nos arredores do Rio de Janeiro, como forma de comprar a adesão brasileira aos Aliados. Conseguiu e, Volta Redonda, a maior siderurgia da América Latina, seria construída em tempo recorde, começando a funcionar logo em 1946.
Todavia, o propósito de Getúlio teve uma duração limitada. Ele actuava ainda num momento dominado pelas velhas estruturas regionais de poder e, quando as contradições internas da sociedade brasileira se avolumaram, ele caiu e, junto, o seu nacional desenvolvimentismo. Em 1946, a reacção conservadora a Vargas colocou no poder Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), por forma a terminar com o varguismo incómodo ao status quo da ordem interna brasileira e da ordem externa hemisférica.
O desenvolvimento económico do Brasil – que já havia estado presente na equidistância pragmática de 1935 a 1942 e no alinhamento do Brasil aos EUA em 1942, quando o país lucrou em reequipamento económico e militar – não deixou de dominar a política brasileira. Muito pelo contrário: o alinhamento incondicional de Dutra aos EUA visava, precisamente, uma relação especial com a superpotência ocidental, que deveria implicar um tratamento especial face às reivindicações brasileiras de auxílio económico para o desenvolvimento económico interno.
O método do alinhamento a Washington para o alcance desse fim não foi, todavia, o mais acertado perante as dinâmicas do Brasil de então e, nesse contexto, germinariam as sementes desenvolvimentistas de Vargas. Ou seja, o nacional desenvolvimentismo de Vargas, conquanto não tenha vingado na sua época, viria a ter muito mais importância no futuro do que se poderia supor, pois funcionaria como as raízes profundas das características sócio-político-económicas internas e de autonomia que a política externa brasileira voltaria a ter, assim que Dutra saísse do poder.
De facto, em 1951, houve uma reacção ao conservadorismo de Dutra, que levou Vargas novamente ao poder (1951-1954), com uma nova aplicação, interna e externa, do nacional desenvolvimentismo populista de esquerda de outros tempos. O desenvolvimento económico do país continuava a ser a prioridade, mas desta vez Vargas teria de adaptar-se à era bipolar.
O contexto interno e externo que Vargas encontrou era bastante distinto do que o que existira entre 1930 e 1945.
Internamente, o incremento da industrialização e da consequente urbanização levaram à afirmação da burguesia e de uma classe operária nascente que, porém, impunha novas exigências ao poder político. O sistema político era obrigado a dar resposta à crescente participação popular, o que levou Vargas a retomar o desenvolvimentismo todavia abrindo a economia brasileira ao exterior, em busca de capitais, tecnologia e cooperação económica.
Externamente, e uma vez que Getúlio precisava desses capitais e, por conseguinte, da cooperação norte-americana, no contexto de Guerra Fria, em que os EUA, mais preocupados com a Europa, desligavam-se da América Latina, que sabiam de antemão estar do seu lado, a margem de manobra do Brasil foi drasticamente reduzida. Situação que se acentuou quando, em 1953, o republicano Eisenhower se tornou presidente dos Estados Unidos. Estando a Europa e o Japão ainda em processo de reconstrução e o Terceiro Mundo ainda muito embrionário, restava ao Brasil apenas a cooperação de origem norte-americana, à qual não tinham como fugir.
Esta contradição externa somava-se aos distúrbios pelos quais passava a sociedade brasileira, a braços com uma crescente polarização entre direita e esquerda, ao mesmo tempo que o desenvolvimentismo de Vargas era cada vez menos apoiado e gerava sucessivamente mais críticas. Esta situação conduziu Vargas ao suicídio – para não ter de renunciar – o que provocou uma imensa comoção nacional.
Em seu lugar, a reacção conservadora fez ascender ao poder uma figura manejável pelos EUA, Café Filho (1954-1955), visando pôr ordem ao caos populista esquerdizante do Brasil. Novamente, interna e externamente, o Brasil voltou a alinhar-se com a potência norte-americana, promovendo uma total abertura económica ao capitalismo, assim como a afirmação das teses da Escola Superior de Guerra (ESG). A política externa brasileira vivia o primeiro hiato da linha de autonomia e independência na inserção internacional do país que tem vingado até hoje.
Figura apagada da História do Brasil, que permaneceria na Presidência nem um ano completo, Café Filho – dos períodos do país menos estudados – depressa motivaria uma forte reacção ao conservadorismo que tentou imprimir às dinâmicas do Brasil, com a eleição de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-1961). O desenvolvimentismo ganhava novamente força, especialmente consubstanciado no Plano de Metas dos 50 anos em 5. Necessitando de capitais externos para levar adiante esse plano, em função da escassez de reservas do Brasil, Jk teria de associar esse desenvolvimentismo à entrada desses capitais estrangeiros no país, o que, se criou um desfasamento entre a política e a economia, depressa deu origem a uma síntese entre o desenvolvimentismo e a necessidade de capitais estrangeiros – leia-se norte-americanos – na formulação do que seria o desenvolvimentismo associado (associado aos capitais externos).
Jânio Quadros e João Goulart prosseguiriam na via desenvolvimentista, mais autónoma que a da era JK, levando-a aos extremos com a radicalização expressa na Política Externa Independente.
Com estas características, o paradigma desenvolvimentista, que havia substituído o modelo liberal-conservador de inserção internacional, predominante do final do século XIX até meados de 1930, produziu o que podemos denominar de hiperpolitização das sociedades latino-americanas, designadamente a argentina, a brasileira, a chilena e a mexicana. Afinal de contas, o Estado era o centro das decisões sobre as principais questões económicas e políticas da sociedade; tendo sido justamente sob essa matriz que as sociedades latino-americanas incorporaram politicamente, a partir da década de 1930, as classes médias e populares urbanas[19].
A ordem internacional então vigente permitiu a estruturação desse paradigma desenvolvimentista, já que tolerou que as principais sociedades latino-americanas gozassem de autonomia para gerir e organizar os respectivos subsistemas capitalistas nacionais (ainda que dependentes do centro) e para construir formas próprias de domínio político[20].
Sob tal lógica internacional, acrescentada da regulação e directa actuação do Estado, a Argentina logrou alcançar taxas razoáveis de crescimento económico, chegando o Brasil e o México a obter taxas consideradas muito boas.
O desenvolvimentismo, assente numa lógica de acentuado pragmatismo, foi a marca característica de todo o regime militar brasileiro. Na realidade, desde a implantação do regime militar no Brasil, em 1964 (e, mais especificamente, desde o segundo governo militar, com Costa e Silva no poder a partir de 1967) que a política externa brasileira foi fortemente guiada pelo desenvolvimentismo e pelo pragmatismo, assim se mantendo até que a crise da dívida viesse alterar os pressupostos sobre os quais assentava o paradigma desenvolvimentista, provocando, a partir daí, mutações consideráveis no ordenamento brasileiro, quer interno, quer externo, designadamente o fim do regime militar em 1985.
De facto, a subida ao poder, nos EUA, de Ronald Reagan (1980-1988) viria bloquear a trajectória precedente. Convencido da necessidade de recuperar a hegemonia norte-americana, Reagan colocaria um ponto final no diálogo Norte-Sul e na proposta da Nova Ordem Económica Internacional.
Os vectores de estrangulamento histórico do desenvolvimento nacional brasileiro tornar-se-iam, a partir daqui, perfeitamente evidentes: a dependência energética do exterior, especialmente no referente ao petróleo bruto, e os serviços da dívida externa[21], crescentemente preocupantes e impeditivos da aplicação de recursos em investimentos produtivos[22].
O modelo vinculado ao desenvolvimentismo evoluía, assim, para uma fase de crise e de contradições, passando o Brasil a sofrer os efeitos perversos do sistema internacional, no qual passava a ser sujeito passivo, não obstante o influxo positivo do Itamaraty relativamente às políticas e possibilidades do comércio externo[23].
Deste modo, o período da crise da dívida assiste à redução do espaço de actuação que o sistema de poder internacional deixava aos Estados nacionais. Desde logo, tornava-se mais evidente a globalização financeira, que minava notoriamente a ordem económica do pós-guerra. Por outro lado, a ideologia institucional-neoliberal, que desde o final da década de 1970, se convertera em matriz dos governos britânico e norte-americano, expandia-se aos organismos financeiros multilaterais do Ocidente, que passavam a exigir, dos governos que necessitavam do seu auxílio, a adopção de políticas monetárias e fiscais ortodoxas, concordantes com o figurino neoliberal[24].
A situação internacional passava, assim, a deixar um espaço de actuação reduzido às elites governamentais dos países periféricos da América Latina para reconstruírem a ordem interna nos moldes o anterior desenvolvimentismo. Por conseguinte, as sociedades latino-americanas começaram a transformar-se, fosse por processos de democratização, fosse através da liberalização económica, fosse por meio de ambos.
No Brasil, a democratização ocorreu antes da liberalização económica. O regime autoritário não resistiu à alteração da ordem internacional, ao mesmo tempo que, face às dificuldades internas, a democracia parecia o melhor meio para enfrentá-las, porque supunha uma maior capacidade para manejar os instrumentos da gestão económica sem romper com o intervencionismo estatal do passado. Por isso, o novo regime democrático brasileiro optou pela manutenção da anterior articulação entre o Estado e a economia, em meio à falta de recursos externos e às pressões internacionais contrárias[25].
No fim da década de 1980 e início da seguinte, o fracasso desse modelo tornou-se evidente, generalizando-se a crença de que era absolutamente necessário que a sociedade brasileira se ajustasse às exigências da globalização, e do próprio Institucionalismo-Neoliberal, no sentido de liberalizar a economia. Foi assim que, a partir de Fernando Collor de Melo (1990-1992), a intelectualidade governamental brasileira deixou-se dominar pelos postulados do Washington Consensus. Encerrando o ciclo desenvolvimentista em 1989, as novas orientações, moldando o Estado Normal[26], apareciam, todavia, confusas e contraditórias, ainda que plenamente dominadas pelos interesses económicos.
Na verdade, diante do novo cenário internacional, a política externa brasileira parecia perdida, incapaz de manter a racionalidade e a continuidade que, durante 60 anos, lhe havia impresso, na busca incessante pelo desenvolvimento nacional. O Itamaraty não reagiu com facilidade ao novo contexto internacional. O processo de impeachment de Collor de Mello, em 1992, e o hiato do governo de Itamar Franco até 1994 contribuiram para a indefinição.
Apenas a partir de 1995, com Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e a continuidade da gestão do ministro dos Negócios Estrangeiros Luiz Felipe Lampreia (1995-2000) o Brasil pareceu capaz de reagir, ainda que sob os postulados neoliberais vindos de Washington. Reagindo aos novos condicionalismos externos, essa reacção não era, contudo, coerente e firme; antes fazia crer que a responsável pela crise do endividamento era a estratégia tradicional da racionalidade desenvolvimentista e, por isso, esta deixava de ser o centro nevrálgico da política do governo, de ora em diante marcada pelas directrizes de Washington, ao mesmo tempo que a liberalização económica iniciada por Collor dava mostras de insustentabilidade.
Na realidade, o Brasil encontrava, nos fluxos de capitais, nova fonte de dependência, enquanto revigorava o multilateralismo, com base no entendimento com a Argentina em torno da resolução do contencioso das águas, que daria origem à assinatura, em Março de 1991, do Tratado de Assunção, criando o Mercosul, juntamente com o Uruguai e o Paraguai.
Dando prosseguimento à política económica de Fernando Henrique, o governo Lula não só não rompeu com a orientação liberal do segundo mandato de Cardoso, como inclusive, a aprofundou. O primeiro governo Lula (2003-2006) exerceu um ajuste fiscal ainda mais forte que o realizado sob a era Cardoso, aplicando uma política monetária ainda mais rígida e retomou o programa de reformas (tributária, da Segurança Social, de autonomia do Banco Central, laboral, entre outras) de carácter amplamente liberal, que a Administração Fernando Henrique tinha suspenso por falta de condições políticas para levar a efeito[27]. Lula lançou assim, no início do segundo mandato, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), no qual a política liberalizante surge evidente. Mas nele nota-se, também, como já se tornara claro no primeiro mandato, a preocupação social do presidente sindicalista, que à lógica capitalista tem agregado o estado interventor da era desenvolvimentista.
De facto, é necessário atentar sobre algo que parece fundamental. Em toda a manutenção que traduz da política económica, em termos práticos, o PAC reflecte uma mudança da essência dessa mesma política, ao ressuscitar o papel mais activo do Estado na promoção do desenvolvimento, que há muito vinha sendo afastado da lógica económica do Brasil, em outros tempos desenvolvimentista. E, mais importante, a orientação de Lula resultou em ganhos económicos sustentados para o Brasil, que tem revelado capacidade para reduzir e, até, solucionar, a médio prazo, alguns dos mais graves problemas internos. Sendo a décima economia mundial, a economia brasileira prova estar apta a superar situações que, outrora, a afastariam dos seus intentos de transformar a Nação em potência regional.
Neste sentido, existe uma correlação entre o papel desempenhado pelo Brasil na América do Sul e no mundo e a sua própria evolução interna. O Brasil funciona, assim, como âncora da América do Sul, cujo desempenho económico e actuação externa, na base das relações em eixo, o têm levado ao patamar de potência regional prestes a transformar-se em potência mundial.
A sua diplomacia multilateral e pragmática, o incremento da sua capacidade de emprego dos meios de defesa – ainda embrionária – permitem o cálculo positivo dos interesses nacionais. Com o apoio mútuo do seu comércio externo global, o Brasil, líder regional do Mercosul e dos mecanismos de integração política, económica, física e social sul-americanos, tem assumido, no contexto internacional global, o papel de interlocutor dos países emergentes com os países mais avançados, ao contestar a hegemonia norte-americana através da estruturação de alianças com esses emergentes. O G20 permite-lhe influir no comércio mundial; o G4 coloca-o no centro das questões de segurança e defesa; o G3 lança-o na liderança da cooperação Sul-Sul; a UNASUL e o seu Conselho de Defesa (criado em Março de 2009), permitem-lhe liderar os esforços de integração na América do Sul, a partir das relações em eixo com a Argentina.
Por outro lado, a manutenção da integridade territorial – com a sensível questão da Amazónia – o combate às recentes ameaças – como o macroterrorismo, o narcotráfico e o crime organizado – a capacidade de dissuasão e projecção no Atlântico Sul, permitiram ao Brasil de Lula começar a afirmar a sua dimensão estratégica, ao mesmo tempo que os tradicionais problemas políticos, económicos e sociais internos viram, com Lula, um combate mais objectivo e sustentado.
O Brasil, desta forma, a partir da plataforma regional, projecta-se como actor global, como o gigante adormecido que finalmente acorda.
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Wednesday, July 28, 2010
A Crise Colombiano-Venezuelana
O governo da Colômbia disse estar disposto a debater as acusações sobre a suposta presença de guerrilheiros colombianos na Venezuela durante a reunião extraordinária de ministros dos Negócios Estrangeiros da Unasul , marcada para esta quinta-feira, em Quito, no Equador.
Por meio de um comunicado, a Colômbia pediu que o bloco encontre soluções para a questão, que levou a um rompimento das relações diplomáticas entre o país e a Venezuela na semana passada.
No documento, a Colômbia afirma que a solução da actual crise com o país vizinho passa pela criação de um “mecanismo concreto” para solucionar “os temas de fundo”, sem especificar, no entanto, no que ele poderia consistir.
A nova crise entre a Colômbia e a Venezuela atingiu o seu ápice na última Quinta-Feira, quando o governo colombiano apresentou, durante uma reunião da OEA, supostas provas sobre a presença de rebeldes das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e do ELN (Exército de Libertação Nacional) em território venezuelano.
Como resposta, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, anunciou o rompimento das relações diplomáticas entre os dois países e ordenou o fechamento da embaixada da Colômbia em Caracas.
Segundo o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Equador – que ocupa actualmente a Presidência rotativa da Unasul - a Venezuela, a Colômbia, o Paraguai, o Uruguai e o próprio Equador já confirmaram a presença na reunião de Quinta-Feira.
Por meio de um comunicado, a Colômbia pediu que o bloco encontre soluções para a questão, que levou a um rompimento das relações diplomáticas entre o país e a Venezuela na semana passada.
No documento, a Colômbia afirma que a solução da actual crise com o país vizinho passa pela criação de um “mecanismo concreto” para solucionar “os temas de fundo”, sem especificar, no entanto, no que ele poderia consistir.
A nova crise entre a Colômbia e a Venezuela atingiu o seu ápice na última Quinta-Feira, quando o governo colombiano apresentou, durante uma reunião da OEA, supostas provas sobre a presença de rebeldes das Farc (Forças Armadas Revolucionárias da Colômbia) e do ELN (Exército de Libertação Nacional) em território venezuelano.
Como resposta, o presidente da Venezuela, Hugo Chávez, anunciou o rompimento das relações diplomáticas entre os dois países e ordenou o fechamento da embaixada da Colômbia em Caracas.
Segundo o Ministério dos Negócios Estrangeiros do Equador – que ocupa actualmente a Presidência rotativa da Unasul - a Venezuela, a Colômbia, o Paraguai, o Uruguai e o próprio Equador já confirmaram a presença na reunião de Quinta-Feira.
Thursday, June 24, 2010
Brasil é o Tema da 65ª Feira do Livro de Frankfurt
O Brasil está confirmado como país tema da edição de 2013 da Feira do Livro de Frankfurt, o maior evento editorial no mundo. As conversas com o Ministério da Cultura (MinC) vinham ocorrendo desde o ano passado. Anteontem à tarde, em Brasília, o director da Feira de Frankfurt, Jürgen Boos, e o ministro da Cultura, Juca Ferreira, assinaram um protocolo de intenção para firmar a parceria.
É a segunda vez que o País é o homenageado do evento - a primeira foi em 1994. "Queremos mostrar em Frankfurt como é a produção cultural no Brasil hoje, o que acontece não só na literatura, mas também no cinema, no teatro, na música", disse Boos. Ele destaca que o maior benefício para os países homenageados costuma ser um aumento significativo no volume de traduções das suas produções literárias. O director vê com bons olhos a promessa do governo brasileiro de aumentar, ainda este ano, de 20 para 100 as bolsas anuais de fomento à tradução da Fundação Biblioteca Nacional. "A tendência é até 2013 o número de traduções crescer muito mais." A edição deste ano da Feira em causa, a 62ª, que decorrerá de 6 a 10 de Outubro, é a Argentina.
É a segunda vez que o País é o homenageado do evento - a primeira foi em 1994. "Queremos mostrar em Frankfurt como é a produção cultural no Brasil hoje, o que acontece não só na literatura, mas também no cinema, no teatro, na música", disse Boos. Ele destaca que o maior benefício para os países homenageados costuma ser um aumento significativo no volume de traduções das suas produções literárias. O director vê com bons olhos a promessa do governo brasileiro de aumentar, ainda este ano, de 20 para 100 as bolsas anuais de fomento à tradução da Fundação Biblioteca Nacional. "A tendência é até 2013 o número de traduções crescer muito mais." A edição deste ano da Feira em causa, a 62ª, que decorrerá de 6 a 10 de Outubro, é a Argentina.
Monday, June 7, 2010
O Lugar das Cimeiras Ibero-Americanas na Política Externa Portuguesa
AS CIMEIRAS IBERO-AMERICANAS E A POLÍTICA EXTERNA PORTUGUESA
Teve lugar, nos dias 30 de Novembro e 1 de Dezembro de 2009, a XIX Cimeira Ibero-Americana, que reuniu vinte e dois chefes de Estado e de Governo dos países latino-americanos e da Península Ibérica – incluindo, desde 1994, Andorra[2] – no Estoril, sob o tema da Inovação e do Conhecimento, sob presidência portuguesa[3].
No âmbito da actual política externa portuguesa, este acontecimento assume grande relevância. Se desde o início da Expansão Marítima, no século XV, a política externa portuguesa esteve voltada para o Atlântico, com o 25 de Abril de 1974, a Europa assumiu-se como a prioridade dessa política. Hoje, porém, a avaliação do interesse nacional aconselha-nos a olhar novamente para o Atlântico – o que não significa desprezar a Europa. Contexto no qual ganham especial relevo a CPLP e as relações entre Portugal e a América Latina. Esta última no âmbito da Comunidade Ibero-Americana e não apenas no quadro redutor do relacionamento Portugal-Brasil. A importância das cimeiras ibero-americanas para a política externa portuguesa surge, pois, evidente, ainda que o papel do nosso país nessas cimeiras possa, e deva, ser mais potencializado.
De facto, a política externa portuguesa, com a sua continuidade histórico-geográfica e as rupturas resultantes das alterações de regime político, assume um significado e conteúdo próprios.
Tradicionalmente, a política externa portuguesa está voltada para o Atlântico. A Europa é um vector novo dessa política. O que em muito se deve aos condicionalismos histórico-geográficos que sempre condicionaram a actuação de Portugal na cena internacional: o factor castelhano, o factor marítimo e o factor europeu, que sempre condicionaram as opções feitas e determinaram os amigos e inimigos naturais.
Neste sentido, pode dizer-se que a primeira coordenada tradicional da política externa portuguesa sempre foi criar condições que permitissem a Portugal responder e equilibrar o poder crescente de Castela. Sendo que Portugal sempre teve um reduzido espaço vital e que, no século XV, era um Estado paupérrimo, com poucas terras férteis e sem rios navegáveis, a única forma de fazer frente a esses desafios, procurando espaço vital em termos geopolíticos e em termos económicos e tendo em conta a localização geográfica – com uma poderosa Castela que o impedia de voltar-se para Leste – era voltar-se para o Atlântico, lançando-se na Expansão Marítima.
Isto significa que a segunda coordenada da política externa portuguesa, consequência da primeira, corresponde, justamente, a este factor marítimo.
Em ligação a esta, como causa e consequência da mesma, surge a terceira grande coordenada da política externa de Portugal: a aliança com a Grã-Bretanha.
De facto, no final do século XVI, portugal estabeleceu um Tratado de Aliança com a Grã-Bretanha, resultado de uma convergência de interesses muito específica entre os dois Estados: a existência de um inimigo comum, Castela. Tanto Portugal, como a Grã-Bretanha tinham o objectivo de evitar que a Espanha dominasse a Península Ibérica. Portugal porque desejava manter a sua independência; a Grã-Bretanha porque deseja impedir a formação, na região, de um forte poder continental consubstanciado se houvesse um único Estado na Península Ibérica. De facto, um aspecto importante e constante da política externa britânica é ter sempre lutado contra qualquer tentativa de hegemonia na Europa continental, isto é, contra a formação de um grande poder continental que viesse contrabalançar o seu poder marítimo. Assim, a Grã-Bretanha lutou contra a Espanha no século XVI, a França de Luís XIV nos finais do século XVII e início do século seguinte, a França napoleónica do princípio do século XIX, a Alemanha do Kaiser e a Alemanha de Hitler. A política externa britânica vai sempre, por tradição, no sentido de privilegiar e favorecer os pequenos Estados ribeirinhos da Europa, com quem foi sempre celebrando alianças. Deste vector resultou o estabelecimento da aliança com Portugal. Embora os dois Estados fossem competidores em termos ultramarinos, eram contrários ao estabelecimento de grandes poderes continentais na Europa, especificamente Castela na Península Ibérica e, como Estados ligados ao comércio ultramarino, sempre privilegiaram a relação atlântica, em detrimento da opção europeia. Além do mais, Portugal sempre teve consciência de que não poderia manter o seu império colonial sem o apoio/aliança da Grã-Bretanha, senhora e dona dos mares. Daí a importância, para a política externa portuguesa, da aliança com os Britânicos.
Tudo isto significa que, sendo europeu, Portugal é também um país atlântico. Sendo pequeno, estando na periferia da Europa e, sobretudo, fazendo fronteira com apenas um país (Espanha), a formulação da política externa portuguesa sempre esteve balizada e condicionada por estes factores. E, de facto, a política externa portuguesa sempre reflectiu – e reflecte – a posição geopolítica do país: a escolha entre a opção europeia (continental) e a opção atlântica (marítima).
Isto originou variáveis permanentes nas opções da nossa política externa e nas características históricas da mesma.
Segundo Nuno Severiano Teixeira[4], essas constantes histórico-geográficas tornaram-se fundamentais e têm definido a orientação internacional de Portugal, podendo identificar-se quatro fases distintas no modo português de inserção internacional.
Assim, até ao século XIV, a política externa portuguesa[5] foi determinada pelo contexto da Península Ibérica. Uma Península Ibérica composta por cinco unidades políticas de tamanho e poder semelhantes: Castela, leão, Navarra, Aragão e Portugal.
A luta interna contra os Mouros, as limitações científicas e tecnológicas e a falta de recursos determinaram uma incapacidade estrutural de estabelecimento de relações com poderes fora da Península Ibérica[6]. Assim, no período medieval, as relações externas de Portugal desenvolveram-se no contexto ibérico num ambiente internacional de (quase) equilíbrio.
No século XV, a situação alterou-se totalmente em função do surgimento de novas condições geopolíticas e movimentos históricos que durariam até 1974. Assim, com a derrota dos Mouros e a unificação da Espanha com os Reis Católicos, a Península Ibérica transformou-se em um espaço com dois poderes de diferentes dimensões. Por outro lado, os avanços científicos e tecnológicos tornavam possível o estabelecimento de relações com poderes fora da Península Ibérica. A
situação de desequilíbrio interno na Península e este desenvolvimento tecnológico levaram Portugal, um lugar muito pobre, a procurar compensações fora da Península Ibérica. A solução encontrada foi o Atlântico.
A partir deste momento, Portugal procurou sempre equilibrar as pressões da potência continental espanhola, assumindo-se como potência marítima.
Após o fim do Império Colonial, a política externa do nosso Estado voltar-se-ia prioritariamente para a Europa, como permanece ainda hoje.
Foram destas permanências histórico-geográficas que emergiram as estratégias da política externa portuguesa. Na verdade, tudo pode ser resumido à solução sistemática do dilema com que Portugal se deparava: elaborar uma estratégia de afastamento da Europa, a partir da ameaça espenhola apercebida como tal; deixar a política externa dominar-se cada vez mais pela opção atlântica. Dilema que conduziu à emergência de duas tendências de lingo prazo da política externa portuguesa: a busca por uma relação privilegiada com o poder marítimo (primeiro a Grã-Bretanha e, depois da Segunda Guerra Mundial, os EUA e a Aliança Atlântica) e a busca pelo projecto colonial (através dos três impérios portugueses: Índia, Brasil e depois África).
Tomando como um todo, estes factores conduziram a política externa portuguesa a estabelecer relações e alianças extra-peninsulares, ainda que tendo a Espanha em conta. Num primeiro momento, estabeleceu-se o laço Lisboa-Madrid-Londres e, depois da Segunda Guerra Mundial, o eixo Lisboa-Madrid-Washington.
Ainda que Portugal não tenha ambições de tornar-se uma grande potência, a projecção de poder faz parte dos interesses nacionais, como acontece com qualquer Estado. A ideia de que um país pequeno e periférico não pode, no mundo contemporâneo, ser um país desenvolvido, não colhe. Assim, não é certo que Portugal, um país europeu, minúsculo e periférico tenha de ser um país insignificante. Mas a sua actuação no seio da UE não lhe permite, nem lhe permitirá, assumir-se como potência média, já que, na UE, Portugal é, em termos relativos, um Estado insignificante. O que Portugal tem de fazer é redimensionar o interesse nacional, tendo uma ideia própria sobre a ordem internacional e sobre o seu papel nas áreas onde se joga esse interesse nacional.
Como sabemos do senso-comum, os períodos de crise são os mais propícios para se reflectir sobre o futuro. Nesta conjuntura de crise económica e face aos desafios que se têm colocado ao país em função das profundas alterações operadas no seio da UE, talvez fosse benéfico para o nosso país regressar ao mar, no projecto novo para um Portugal Lusófono, que vai desde a participação na Aliança Atlântica ao relacionamento mais estreito com o Brasil, a África, sem esquecer a necessidade de cuidar das comunidades portuguesas espraiadas de Joanesburgo a Buenos Aires – o que aponta para a necessidade de um relacionamento próximo também com a América Latina.
É que Portugal, se por um lado é um Estado pequeno – território, população, recursos, capacidade militar – por outro tem potencial de potência média, em virtude dos laços culturais espalhados pelo mundo, com um Língua que é falada por milhares de pessoas, com uma tradição histórica das mais ricas, com uma cultura que está a par das mais antigas da Europa.
Desta forma, em termos internacionais, o futuro de Portugal joga-se em vários tabuleiros – no do Estado e da sociedade, no da Justiça, no da educação ou da produtividade. Portugal joga, ainda, nas questões da agenda global no plano económico e social e no plano político e de segurança. Tem, também, diversos desafios aos quais fazer frente. Em primeiro lugar, o desafio da União Europeia, do sucesso do projecto europeu e da centralidade do nosso país nesse projecto. O segundo desafio de interesse estratégico é a superação da crise transatlântica – aberta pela invasão norte-americana do Iraque – e a manutenção do vínculo transatlântico. O terceiro desafio diz respeito às relações de Portugal com a Espanha. Finalmente, o desafio pós-colonial, sendo, bilateralmente, do interesse nacional o reforço das relações com os países de expressão portuguesa e, multilateralmente, fazer da CPLP um instrumento diplomático credível e operacional para os seus Estados-membros.
Os relacionamentos de Portugal com as ex-colónias africanas, com o Brasil e, de modo mais abrangente, com a América Latina, assumem, neste contexto, grande importância, estando hoje a despertar o interesse das comunidades política e académica nacionais e, até, embora em menor grau, da sociedade civil portuguesa. Daí a pertinência do estudo das cimeiras ibero-americanas no quadro da política externa portuguesa. Estas cimeiras foram instituídas em 1991, em reunião em Guadalajara (México). A ideia de criar a Ibero-América nasceu de uma iniciativa da Espanha e do México, a que logo se associou Portugal, com vista a criar um fórum de consulta e de concertação política que reflectisse sobre os desafios da região e impulsionasse a cooperação, a coordenação e a solidariedade regionais promovendo o desenvolvimento dos países ibero-americanos. É evidente que, na actual sociedade internacional global, voltada prioritariamente para a luta contra o macroterrorismo, para as relações transatlânticas, bem como para as questões europeias, a América Latina acaba por assumir uma posição pouco relevante, apenas mediatizada por altura destas reuniões anuais, quando os vinte e dois chefes de Estado e de Governo da América Latina e da Península Ibérica se encontram[7].
Porém, estas cimeiras assumem um carácter de muito maior importância. A Declaração Final da VI Cimeira, realizada em 1996, no Chile[8], chegou mesmo a propor a criação de uma Comunidade Latino-Americana de Nações vinculada à Comunidade Ibero-Americana[9].
Ademais, as cimeiras resultam de um ano de intensos trabalhos, com reuniões mensais entre ministros e técnicos de todos os Estados participantes.No sentido de preparar estas cimeiras anuais foi criada, em 2003, a Secretaria Geral Ibero-Americana (Segib), sediada em Madrid e actualmente presidida pelo uruguaio Enrique Iglesias, Secretário-Geral Ibero-Americano[10].
Centralizando todos os trabalhos anuais que desembocam depois nas cimeiras, a Segib tem, porém, uma estrutura insuficiente, com pouco mais de quarenta funcionários, o que a leva a apoiar-se mais na sociedade civil do que propriamente no exercício estritamente governamental[11].
Numa tentativa de descentralização, a Segib deverá em breve abrir quatro ou cinco delegações na América Latina, enquanto a Espanha fala mesmo na extensão da Ibero-América aos países africanos que falam Português e a vizinhos como o Haiti e o Belize, que aderiram como observadores ou convidados – sendo as Filipinas, a Guiné Equatorial, Moçambique, o Belize e Timor-Leste candidatos à adesão – embora não haja consenso sobre a extensão da Ibero-América. O coordenador português para as relações ibero-americanas, Embaixador João Diogo Nunes Barata, por exemplo, considera a ideia prematura. Em primeiro lugar, porque a Ibero-América é uma comunidade ainda não consolidada e sem visibilidade; depois, porque alargando-a a países extra-região, deixaria de fazer sentido falar-se em espaço ibero-americano[12]. Apesar de a região latino-americana estar a viver um período de crescimento económico sem precedentes, com uma taxa de crescimento que rondou os 3,5% em 2009, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o desenvolvimento económico não tem ocorrido. A vida da população não reflecte esse crescimento económico, a taxa de pobreza mantém-se elevada, a riqueza continua mal distribuída, as classes médias emergentes trazem diversas implicações sócio-político-económicas ainda não totalmente absorvidas e o sistema educacional não permite o salto para o desenvolvimento[13].
Na realidade, os problemas são muitos e urgentes e, por vezes, a retórica prevalece sobre as reais possibilidades de concretização de uma verdadeira Comunidade Ibero-Americana de Nações. Projecto ambicioso que poderá, todavia, beneficiar do discurso integracionista que, de um modo geral, os líderes latino-americanos apresentam.
O grande desafio é, sem dúvida, contrariar a imensa desigualdade sócio-económica que caracteriza toda a Ibero-América, tornando por vezes difícil, mesmo, que se fale em união ibero-americana. Se, por um lado, o que existe de comum entre os países latino-americanos não é suficiente para que se projecte uma integração regional; por outro as diferenças entre esses países e Portugal e Espanha são gritantes. É evidente que existe uma cultura ibero-americana; todavia, tudo o resto diverge, sendo muito difícil, como se pretende com as cimeiras ibero-americanas, que o espaço ibero-americano se ponha de acordo nas instâncias internacionais e regionais. Parece necessário, antes de mais, e para que esse consenso seja possível, que cada país, internamente, crie as condições próprias para o seu crescimento e desenvolvimento económicos, reduzindo a pobreza e a desigualdade. O que, de um ponto de vista pragmático, depende de políticas internas e não de políticas ibero-americanas. São necessárias reformas estruturais, na fiscalidade, na competitividade, na produtividade, no sistema político, no sistema educacional. Mas as cimeiras ibero-americanas, inaugurando uma forma de fazer política mais dirigida aos cidadãos, poderão vir a ajudar nessas reformas. Portugal tem proposto que as próximas cimeiras se dediquem a temas mais precisos e perceptíveis para as populações, menos genéricos e que, de facto, se traduzam em declarações finais inteligíveis e sintéticas.
Os temas sociais, por exemplo, o calcanhar de Aquiles da América Latina, aqueles que abrem espaço ao populismo e à demagogia, são de grande relevância, tendo a XVII Cimeira Ibero-Americana, em 2007, em Santiago do Chile, sido dedicada a este tema.
Nela, a Espanha propôs a introdução do coneceito de fundos de coesão que, na Europa Comunitária, foram importantes para que os países menos desenvolvidos pudessem acompanhar os mais ricos. Os fundos de coesão, adoptados de modo coerente com a realidade ibero-americana, poderão vir a permitir assegurar a igualdade entre as populações e as regiões dos países latino-americanos, por forma a erradicar o crescente apartheid social do continente, segundo aponta o académico espanhol Celestino del Arenal. Existindo um consenso ibero-americano sobre a conveniência do instrumento, a Cimeira de Santiago do Chile conseguiu, para já, aprovar um conceito de fundos de coesão adaptado à realidade regional, abrindo caminho para que, depois, se discutam as vias possíveis para os modelos, financiamento e gestão desses fundos.
De facto, se os objectivos da União Ibero-Americana, aquando da sua criação, eram o desenvolvimento económico e a consolidação da democracia, agora é a coesão social que surge como o grande desafio da região. E melhorar a coesão social passa por encontrar novos modelos e paradigmas de desenvolvimento, analisar as idiossincracias nacionais e adoptar melhores práticas e políticas públicas.
Em todo o caso, neste processo de cooperação ibero-americana avulta sem dúvida o papel central desempenhado pela Espanha, que tem tomado, em grande medida, a dianteira do processo, com uma atitude mais activa que a que Portugal tem demonstrado. Situação que, na realidade, sucede nas próprias Cimeiras Ibero-Americanas e respectiva organização. A realidade, de facto, é que cerca de 60% do orçamento da Secretaria das Cimeiras é suportado por Espanha, o que a transforma, em certo sentido, numa espécie de ferramenta da política externa espanhola para a América Latina, onde Portugal perde espaço constantemente, apesar de constituir o terceiro contribuinte líquido da Segib, precedido apenas pelo México[14].
É evidente que a espanholização do espaço ibero-americano – expressão que Madrid recusa, todavia – ocorre perante o facto consumado de Portugal privilegiar a relação com o Brasil; o que não deveria ocorrer, porque a Ibero-América se afirma como a única arena de diálogo entre Portugal e os países latino-americanos que não o Brasil, tendo a seu favor o facto de, junto de muitos desses países, gozar de um estatuto de neutralidade de que Madrid não se pode gabar[15].
A verdade é que esta situação remonta ao próprio relacionamento que as nações ibéricas construíram, de início, com as Comunidades Europeias, especialmente aquando da adesão de ambas, em 1986[16]. É um facto que a adesão das nações ibéricas às Comunidades gerou expectativas múltiplas quanto ao estreitamento das relações entre a América Latina e a Europa e à intensificação do diálogo político entre ambas as regiões. Neste processo, Portugal teve um papel bastante discreto. As prioridades da sua política externa fora da Europa eram a África de expressão portuguesa e os Estados Unidos e a única prioridade na América Latina era o Brasil, percepcionado como líder natural das nações latino-americanas, com poder suficiente para gerar o diálogo directo com as Comunidades, sem a necessidade de intermediários[17].
A Espanha, por seu lado, tomou de forma organizada e afirmativa a questão das relações com a América Latina. A sua intenção era desenvolver um diálogo político com os países que outrora haviam sido suas colónias e, evidentemente, desempenhar o papel de ligação entre a América Latina e a Europa Comunitária. Vale lembrar que, tradicionalmente, a América Latina constitui uma prioridade da política externa espanhola havendo inclusive, na Constituição de 1978, uma referência à Comunidade Histórica quando se aborda o papel do Rei nas relações internacionais[18].
Evidentemente, a maioria dos Estados-membros das Comunidades opôs-se à ideia de a Espanha adoptar um papel de protagonista neste domínio; ao mesmo tempo que, do lado latino-americano, alguns países consideraram inválida tal atitude paternalista e retórica, exprimindo a não necessidade da Espanha como tutor para a América Latina fazer valer os seus interesses. Assim se desvaneceu a ideia da ligação e o governo do PSOE pôs a Espanha a funcionar como factor activante das relações CEE-América Latina[19].
Terceiro contribuinte do orçamento da Segib, coube a Portugal a tarefa de organizar a cimeira de 2009, sob o tema A Inovação e o Conhecimento. Assim, a 2 de Fevereiro de 2009, realizou-se, no Palácio das Necessidades, a cerimónia de transmissão da Secretaria Pro-Tempore Ibero-Americana de El Salvador (organizador da cimeira de 2008) para Portugal, com a presença dos ministros dos Negócios Estrangeiros de El Salvador e de Portugal, Marisol Argueta e Luís Amado, respectivamente, bem como do vice-ministro dos Estrangeiros da Argentina, Victorio Taccetti – que terá a presidência da cimeira em 2010. Para além, naturalmente, do Secretário-Geral Ibero-Americano, Enrique Iglesias[20].
Na realidade, num momento de crise global como o que hoje se vive, e que seguramente estender-se-á a parte deste ano, a inovação tecnológica e a pesquisa científica desempenham um papel de grande relevância, até mesmo como possibilidade de solução para a referida crise.
O desafio dos países latino-americanos, de Portugal e da Espanha é o de aumentar a respectiva cooperação nesses campos; tarefa para a qual a XIX Cimeira teve um papel importante, através da apresentação de projectos concretos.
Deve salientar-se que a cooperação ibero-americana no âmbito do desenvolvimento e difusão do conhecimento e da tecnologia surge fundamental na transmissão mútua das visões sobre as Relações Internacionais como ramo autónomo do Saber no seio das Ciências Sociais e, aqui, surge particularmente relevante a cooperação que Portugal, a Espanha e a própria União Europeia estabelecem com a América Latina – sendo de esperar que a Presidência Espanhola da Conselho da EU venha dar um grande impulso à constituição do Espaço Ibero-Americano do Ensino Superior – já que existe, efectivamente, uma visão latino-americana das relações internacionais, diferente daquela a que estamos habituamos, que condiciona a criação prática, bem como a análise teórica, desta subregião americana.
Existe, de facto, em fase de grande estruturação nas últimas décadas uma visão latino-americana das relações internacionais, partindo da construção de paradigmas sobre o desenvolvimento, já que a preocupação principal em torno da qual giram as abordagens internacionalistas latino-americanas é o subdesenvolvimento a que as suas sociedades estão sujeitas.
Na realidade, como assinala o Professor Doutor Amado Luiz Cervo, da Escola de Brasília, “…as políticas exteriores dos países do Sul – pelo menos é o caso do Brasil – centralizam suas preocupações em torno dos problemas do desenvolvimento. O mesmo não ocorre com os países avançados do Norte. É possível perceber dois esquemas de relações internacionais contemporâneas. Entre países avançados, as relações igualitárias deixam transparecer um caráter lúdico. Zelar pela paz ou preparar-se para a guerra, compor ou desfazer alianças, construir a potência e o prestígio, difundir ideologias e valores situam-se do lado do divertimento. Entre países desiguais, para aqueles que são atrasados, as relações internacionais deixam transparecer o caráter existencial. Delas dependem, em boa medida, os ritmos de desenvolvimento, as oportunidades de melhoria das condições sociais, o cotidiano. (…) Os nortistas continuam admitindo que as teorias do desenvolvimento, desde Keynes, integram a ciência econômica, não a ciência política. Como se a pobreza, a dominação e a dependência, a cooperação e a exploração não fizessem parte do mundo real das relações internacionais”[21].
De facto, a dimensão essencial das relações internacionais dos países subdesenvolvidos é o desenvolvimento económico. Para além de Cervo, Tomassini[22] e Bernal-Meza[23] são exemplos claros da defesa desta postura, para quem o estudo das relações internacionais dos países subdesenvolvidos deve passar pela análise das estratégias de desenvolvimento e inserção internacional, assim como da política externa, de modo que se estabeleça a relação entre os fundamentos da política, a sua prática específica e o desenvolvimento económico[24]. É neste sentido que o ponto de partida para a criação, desenvolvimento e consolidação de um pensamento especificamente latino-americano de relações internacionais é a crítica à teoria clássica e neoclássica da especialização no comércio internacional (a divisão internacional do trabalho) que sustenta o modelo centro-perferia[25], que constitui a origem do pensamento estruturalista latino-americano, sendo certo que o pensamento latino-americano das relações internacionais ultrapassa as explicações monocausais e tem início quando o fim da Segunda Guerra Mundial converte o objectivo do desenvolvimento em assunto internacional[26].
À parte esta realidade, é bom analisar os resultados alcançados com a Cimeira Ibero-Americana de 2009, depois de as reuniões preliminares desta terem tido por objectivo criar a inovação concorrencial, isto é, uma investigação tecnológica concorrencial.
Não obstante ter alcançado resultados efectivos em matéria de Inovação e Conhecimento, a verdade é que a Presidência portuguesa não conseguiu impor a sua agenda, tendo a XIX Cimeira Ibero-Americana sido dominada pela crise hondurenha, pelas alterações climáticas, pela extradição de Posada Carrilles e pela crise financeira e económica mundial – os temas quentes da agenda latino-americana. Mesmo assim, foi de facto em relação à Inovação e Conhecimento que saíram os principais acordos entre os Vinte e Dois.
Desde logo, foi assinada a Declaração de Lisboa, na qual os países ibero-americanos acordaram incentivar as matérias “mediante a formulação e implementação de políticas públicas de médio e longo prazos, sejam de natureza fiscal, financeira ou de crédito, dirigidas aos agentes da inovação e do conhecimento (empresas, principalmente as pequenas e médias, as universidades, centros de I&D, governos, sectores sociais) e à população em geral, e promovendo a sua interacção, estimulando, consequentemente, a implementação gradual de uma cultura da inovação”[27].
Na verdade, pode bem ser a partir da «Inovação e Conhecimento» que as sociedades ibero-americanas consigam dar um novo impulso à recuperação económica e ao combate ao desemprego, à exclusão social e à pobreza, sendo certo que, para tanto, compete aos governos nacionais a definição de políticas públicas nesse sentido, e não à Comunidade Ibero-Americana.
A XIX Cimeira Ibero-Americana veio, assim, dar um novo impulso para a criação de uma Comunidade Latino-Americana de Nações vinculada à Comunidade Ibero-Americana, no sentido de efectivar a Ibero-América como um fórum de consulta e de concertação política que reflicta sobre os desafios da região e impulsione a cooperação, a coordenação e a solidariedade regionais, promovendo o desenvolvimento dos países ibero-americanos. É necessário capitalizar os esforços das Cimeiras Ibero-Americanas de modo a que os seus resultados se afirmem concretos e capazes de atacar os problemas da região.
[1] Doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Professora Auxiliar no ISCSP/UTL.
[2] Os Estados participantes destas Cimeiras desde 1991 são Argentina, Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Chile, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, República Dominicana, Uruguai, Venezuela, Portugal e Espanha. Andorra aderiu em 1994.
[3] Precisamente no ano, eleito pela União Europeia (EU), Ano da Criatividade e da Inovação.
[4] Cfr. SEVERIANO TEIXEIRA, Nuno; Continuity and Change: The Foreign Policy of Portuguese Democracy, Instituto Português de Relações Internacionais – IPRI, Universidade Nova de Lisboa, Working Paper nº 1, pp. 4.
[5] Utiliza-se aqui a expressão política externa como ferramenta de simplificação, uma vez que a existência de política externa antes do Tratado de Westfália (1648) é muito duvidosa, em função da entidade Estado ter sido reconhecida como tal apenas nesse tratado e a política externa, em si, ser apanágio do Estado.
[6] Cfr. SEVERIANO TEIXEIRA, Nuno; op. Cit., pp. 4.
[7] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; A XVII Cimeira Ibero-Americana e a Coesão Social, in Reflexões Brasilianistas e Sul-Americanistas, http://www.brasil-americadosul.blogspot.com/search?updated-min=2007-01-01TOO%3AOO, consultado a 4 de Novembro de 2009.
[8] Até hoje, realizaram-se dezoito cimeiras, cada qual com a sua presidência, a saber: 1991 – México; 1992 Espanha; 1993 – Brasil; 1994 – Colômbia; 1995 – Argentina; 1996 – Chile; 1997 – Venezuela; 1998 – Portugal; 1999 – Cuba; 2000 – Panamá; 2001 – Peru; 2002 – República Dominicana; 2003 – Bolívia; 2004 – Costa Rica; 2005 – Espanha; 2006 – Uruguai; 2007 – Chile; 2008 – El Salvador. A de 2009 é presidida por Portugal e a de 2010 sê-lo-á pela Argentina.
[9] Cfr. http://www.iberchile.pt consultado a 18 de Novembro de 2009.
[10] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; A XVII Cimeira Ibero-Americana e a Coesão Social, in Rflexões Brasilianistas e Sulamericanistas, in http://www.brasil-americadosul.blogspot.com/search?updated-min=2007-01-01TOO%3AOO consultado a 4 de Novembro de 2009.
[11] Cfr. http://www.segib.org consultado a 13 de Novembro de 2009.
[12] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; A XVII Cimeira Ibero-Americana e a Coesão Social, in Rflexões Brasilianistas e Sulamericanistas, in http://www.brasil-americadosul.blogspot.com/search?updated-min=2007-01-01TOO%3AOO consultado a 4 de Novembro de 2009.
[13] Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
[14] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; A XVII Cimeira Ibero-Americana e a Coesão Social, in Reflexões Brasilianistas e Sulamericanistas, in http://www.brasil-americadosul.blogspot.com/search?updated-min=2007-01-01TOO%3AOO consultado a 4 de Novembro de 2009.
[15] Cfr. Idem, consultado a 4 de Novembro de 2009.
[16] PATRÍCIO, Raquel; As Relações Entre a União Europeia e a América Latina – O Mercosul Neste Enquadramento, in MARTINS, Estevão Chaves de Rezende e SARAIVA, Miriam (orgs.); Brasil-União Europeia-América do Sul: Anos 2010-2010, Fundação Konrad Adenauer, Universidade de Brasília e CNPq, 1ª edição, Rio de Janeiro, 2009, pp. 62 à 75, pp. 67.
[17] Cfr. Idem, ibidem.
[18] Cfr. TOVIAS, Alfred; Foreign Economic Relations of the EC: The Impact f Spain and Portugal, Lynne Rienner Publisher, Boulder & London, Londres, 1990, pp. 60 à 71.
[19] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; op. Cit., pp. 68.
[20] Cfr. http://www.cimeiraiberoamericana.gov.pt consultado a 16 de Novembro de 2009.
[21] Cfr. CERVO, Amado Luiz (org.); O Desafio Internacional – A Política Exterior do Brasil de 1930 a Nossos Dias, Colecção Relações Internacionais, Editora Universidade de Brasília, 1ª edição, Brasília DF, 1994, pp.15.
[22] Vide TOMASSINI, Luciano; Desarrollo Económico e Inerción Externa en América Latina: Um Proyecto Elusivo”, in Estudios Internacionales, Santiago, ano XXV, nº 97, Janeiro-Março de 1992, pp. 73-116.
[23] Vide BERNAL-MEZA, Raúl; América Latina en la Economia Política Mundial, Grupo Editor Latinoamericano, 1ª edição, Buenos Aires, 1994. BERNAL-MEZA, Raúl; Sistema Mundial y MERCOSUR. Globalización, egionalismo Políticas Exteriores Comparadas, Nuevohacer/Grupo Editor Latinoamericano e Universidad Nacional de la Provincia e Bueos Aires, 1ª edição, Buenos Aires, 2000.
[24] Cfr. BERNAL-MEZA, Raúl; América Latina en el Mundo – El pensamiento Latinoamericano y la Teoría de Relaciones Internacionales, Nuevohacer/Grupo Editor Latinoamericano, 1ª edição, Buenos Aires, 2005, pp. 66.
[25] Modelo que divide os Estados da sociedade internacional em dois grupos opostos: os desenvolvidos, do centro, e os subdesenvolvidos, da periferia.
[26] Cfr. BERNAL-MEZA, Raúl; op.cit., pp.67.
[27] Cfr. Declaração de Lisboa, XIX Cimeira Ibero-Americana, Lisboa, 1 de Dezembro de 2009.
Teve lugar, nos dias 30 de Novembro e 1 de Dezembro de 2009, a XIX Cimeira Ibero-Americana, que reuniu vinte e dois chefes de Estado e de Governo dos países latino-americanos e da Península Ibérica – incluindo, desde 1994, Andorra[2] – no Estoril, sob o tema da Inovação e do Conhecimento, sob presidência portuguesa[3].
No âmbito da actual política externa portuguesa, este acontecimento assume grande relevância. Se desde o início da Expansão Marítima, no século XV, a política externa portuguesa esteve voltada para o Atlântico, com o 25 de Abril de 1974, a Europa assumiu-se como a prioridade dessa política. Hoje, porém, a avaliação do interesse nacional aconselha-nos a olhar novamente para o Atlântico – o que não significa desprezar a Europa. Contexto no qual ganham especial relevo a CPLP e as relações entre Portugal e a América Latina. Esta última no âmbito da Comunidade Ibero-Americana e não apenas no quadro redutor do relacionamento Portugal-Brasil. A importância das cimeiras ibero-americanas para a política externa portuguesa surge, pois, evidente, ainda que o papel do nosso país nessas cimeiras possa, e deva, ser mais potencializado.
De facto, a política externa portuguesa, com a sua continuidade histórico-geográfica e as rupturas resultantes das alterações de regime político, assume um significado e conteúdo próprios.
Tradicionalmente, a política externa portuguesa está voltada para o Atlântico. A Europa é um vector novo dessa política. O que em muito se deve aos condicionalismos histórico-geográficos que sempre condicionaram a actuação de Portugal na cena internacional: o factor castelhano, o factor marítimo e o factor europeu, que sempre condicionaram as opções feitas e determinaram os amigos e inimigos naturais.
Neste sentido, pode dizer-se que a primeira coordenada tradicional da política externa portuguesa sempre foi criar condições que permitissem a Portugal responder e equilibrar o poder crescente de Castela. Sendo que Portugal sempre teve um reduzido espaço vital e que, no século XV, era um Estado paupérrimo, com poucas terras férteis e sem rios navegáveis, a única forma de fazer frente a esses desafios, procurando espaço vital em termos geopolíticos e em termos económicos e tendo em conta a localização geográfica – com uma poderosa Castela que o impedia de voltar-se para Leste – era voltar-se para o Atlântico, lançando-se na Expansão Marítima.
Isto significa que a segunda coordenada da política externa portuguesa, consequência da primeira, corresponde, justamente, a este factor marítimo.
Em ligação a esta, como causa e consequência da mesma, surge a terceira grande coordenada da política externa de Portugal: a aliança com a Grã-Bretanha.
De facto, no final do século XVI, portugal estabeleceu um Tratado de Aliança com a Grã-Bretanha, resultado de uma convergência de interesses muito específica entre os dois Estados: a existência de um inimigo comum, Castela. Tanto Portugal, como a Grã-Bretanha tinham o objectivo de evitar que a Espanha dominasse a Península Ibérica. Portugal porque desejava manter a sua independência; a Grã-Bretanha porque deseja impedir a formação, na região, de um forte poder continental consubstanciado se houvesse um único Estado na Península Ibérica. De facto, um aspecto importante e constante da política externa britânica é ter sempre lutado contra qualquer tentativa de hegemonia na Europa continental, isto é, contra a formação de um grande poder continental que viesse contrabalançar o seu poder marítimo. Assim, a Grã-Bretanha lutou contra a Espanha no século XVI, a França de Luís XIV nos finais do século XVII e início do século seguinte, a França napoleónica do princípio do século XIX, a Alemanha do Kaiser e a Alemanha de Hitler. A política externa britânica vai sempre, por tradição, no sentido de privilegiar e favorecer os pequenos Estados ribeirinhos da Europa, com quem foi sempre celebrando alianças. Deste vector resultou o estabelecimento da aliança com Portugal. Embora os dois Estados fossem competidores em termos ultramarinos, eram contrários ao estabelecimento de grandes poderes continentais na Europa, especificamente Castela na Península Ibérica e, como Estados ligados ao comércio ultramarino, sempre privilegiaram a relação atlântica, em detrimento da opção europeia. Além do mais, Portugal sempre teve consciência de que não poderia manter o seu império colonial sem o apoio/aliança da Grã-Bretanha, senhora e dona dos mares. Daí a importância, para a política externa portuguesa, da aliança com os Britânicos.
Tudo isto significa que, sendo europeu, Portugal é também um país atlântico. Sendo pequeno, estando na periferia da Europa e, sobretudo, fazendo fronteira com apenas um país (Espanha), a formulação da política externa portuguesa sempre esteve balizada e condicionada por estes factores. E, de facto, a política externa portuguesa sempre reflectiu – e reflecte – a posição geopolítica do país: a escolha entre a opção europeia (continental) e a opção atlântica (marítima).
Isto originou variáveis permanentes nas opções da nossa política externa e nas características históricas da mesma.
Segundo Nuno Severiano Teixeira[4], essas constantes histórico-geográficas tornaram-se fundamentais e têm definido a orientação internacional de Portugal, podendo identificar-se quatro fases distintas no modo português de inserção internacional.
Assim, até ao século XIV, a política externa portuguesa[5] foi determinada pelo contexto da Península Ibérica. Uma Península Ibérica composta por cinco unidades políticas de tamanho e poder semelhantes: Castela, leão, Navarra, Aragão e Portugal.
A luta interna contra os Mouros, as limitações científicas e tecnológicas e a falta de recursos determinaram uma incapacidade estrutural de estabelecimento de relações com poderes fora da Península Ibérica[6]. Assim, no período medieval, as relações externas de Portugal desenvolveram-se no contexto ibérico num ambiente internacional de (quase) equilíbrio.
No século XV, a situação alterou-se totalmente em função do surgimento de novas condições geopolíticas e movimentos históricos que durariam até 1974. Assim, com a derrota dos Mouros e a unificação da Espanha com os Reis Católicos, a Península Ibérica transformou-se em um espaço com dois poderes de diferentes dimensões. Por outro lado, os avanços científicos e tecnológicos tornavam possível o estabelecimento de relações com poderes fora da Península Ibérica. A
situação de desequilíbrio interno na Península e este desenvolvimento tecnológico levaram Portugal, um lugar muito pobre, a procurar compensações fora da Península Ibérica. A solução encontrada foi o Atlântico.
A partir deste momento, Portugal procurou sempre equilibrar as pressões da potência continental espanhola, assumindo-se como potência marítima.
Após o fim do Império Colonial, a política externa do nosso Estado voltar-se-ia prioritariamente para a Europa, como permanece ainda hoje.
Foram destas permanências histórico-geográficas que emergiram as estratégias da política externa portuguesa. Na verdade, tudo pode ser resumido à solução sistemática do dilema com que Portugal se deparava: elaborar uma estratégia de afastamento da Europa, a partir da ameaça espenhola apercebida como tal; deixar a política externa dominar-se cada vez mais pela opção atlântica. Dilema que conduziu à emergência de duas tendências de lingo prazo da política externa portuguesa: a busca por uma relação privilegiada com o poder marítimo (primeiro a Grã-Bretanha e, depois da Segunda Guerra Mundial, os EUA e a Aliança Atlântica) e a busca pelo projecto colonial (através dos três impérios portugueses: Índia, Brasil e depois África).
Tomando como um todo, estes factores conduziram a política externa portuguesa a estabelecer relações e alianças extra-peninsulares, ainda que tendo a Espanha em conta. Num primeiro momento, estabeleceu-se o laço Lisboa-Madrid-Londres e, depois da Segunda Guerra Mundial, o eixo Lisboa-Madrid-Washington.
Ainda que Portugal não tenha ambições de tornar-se uma grande potência, a projecção de poder faz parte dos interesses nacionais, como acontece com qualquer Estado. A ideia de que um país pequeno e periférico não pode, no mundo contemporâneo, ser um país desenvolvido, não colhe. Assim, não é certo que Portugal, um país europeu, minúsculo e periférico tenha de ser um país insignificante. Mas a sua actuação no seio da UE não lhe permite, nem lhe permitirá, assumir-se como potência média, já que, na UE, Portugal é, em termos relativos, um Estado insignificante. O que Portugal tem de fazer é redimensionar o interesse nacional, tendo uma ideia própria sobre a ordem internacional e sobre o seu papel nas áreas onde se joga esse interesse nacional.
Como sabemos do senso-comum, os períodos de crise são os mais propícios para se reflectir sobre o futuro. Nesta conjuntura de crise económica e face aos desafios que se têm colocado ao país em função das profundas alterações operadas no seio da UE, talvez fosse benéfico para o nosso país regressar ao mar, no projecto novo para um Portugal Lusófono, que vai desde a participação na Aliança Atlântica ao relacionamento mais estreito com o Brasil, a África, sem esquecer a necessidade de cuidar das comunidades portuguesas espraiadas de Joanesburgo a Buenos Aires – o que aponta para a necessidade de um relacionamento próximo também com a América Latina.
É que Portugal, se por um lado é um Estado pequeno – território, população, recursos, capacidade militar – por outro tem potencial de potência média, em virtude dos laços culturais espalhados pelo mundo, com um Língua que é falada por milhares de pessoas, com uma tradição histórica das mais ricas, com uma cultura que está a par das mais antigas da Europa.
Desta forma, em termos internacionais, o futuro de Portugal joga-se em vários tabuleiros – no do Estado e da sociedade, no da Justiça, no da educação ou da produtividade. Portugal joga, ainda, nas questões da agenda global no plano económico e social e no plano político e de segurança. Tem, também, diversos desafios aos quais fazer frente. Em primeiro lugar, o desafio da União Europeia, do sucesso do projecto europeu e da centralidade do nosso país nesse projecto. O segundo desafio de interesse estratégico é a superação da crise transatlântica – aberta pela invasão norte-americana do Iraque – e a manutenção do vínculo transatlântico. O terceiro desafio diz respeito às relações de Portugal com a Espanha. Finalmente, o desafio pós-colonial, sendo, bilateralmente, do interesse nacional o reforço das relações com os países de expressão portuguesa e, multilateralmente, fazer da CPLP um instrumento diplomático credível e operacional para os seus Estados-membros.
Os relacionamentos de Portugal com as ex-colónias africanas, com o Brasil e, de modo mais abrangente, com a América Latina, assumem, neste contexto, grande importância, estando hoje a despertar o interesse das comunidades política e académica nacionais e, até, embora em menor grau, da sociedade civil portuguesa. Daí a pertinência do estudo das cimeiras ibero-americanas no quadro da política externa portuguesa. Estas cimeiras foram instituídas em 1991, em reunião em Guadalajara (México). A ideia de criar a Ibero-América nasceu de uma iniciativa da Espanha e do México, a que logo se associou Portugal, com vista a criar um fórum de consulta e de concertação política que reflectisse sobre os desafios da região e impulsionasse a cooperação, a coordenação e a solidariedade regionais promovendo o desenvolvimento dos países ibero-americanos. É evidente que, na actual sociedade internacional global, voltada prioritariamente para a luta contra o macroterrorismo, para as relações transatlânticas, bem como para as questões europeias, a América Latina acaba por assumir uma posição pouco relevante, apenas mediatizada por altura destas reuniões anuais, quando os vinte e dois chefes de Estado e de Governo da América Latina e da Península Ibérica se encontram[7].
Porém, estas cimeiras assumem um carácter de muito maior importância. A Declaração Final da VI Cimeira, realizada em 1996, no Chile[8], chegou mesmo a propor a criação de uma Comunidade Latino-Americana de Nações vinculada à Comunidade Ibero-Americana[9].
Ademais, as cimeiras resultam de um ano de intensos trabalhos, com reuniões mensais entre ministros e técnicos de todos os Estados participantes.No sentido de preparar estas cimeiras anuais foi criada, em 2003, a Secretaria Geral Ibero-Americana (Segib), sediada em Madrid e actualmente presidida pelo uruguaio Enrique Iglesias, Secretário-Geral Ibero-Americano[10].
Centralizando todos os trabalhos anuais que desembocam depois nas cimeiras, a Segib tem, porém, uma estrutura insuficiente, com pouco mais de quarenta funcionários, o que a leva a apoiar-se mais na sociedade civil do que propriamente no exercício estritamente governamental[11].
Numa tentativa de descentralização, a Segib deverá em breve abrir quatro ou cinco delegações na América Latina, enquanto a Espanha fala mesmo na extensão da Ibero-América aos países africanos que falam Português e a vizinhos como o Haiti e o Belize, que aderiram como observadores ou convidados – sendo as Filipinas, a Guiné Equatorial, Moçambique, o Belize e Timor-Leste candidatos à adesão – embora não haja consenso sobre a extensão da Ibero-América. O coordenador português para as relações ibero-americanas, Embaixador João Diogo Nunes Barata, por exemplo, considera a ideia prematura. Em primeiro lugar, porque a Ibero-América é uma comunidade ainda não consolidada e sem visibilidade; depois, porque alargando-a a países extra-região, deixaria de fazer sentido falar-se em espaço ibero-americano[12]. Apesar de a região latino-americana estar a viver um período de crescimento económico sem precedentes, com uma taxa de crescimento que rondou os 3,5% em 2009, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o desenvolvimento económico não tem ocorrido. A vida da população não reflecte esse crescimento económico, a taxa de pobreza mantém-se elevada, a riqueza continua mal distribuída, as classes médias emergentes trazem diversas implicações sócio-político-económicas ainda não totalmente absorvidas e o sistema educacional não permite o salto para o desenvolvimento[13].
Na realidade, os problemas são muitos e urgentes e, por vezes, a retórica prevalece sobre as reais possibilidades de concretização de uma verdadeira Comunidade Ibero-Americana de Nações. Projecto ambicioso que poderá, todavia, beneficiar do discurso integracionista que, de um modo geral, os líderes latino-americanos apresentam.
O grande desafio é, sem dúvida, contrariar a imensa desigualdade sócio-económica que caracteriza toda a Ibero-América, tornando por vezes difícil, mesmo, que se fale em união ibero-americana. Se, por um lado, o que existe de comum entre os países latino-americanos não é suficiente para que se projecte uma integração regional; por outro as diferenças entre esses países e Portugal e Espanha são gritantes. É evidente que existe uma cultura ibero-americana; todavia, tudo o resto diverge, sendo muito difícil, como se pretende com as cimeiras ibero-americanas, que o espaço ibero-americano se ponha de acordo nas instâncias internacionais e regionais. Parece necessário, antes de mais, e para que esse consenso seja possível, que cada país, internamente, crie as condições próprias para o seu crescimento e desenvolvimento económicos, reduzindo a pobreza e a desigualdade. O que, de um ponto de vista pragmático, depende de políticas internas e não de políticas ibero-americanas. São necessárias reformas estruturais, na fiscalidade, na competitividade, na produtividade, no sistema político, no sistema educacional. Mas as cimeiras ibero-americanas, inaugurando uma forma de fazer política mais dirigida aos cidadãos, poderão vir a ajudar nessas reformas. Portugal tem proposto que as próximas cimeiras se dediquem a temas mais precisos e perceptíveis para as populações, menos genéricos e que, de facto, se traduzam em declarações finais inteligíveis e sintéticas.
Os temas sociais, por exemplo, o calcanhar de Aquiles da América Latina, aqueles que abrem espaço ao populismo e à demagogia, são de grande relevância, tendo a XVII Cimeira Ibero-Americana, em 2007, em Santiago do Chile, sido dedicada a este tema.
Nela, a Espanha propôs a introdução do coneceito de fundos de coesão que, na Europa Comunitária, foram importantes para que os países menos desenvolvidos pudessem acompanhar os mais ricos. Os fundos de coesão, adoptados de modo coerente com a realidade ibero-americana, poderão vir a permitir assegurar a igualdade entre as populações e as regiões dos países latino-americanos, por forma a erradicar o crescente apartheid social do continente, segundo aponta o académico espanhol Celestino del Arenal. Existindo um consenso ibero-americano sobre a conveniência do instrumento, a Cimeira de Santiago do Chile conseguiu, para já, aprovar um conceito de fundos de coesão adaptado à realidade regional, abrindo caminho para que, depois, se discutam as vias possíveis para os modelos, financiamento e gestão desses fundos.
De facto, se os objectivos da União Ibero-Americana, aquando da sua criação, eram o desenvolvimento económico e a consolidação da democracia, agora é a coesão social que surge como o grande desafio da região. E melhorar a coesão social passa por encontrar novos modelos e paradigmas de desenvolvimento, analisar as idiossincracias nacionais e adoptar melhores práticas e políticas públicas.
Em todo o caso, neste processo de cooperação ibero-americana avulta sem dúvida o papel central desempenhado pela Espanha, que tem tomado, em grande medida, a dianteira do processo, com uma atitude mais activa que a que Portugal tem demonstrado. Situação que, na realidade, sucede nas próprias Cimeiras Ibero-Americanas e respectiva organização. A realidade, de facto, é que cerca de 60% do orçamento da Secretaria das Cimeiras é suportado por Espanha, o que a transforma, em certo sentido, numa espécie de ferramenta da política externa espanhola para a América Latina, onde Portugal perde espaço constantemente, apesar de constituir o terceiro contribuinte líquido da Segib, precedido apenas pelo México[14].
É evidente que a espanholização do espaço ibero-americano – expressão que Madrid recusa, todavia – ocorre perante o facto consumado de Portugal privilegiar a relação com o Brasil; o que não deveria ocorrer, porque a Ibero-América se afirma como a única arena de diálogo entre Portugal e os países latino-americanos que não o Brasil, tendo a seu favor o facto de, junto de muitos desses países, gozar de um estatuto de neutralidade de que Madrid não se pode gabar[15].
A verdade é que esta situação remonta ao próprio relacionamento que as nações ibéricas construíram, de início, com as Comunidades Europeias, especialmente aquando da adesão de ambas, em 1986[16]. É um facto que a adesão das nações ibéricas às Comunidades gerou expectativas múltiplas quanto ao estreitamento das relações entre a América Latina e a Europa e à intensificação do diálogo político entre ambas as regiões. Neste processo, Portugal teve um papel bastante discreto. As prioridades da sua política externa fora da Europa eram a África de expressão portuguesa e os Estados Unidos e a única prioridade na América Latina era o Brasil, percepcionado como líder natural das nações latino-americanas, com poder suficiente para gerar o diálogo directo com as Comunidades, sem a necessidade de intermediários[17].
A Espanha, por seu lado, tomou de forma organizada e afirmativa a questão das relações com a América Latina. A sua intenção era desenvolver um diálogo político com os países que outrora haviam sido suas colónias e, evidentemente, desempenhar o papel de ligação entre a América Latina e a Europa Comunitária. Vale lembrar que, tradicionalmente, a América Latina constitui uma prioridade da política externa espanhola havendo inclusive, na Constituição de 1978, uma referência à Comunidade Histórica quando se aborda o papel do Rei nas relações internacionais[18].
Evidentemente, a maioria dos Estados-membros das Comunidades opôs-se à ideia de a Espanha adoptar um papel de protagonista neste domínio; ao mesmo tempo que, do lado latino-americano, alguns países consideraram inválida tal atitude paternalista e retórica, exprimindo a não necessidade da Espanha como tutor para a América Latina fazer valer os seus interesses. Assim se desvaneceu a ideia da ligação e o governo do PSOE pôs a Espanha a funcionar como factor activante das relações CEE-América Latina[19].
Terceiro contribuinte do orçamento da Segib, coube a Portugal a tarefa de organizar a cimeira de 2009, sob o tema A Inovação e o Conhecimento. Assim, a 2 de Fevereiro de 2009, realizou-se, no Palácio das Necessidades, a cerimónia de transmissão da Secretaria Pro-Tempore Ibero-Americana de El Salvador (organizador da cimeira de 2008) para Portugal, com a presença dos ministros dos Negócios Estrangeiros de El Salvador e de Portugal, Marisol Argueta e Luís Amado, respectivamente, bem como do vice-ministro dos Estrangeiros da Argentina, Victorio Taccetti – que terá a presidência da cimeira em 2010. Para além, naturalmente, do Secretário-Geral Ibero-Americano, Enrique Iglesias[20].
Na realidade, num momento de crise global como o que hoje se vive, e que seguramente estender-se-á a parte deste ano, a inovação tecnológica e a pesquisa científica desempenham um papel de grande relevância, até mesmo como possibilidade de solução para a referida crise.
O desafio dos países latino-americanos, de Portugal e da Espanha é o de aumentar a respectiva cooperação nesses campos; tarefa para a qual a XIX Cimeira teve um papel importante, através da apresentação de projectos concretos.
Deve salientar-se que a cooperação ibero-americana no âmbito do desenvolvimento e difusão do conhecimento e da tecnologia surge fundamental na transmissão mútua das visões sobre as Relações Internacionais como ramo autónomo do Saber no seio das Ciências Sociais e, aqui, surge particularmente relevante a cooperação que Portugal, a Espanha e a própria União Europeia estabelecem com a América Latina – sendo de esperar que a Presidência Espanhola da Conselho da EU venha dar um grande impulso à constituição do Espaço Ibero-Americano do Ensino Superior – já que existe, efectivamente, uma visão latino-americana das relações internacionais, diferente daquela a que estamos habituamos, que condiciona a criação prática, bem como a análise teórica, desta subregião americana.
Existe, de facto, em fase de grande estruturação nas últimas décadas uma visão latino-americana das relações internacionais, partindo da construção de paradigmas sobre o desenvolvimento, já que a preocupação principal em torno da qual giram as abordagens internacionalistas latino-americanas é o subdesenvolvimento a que as suas sociedades estão sujeitas.
Na realidade, como assinala o Professor Doutor Amado Luiz Cervo, da Escola de Brasília, “…as políticas exteriores dos países do Sul – pelo menos é o caso do Brasil – centralizam suas preocupações em torno dos problemas do desenvolvimento. O mesmo não ocorre com os países avançados do Norte. É possível perceber dois esquemas de relações internacionais contemporâneas. Entre países avançados, as relações igualitárias deixam transparecer um caráter lúdico. Zelar pela paz ou preparar-se para a guerra, compor ou desfazer alianças, construir a potência e o prestígio, difundir ideologias e valores situam-se do lado do divertimento. Entre países desiguais, para aqueles que são atrasados, as relações internacionais deixam transparecer o caráter existencial. Delas dependem, em boa medida, os ritmos de desenvolvimento, as oportunidades de melhoria das condições sociais, o cotidiano. (…) Os nortistas continuam admitindo que as teorias do desenvolvimento, desde Keynes, integram a ciência econômica, não a ciência política. Como se a pobreza, a dominação e a dependência, a cooperação e a exploração não fizessem parte do mundo real das relações internacionais”[21].
De facto, a dimensão essencial das relações internacionais dos países subdesenvolvidos é o desenvolvimento económico. Para além de Cervo, Tomassini[22] e Bernal-Meza[23] são exemplos claros da defesa desta postura, para quem o estudo das relações internacionais dos países subdesenvolvidos deve passar pela análise das estratégias de desenvolvimento e inserção internacional, assim como da política externa, de modo que se estabeleça a relação entre os fundamentos da política, a sua prática específica e o desenvolvimento económico[24]. É neste sentido que o ponto de partida para a criação, desenvolvimento e consolidação de um pensamento especificamente latino-americano de relações internacionais é a crítica à teoria clássica e neoclássica da especialização no comércio internacional (a divisão internacional do trabalho) que sustenta o modelo centro-perferia[25], que constitui a origem do pensamento estruturalista latino-americano, sendo certo que o pensamento latino-americano das relações internacionais ultrapassa as explicações monocausais e tem início quando o fim da Segunda Guerra Mundial converte o objectivo do desenvolvimento em assunto internacional[26].
À parte esta realidade, é bom analisar os resultados alcançados com a Cimeira Ibero-Americana de 2009, depois de as reuniões preliminares desta terem tido por objectivo criar a inovação concorrencial, isto é, uma investigação tecnológica concorrencial.
Não obstante ter alcançado resultados efectivos em matéria de Inovação e Conhecimento, a verdade é que a Presidência portuguesa não conseguiu impor a sua agenda, tendo a XIX Cimeira Ibero-Americana sido dominada pela crise hondurenha, pelas alterações climáticas, pela extradição de Posada Carrilles e pela crise financeira e económica mundial – os temas quentes da agenda latino-americana. Mesmo assim, foi de facto em relação à Inovação e Conhecimento que saíram os principais acordos entre os Vinte e Dois.
Desde logo, foi assinada a Declaração de Lisboa, na qual os países ibero-americanos acordaram incentivar as matérias “mediante a formulação e implementação de políticas públicas de médio e longo prazos, sejam de natureza fiscal, financeira ou de crédito, dirigidas aos agentes da inovação e do conhecimento (empresas, principalmente as pequenas e médias, as universidades, centros de I&D, governos, sectores sociais) e à população em geral, e promovendo a sua interacção, estimulando, consequentemente, a implementação gradual de uma cultura da inovação”[27].
Na verdade, pode bem ser a partir da «Inovação e Conhecimento» que as sociedades ibero-americanas consigam dar um novo impulso à recuperação económica e ao combate ao desemprego, à exclusão social e à pobreza, sendo certo que, para tanto, compete aos governos nacionais a definição de políticas públicas nesse sentido, e não à Comunidade Ibero-Americana.
A XIX Cimeira Ibero-Americana veio, assim, dar um novo impulso para a criação de uma Comunidade Latino-Americana de Nações vinculada à Comunidade Ibero-Americana, no sentido de efectivar a Ibero-América como um fórum de consulta e de concertação política que reflicta sobre os desafios da região e impulsione a cooperação, a coordenação e a solidariedade regionais, promovendo o desenvolvimento dos países ibero-americanos. É necessário capitalizar os esforços das Cimeiras Ibero-Americanas de modo a que os seus resultados se afirmem concretos e capazes de atacar os problemas da região.
[1] Doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Professora Auxiliar no ISCSP/UTL.
[2] Os Estados participantes destas Cimeiras desde 1991 são Argentina, Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Chile, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, República Dominicana, Uruguai, Venezuela, Portugal e Espanha. Andorra aderiu em 1994.
[3] Precisamente no ano, eleito pela União Europeia (EU), Ano da Criatividade e da Inovação.
[4] Cfr. SEVERIANO TEIXEIRA, Nuno; Continuity and Change: The Foreign Policy of Portuguese Democracy, Instituto Português de Relações Internacionais – IPRI, Universidade Nova de Lisboa, Working Paper nº 1, pp. 4.
[5] Utiliza-se aqui a expressão política externa como ferramenta de simplificação, uma vez que a existência de política externa antes do Tratado de Westfália (1648) é muito duvidosa, em função da entidade Estado ter sido reconhecida como tal apenas nesse tratado e a política externa, em si, ser apanágio do Estado.
[6] Cfr. SEVERIANO TEIXEIRA, Nuno; op. Cit., pp. 4.
[7] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; A XVII Cimeira Ibero-Americana e a Coesão Social, in Reflexões Brasilianistas e Sul-Americanistas, http://www.brasil-americadosul.blogspot.com/search?updated-min=2007-01-01TOO%3AOO, consultado a 4 de Novembro de 2009.
[8] Até hoje, realizaram-se dezoito cimeiras, cada qual com a sua presidência, a saber: 1991 – México; 1992 Espanha; 1993 – Brasil; 1994 – Colômbia; 1995 – Argentina; 1996 – Chile; 1997 – Venezuela; 1998 – Portugal; 1999 – Cuba; 2000 – Panamá; 2001 – Peru; 2002 – República Dominicana; 2003 – Bolívia; 2004 – Costa Rica; 2005 – Espanha; 2006 – Uruguai; 2007 – Chile; 2008 – El Salvador. A de 2009 é presidida por Portugal e a de 2010 sê-lo-á pela Argentina.
[9] Cfr. http://www.iberchile.pt consultado a 18 de Novembro de 2009.
[10] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; A XVII Cimeira Ibero-Americana e a Coesão Social, in Rflexões Brasilianistas e Sulamericanistas, in http://www.brasil-americadosul.blogspot.com/search?updated-min=2007-01-01TOO%3AOO consultado a 4 de Novembro de 2009.
[11] Cfr. http://www.segib.org consultado a 13 de Novembro de 2009.
[12] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; A XVII Cimeira Ibero-Americana e a Coesão Social, in Rflexões Brasilianistas e Sulamericanistas, in http://www.brasil-americadosul.blogspot.com/search?updated-min=2007-01-01TOO%3AOO consultado a 4 de Novembro de 2009.
[13] Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
[14] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; A XVII Cimeira Ibero-Americana e a Coesão Social, in Reflexões Brasilianistas e Sulamericanistas, in http://www.brasil-americadosul.blogspot.com/search?updated-min=2007-01-01TOO%3AOO consultado a 4 de Novembro de 2009.
[15] Cfr. Idem, consultado a 4 de Novembro de 2009.
[16] PATRÍCIO, Raquel; As Relações Entre a União Europeia e a América Latina – O Mercosul Neste Enquadramento, in MARTINS, Estevão Chaves de Rezende e SARAIVA, Miriam (orgs.); Brasil-União Europeia-América do Sul: Anos 2010-2010, Fundação Konrad Adenauer, Universidade de Brasília e CNPq, 1ª edição, Rio de Janeiro, 2009, pp. 62 à 75, pp. 67.
[17] Cfr. Idem, ibidem.
[18] Cfr. TOVIAS, Alfred; Foreign Economic Relations of the EC: The Impact f Spain and Portugal, Lynne Rienner Publisher, Boulder & London, Londres, 1990, pp. 60 à 71.
[19] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; op. Cit., pp. 68.
[20] Cfr. http://www.cimeiraiberoamericana.gov.pt consultado a 16 de Novembro de 2009.
[21] Cfr. CERVO, Amado Luiz (org.); O Desafio Internacional – A Política Exterior do Brasil de 1930 a Nossos Dias, Colecção Relações Internacionais, Editora Universidade de Brasília, 1ª edição, Brasília DF, 1994, pp.15.
[22] Vide TOMASSINI, Luciano; Desarrollo Económico e Inerción Externa en América Latina: Um Proyecto Elusivo”, in Estudios Internacionales, Santiago, ano XXV, nº 97, Janeiro-Março de 1992, pp. 73-116.
[23] Vide BERNAL-MEZA, Raúl; América Latina en la Economia Política Mundial, Grupo Editor Latinoamericano, 1ª edição, Buenos Aires, 1994. BERNAL-MEZA, Raúl; Sistema Mundial y MERCOSUR. Globalización, egionalismo Políticas Exteriores Comparadas, Nuevohacer/Grupo Editor Latinoamericano e Universidad Nacional de la Provincia e Bueos Aires, 1ª edição, Buenos Aires, 2000.
[24] Cfr. BERNAL-MEZA, Raúl; América Latina en el Mundo – El pensamiento Latinoamericano y la Teoría de Relaciones Internacionales, Nuevohacer/Grupo Editor Latinoamericano, 1ª edição, Buenos Aires, 2005, pp. 66.
[25] Modelo que divide os Estados da sociedade internacional em dois grupos opostos: os desenvolvidos, do centro, e os subdesenvolvidos, da periferia.
[26] Cfr. BERNAL-MEZA, Raúl; op.cit., pp.67.
[27] Cfr. Declaração de Lisboa, XIX Cimeira Ibero-Americana, Lisboa, 1 de Dezembro de 2009.
Tuesday, June 1, 2010
Brasil Condena o Ataque Israelita
O governo brasileiro recebeu com "choque e consternação" a notícia sobre o ataque israelita a um dos barcos da flotilha que levava ajuda humanitária internacional à Faixa de Gaza. Em nota divulgada hoje, o Ministério das Relações Exteriores afirma que o "Brasil condena, em termos veementes, a ação israelita, uma vez que não há justificativa para a intervenção militar em comboio pacífico, de carácter estritamente humanitário". O Itamaraty refere ainda que o embaixador de Israel no Brasil será chamado ao MRE para que seja manifestada pessoalmente a indignação do governo brasileiro com o incidente.
O comunicado afirma que o fato é agravado por ter ocorrido em águas internacionais. Para o Brasil, o ocorrido deve ser objecto de investigação independente, "que esclareça plenamente os fatos à luz do Direito Internacional."Os resultados da operação militar israelita denotam a necessidade de levantamento do bloqueio imposto à Faixa de Gaza, com vista à garantia da liberdade de locomoção de seus habitantes e o livre acesso a alimentos, medicamentos e bens de consumo àquela região", esclarece ainda a nota de imprensa divulgada hoje pelo Itamaraty.
O comunicado afirma que o fato é agravado por ter ocorrido em águas internacionais. Para o Brasil, o ocorrido deve ser objecto de investigação independente, "que esclareça plenamente os fatos à luz do Direito Internacional."Os resultados da operação militar israelita denotam a necessidade de levantamento do bloqueio imposto à Faixa de Gaza, com vista à garantia da liberdade de locomoção de seus habitantes e o livre acesso a alimentos, medicamentos e bens de consumo àquela região", esclarece ainda a nota de imprensa divulgada hoje pelo Itamaraty.
Friday, May 28, 2010
A RELEVÂNCIA DOS BRIC EM ANÁLISE
Reflexões Brasilianistas e Sul-Americanistas
O primeiro blog português sobre a América Latina: A Universidade portuguesa a pensar a América Latina, por Raquel Patrício, Doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília, Prof. Auxiliar do ISCSP/UTL
Thursday, May 6, 2010
A RELEVÂNCIA DOS BRIC EM ANÁLISE
Durante a década de 1970, um grupo de países apresentou um acelerado crescimento industrial que os levou a buscar a liderança nos respectivos espaços regionais e, também, ao nível do espaço internacional, reivindicando novas fórmulas para o ordenamento da sociedade internacional[1]. Foi então que a cooperação Sul-Sul entrou na agenda das políticas externas, tanto por parte dos Estados system affecting[2], como dos países já então identificados como grandes mercados emergentes[3].Esta evolução acelerou-se no final dos anos 1990 e, particularmente, no início do século XXI, quando estes grandes mercados emergentes, como o Brasil, a Rússia, a Índia e a China, passaram a ser identificados através do acrónimo BRIC.Fala-se muito, hoje em dia, especialmente na comunicação social brasileira, relativamente na chinesa e na indiana, e praticamente nada na russa, dos BRIC. Acrónimo lançado por Jim O`Neill, economista do grupo norte-americano Goldman Sachs, em 2001[4], BRIC refere-se, sugestivamente, ao Brasil, à Rússia, à Índia e à China, no sentido de chamar a atenção para esses países, considerados emergentes, porque as respectivas economias têm alcançado tal nível de crescimento nos últimos anos que, em 2050, superarão o grupo de países desenvolvidos que formam o G6 (EUA, Japão, Alemanha, Grã-Bretanha, França e Itália, nesta ordem)[5].Assim, após o 11 de Setembro de 2001, em função da ameaça de instabilidade económica, Jim O`Neill lançou o acrónimo BRIC como alternativa de mercado. A Goldman Sachs, que já vinha estudando os mercados emergentes desde a década de 1980, lançou o termo BRIC a 30 de Novembro de 2001[6], como resposta ao 11 de Setembro, com receio de um crash bolsista. Em 2003, lançaria a tese do Dreaming With the BRICs[7], já que, do ponto de vista de quem investe, o deadline de 2003 a 2050 confere segurança e confiança, particularmente relevantes na era de insegurança e pouco ganho que se seguiu aos ataques terroristas. Para Dominic Wilson e Roop Purushothaman, “the BRICs economies could become a much larger force in the world economy. We map out GDP growth, income per capita and currency movements in the BRICs economies until 2005”[8]. A partir da previsão assim elaborada, a Goldman Sachs investiu agressivamente nestes mercados emergentes, sendo de salientar que, tendo em conta possíveis distúrbios nestas economias, lançou, depois, em conjunto com o mercado, derivações interessantes desse acrónimo, surgindo, assim, os BRICS (BRIC + África do Sul); BRICM (BRIC + México) e BRICSAM (BRIC + África do Sul + México + ASEAN), no sentido de serem apresentadas outras carteiras de investimento para além dos BRIC originais.Não obstante estas derivações, que acrescentam, aos BRIC inicialmente enunciados por O`Neill, outros países, a verdade é que são o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul as economias emergentes que mais se destacam, não só pela importância que estas economias têm revelado no comércio mundial e na atracção de fluxos de investimento, como também em função da posição relativa que as mesmas ocupam no conjunto das chamadas economias emergentes[9], especialmente em função do crescimento do PIB, da renda per capita e dos movimentos comerciais e financeiros.Na verdade, estas economias têm-se tornado alvo de crescente interesse, designadamente em termos das lições que podem vir a dar a outros países, mormente aos velhos poderes da sociedade internacional, graças ao seu actual desempenho económico e do potencial que estes países apresentam para tornarem-se os principais impulsores do crescimento da economia mundial[10].Estes países procuram desenvolver um comportamento internacional de natureza multifacetada, por forma a beneficiar das oportunidades oferecidas pelo sistema internacional, no sentido de remodelá-lo para beneficiar os países do Sul, permitindo-lhes actuar, nos respectivos contextos internacionais, com base numa perspectiva de hegemonia[11].É bem verdade que estes países emergentes actuam em relativa consonância no domínio económico, mas nos restantes assuntos internacionais, designadamente no que à segurança internacional diz respeito, a sua influência na sociedade internacional é nula, já que não existem interesses comuns entre esses países do ponto de vista securitário. A sua relevância na sociedade internacional advém, desta forma, não de um verdadeiro peso geopolítico e geoestratégico, mas de uma importância geoeconómica crescente – o que, em abono da verdade, poderá vir a conceder-lhes as tais importâncias geopolítica e geoestratégica. Que, para já, são reduzidas. Ademais, embora a própria existência destes países lhes confira um peso crescente em matéria de constrangimento sobre os restantes países da sociedade internacional, o que, por si só, já é uma arma poderosa[12], esse peso geoconómico não lhes garante, em termos absolutos, a sua segurança internacional.Para que exista uma visão coincidente da segurança e da defesa entre o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul, no cenário internacional, é necessário que existam pontos de contacto em matéria de interpretação e avaliação da missão que estes países têm através das respectivas políticas de segurança e defesa; de explicitação e análise das ameaças que sobre eles pesam ou pesarão; dos meios que possuem para a defesa (disponíveis ou mobilizáveis); e da escolha de uma estratégia para a defesa de todos e dos espaços comuns de interesses[13]. O que, para já, não existe, não apenas em função da não coincidência entre os regimes políticos (especialmente porque nem todos são democracias) e entre as próprias organizações internas destes países, como também, e fundamentalmente, em função dos diferentes modos de inserção internacional que estes países têm levado a efeito após a década de 1990 (e mesmo antes). Assim, se a Rússia está mais voltada para a União Europeia e para os EUA, a China para o espaço euro-asiático, a Índia comprometida, essencialmente, com os seus problemas internos (referentes aos conflitos étnicos e religiosos) e externos (relativo à vizinhança hostil) e a África do Sul voltada para o espaço africano sub-saariano, é o Brasil aquele que mais tem levado a cabo uma inserção internacional multifacetada. A sua prioridade deixa de ser exclusivamente o espaço regional, designadamente o Cone Sul, onde ressalta o Mercosul e, particularmente, as relações em eixo com a Argentina[14], e passa a agregar, a essa prioridade, o estabelecimento de alianças e parcerias com os restantes emergentes, no sentido de alcançar mais-valias que o elevem a potência mundial, sua ambição mais premente na actualidade.Assim, embora o Brasil seja, dos BRIC, aquele que menos sucessos apresenta em termos económicos, o que tem levado o próprio presidente Lula a falar em “colocar um B em BRIC”[15], seguido de análises de especialistas da The Economist, a verdade é que é o Brasil o emergente que mais tem patrocinado o estabelecimento de ligações/relações entre os BRIC e a África do Sul, procurando conformar a sociedade internacional a uma ordem não polar[16] pós-americana[17]. Neste sentido, tem sido a política externa brasileira, a partir do início dos anos 1990, a liderar o engajamento dos países emergentes uns com os outros, o que justifica que se saliente a posição dessa política externa no enquadramento do relacionamento entre o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul. Até porque o Brasil tem interesses específicos em ligar-se aos restantes BRIC, potenciando a economia e o investimento nesses países, porque a globalização dos mercados, ao transformar o mundo numa pequena aldeia global, determina a rápida repercussão dos fenómenos. Desta forma, a capitalização da economia e do investimento na Rússia, na Índia e na China, por parte do Brasil, terá, certamente, efeitos benéficos para a economia brasileira, em pleno momento de expansão, pese embora a crise financeira internacional despoletada em meados de 2007, nos EUA, a propósito do subprime.De facto, embora o Brasil tenha historicamente actuado nos fora multilaterais terceiro-mundistas, é a partir de 1993, com a ascensão de Itamar Franco à Presidência da República, que o país começou a buscar um tipo novo de cooperação Sul-Sul, no contexto de uma ordem internacional caracterizada “por acções mais isoladas da dimensão Norte-Sul ou pela volatilidade das alianças organizadas na defesa de temas específicos”[18]. Sendo o Brasil apoiado pelos restantes BRIC, pela África do Sul e, até, pelo México; países que têm estabelecido, entre si, novos fora de debate e coordenação económico/política, dando corpo a uma cooperação Sul-Sul que influencia, cada vez mais, a sociedade internacional. Assim, partindo do denominador comum do crescimento económico acelerado, adquirem, hoje, uma importante relevância do ponto de vista geoeconómico.As semelhanças das dimensões geopolíticas e geoeconómicas referentes ao território, à reconhecida importância regional, à população, ao PIB, aos recursos naturais – ainda que aqui não entre o tipo de regime democrático, para muitos um destes vectores, por, de facto, nem todos os BRICS serem democráticos – têm sido as bases sobre as quais tem assentado a cooperação entre estes países, formando-se, mesmo, parcerias estratégicas.É evidente que existem experiências de actuações conjuntas dos países do Sul em termos históricos, sendo de ressaltar a cooperação desenvolvida no âmbito do Grupo 77. Todavia, se nesta época existiam condicionalismos externos, sobretudo económicos, que limitavam o impacto da cooperação Sul-Sul na sociedade internacional, com o derrube do muro de Berlim e o fim do bipolarismo, estes países aumentaram a sua capacidade de negociação na esfera internacional[19], buscando, especialmente, uma cooperação internacional que lhes permita contrapor-se às acções unilaterais das grandes potências.Neste sentido, a política externa brasileira, a partir de 1993, fez da cooperação do país com potências médias de grande porte, com destaque para a China, a Índia, a África do Sul e a Rússia – embora esta não pertença ao que se entende por Sul – uma prática corrente e, mesmo, uma das prioridades da diplomacia brasileira. Afinal, foi a partir de 1993, com Itamar Franco, que a corrente autonomista do Itamaraty ocupou mais espaço nas concepções diplomáticas do Brasil. E, de acordo com esta visão, o país observou que as características semelhantes entre si e os restantes emergentes deveria ser capitalizada através do desenvolvimento de formas de cooperação entre si e esses países extra-regionais, com o firme objectivo de reordenar o sistema internacional. Se esta ideia ganhou força quando Fernando Henrique Cardoso, no final do seu segundo mandato, cunhou o termo globalização assimétrica[20], foi, de facto, com Lula, que ascendeu à Presidência da República em 2003, que o estabelecimento de fora extra-regionais e parcerias estratégicas com os emergentes se transformou numa opção relevante da política externa brasileira.Vale lembrar que, desde 1993, o Brasil buscou a aproximação com os países emergentes através de dois modelos distintos, porém complementares. Por um lado, esta cooperação foi levada a efeito através das negociações comerciais no âmbito do Mercosul, procurando o país assinar acordos comerciais entre o bloco e os restantes emergentes, tanto a nível individual como em grupo. Por outro lado, a diplomacia brasileira buscou aproximar-se desses países em termos individuais, país a país, tanto ao nível dos consensos na esfera mundial – saliente-se o caso das negociações no seio da OMC – tanto a nível bilateral, através do estabelecimento de parcerias estratégicas[21].Assim, em 1993, as relações entre o Brasil e a China assistiram a um incremento considerável, na sequência da visita do presidente Zemin ao Brasil, visando estabelecer uma parceria estratégica entre ambos os países nos sectores de infra-estruturas e tecnologia. Foram assinados, também, um protocolo de cooperação em pesquisa espacial e um acordo na área científica e tecnológica. Ademais, o encontro procurou também fortalecer a ligação dos dois países à Índia a partir da actuação de todos nos fora multilaterais no tratamento de temas de política e de comércio externo. Embora, na prática, estes esforços não se tenham traduzido num incremento significativo das relações Brasil-Índia naquele momento, eles serviram para lançar as bases nas quais assentam, hoje, essas relações.Também neste período se assistiu ao incremento das relações Brasil-África do Sul, em 1994, aquando do fim do apartheid, ainda que, neste período, com Itamar Franco, a nova etapa das relações bilaterais não tenha, tal como no caso da Índia, obtido grandes resultados práticos.Relativamente à Rússia, foi assinado, em 1994, um tratado de parceria que almejava estabelecer, entre ambos, uma parceria estratégica visando o encetamento de negociações para a formação de um organismo de consulta bilateral. O comércio entre ambos, porém, manteve-se muito reduzido.Quando Fernando Henrique Cardoso sucedeu a Itamar, em 1995, este ritmo de cooperação entre os países emergentes, liderado pelo Brasil, diminuiu de forma bastante premente, em função da predominância mundial das concepções neoliberais. Apenas as relações comerciais foram, de alguma forma, estimuladas, tendo sido assinados, em 1996, o Acordo de Pretória, entre o Brasil e a África do Sul, buscando iniciar as negociações comerciais entre o Mercosul e o gigante da África Austral e, em 2000, o acordo marco entre ambos, no sentido da criação de uma área de livre comércio.Em relação à China, no início dos anos 1990, o mercado deste país passou a ocupar a terceira posição como destino das importações brasileiras, tendo sido apresentado, pela diplomacia brasileira, um estudo preparatório sobre a viabilidade em estabelecer-se, entre a China e o Mercosul, um acordo de livre comércio, embora não tenham sido levados adiante os esforços de criação de uma parceria estratégica entre ambos os países[22].Com a Rússia, as negociações comerciais não prosperaram[23]. Ainda que, a partir de 1995, o comércio bilateral tenha tido um crescimento relativo, a diversificação dos produtos exportados manteve-se reduzida. Até porque os maiores avanços nas relações bilaterais foram levados a efeito no âmbito político e da cooperação[24]. Em 1997, todavia, na sequência da visita do então ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Primakov, ao Brasil e, depois, em 2000, da visita do então vice-presidente brasileiro Marco Maciel, foram assinados acordos de cooperação nas áreas da educação, cultura, ciência, tecnologia e investigações sobre o espaço exterior, bem como a Declaração Conjunta de Criação da Comissão de Alto Nível, que começou a funcionar em 2000.No final do mandato de FHC, o Brasil formou uma aliança com a África do Sul e a Índia em matéria de propriedade intelectual na área farmacêutica. Isto sucedeu na sequência do contencioso das patentes que o Brasil e a África do Sul levaram adiante contra os EUA, na defesa da possibilidade dos dois países incentivarem a produção interna de medicamentos contra a SIDA a custos mais reduzidos. Foi muito importante a associação da Índia a estas questões, em função da fase de transição do Acordo TRIPS, estabelecido no âmbito da OMC, o qual produzia benefícios na produção e venda de medicamentos similares aos das indústrias norte-americanas a custos mais reduzidos[25]. Assim, a aliança Brasil-África do Sul conseguiu arregimentar outros países africanos e os dois puderam passar a comprar o coquetel anti-SIDA ao governo indiano – uma experiência de sucesso que serviu de modelo de cooperação no âmbito da cooperação Sul-Sul frente a um tema multilateral, embora não tenha produzido consequências até ao momento.A conjuntura internacional pós-11 de Setembro de 2001, já no final na gestão de FHC, obrigou a diplomacia brasileira a repensar a inserção internacional do Brasil, concluindo pela necessidade de reforçar a vertente multilateral e a aproximação aos países emergentes. Até porque, em Novembro desse mesmo ano, era lançada a tese dos BRIC, pelo economista norte-americano Jim O`Neill, do grupo Goldman Sachs.Iniciando uma inserção internacional assente no reforço da corrente autonomista do Itamaraty, o governo Lula procurou, para o Brasil, um modelo de inserção na sociedade internacional que apela à “inserção periférica dos países em desenvolvimento”[26] – o que tem sido chamado, por Amado Cervo, da Escola de Brasília, de inserção logística[27], uma inserção que faz a síntese entre os aspectos positivos do Desenvolvimentismo e do Neoliberalismo, numa espécie de convivência entre o estruturalismo latino-americano de base marxista e o capitalismo ocidental.Neste sentido, o Brasil, além de ter introduzido, na sua agenda de política externa, os temas do papel das Nações Unidas, dos princípios do multilateralismo, do Direito Internacional, das preocupações com a segurança regional e internacional, do combate ao terrorismo e ao narcotráfico, da busca de um comércio mais fortalecido e não discriminatório, da protecção ambiental e das fórmulas para ultrapassar a pobreza, buscou também dar um novo peso à cooperação Sul-Sul[28], por forma a consolidar um multilateralismo mais favorável a estes países, bem como recolocar a divisão Norte-Sul no centro da política internacional[29].De facto, a política externa brasileira tem tentado conformar a ordem internacional à filosofia política de equalizar os benefícios, nas relações internacionais, entre os países ricos e os emergentes ou, por outras palavras, obter a reciprocidade nas relações internacionais, na tentativa de ultrapassar o que Fernando Henrique Cardoso, quando se tornou céptico quanto à sociedade internacional conformada ao neoliberalismo, chamou de globalização assimétrica[30].Tem sido, contudo, difícil obter a reciprocidade real entre países capitalistas e emergentes, o que tem levado o Brasil a voltar-se, cada vez mais, para outros espaços de actuação. Reflectindo sobre os vectores económico, social, político e agrícola (sendo o Brasil, de todos os BRIC, o maior mercado agrícola), o Brasil tem, através de sistemas de rede montados com as universidades, as empresas e os centros de estudo, estruturado pontos de contacto e ligações com os restantes países emergentes. O Brasil congregou a Índia e a China, já pensando nas potencialidades dos minérios; congregou a África do Sul, em função da dinâmica económica sul-africana e da sua rede de influências; e tem-se ligado aos melhores académicos russos, indianos e chineses, para além de ter criado a Secretaria de Acções Especiais de Longo Prazo – englobando o Núcleo de Assuntos Estratégicos (NAE) e o Instituto de Pesquisa Económica Aplicada (Ipea) – à frente da qual está Roberto Mangabeira Unger, conhecido professor de Direito na Universidade de Harvard, que defende formas alternativas de globalização – designadamente a reorientação do regime internacional do comércio e a reorganização das instituições multilaterais do sistema Bretton Woods – e o entendimento do Brasil com as potências emergentes (China, Rússia e Índia) o qual permitirá que, a pouco e pouco, se transforme a natureza da hegemonia norte-americana. Ideias que vão no sentido de criar uma forma de globalização mais propícia ao pluralismo. Mangabeira Unger sustenta que a energia para lutar por essa reconstrução do regime global tem de vir da tentativa de reorientar os projectos nacionais, pelo que, somente quando se tenta desenvolver um projecto nacional alternativo ao projecto neoliberal se torna possível levar adiante a ideia de mudar as regras do actual sistema global[31].Acima de tudo, a dificuldade em obter a reciprocidade nas relações internacionais tem justificado a aposta brasileira na aproximação aos países emergentes consubstanciada nas coligações anti-hegemónicas que têm nascido sob sua liderança, desde a reunião de Cancun, em 2003, no âmbito da Ronda de Doha da OMC.Desde logo, ressalta o G20, grupo de países composto pelos de maior peso da América do Sul, da África e da Ásia, liderado pelo Brasil.Igualmente liderado pela diplomacia brasileira surge, também desde 2003, a articulação com a Índia e a África do Sul. Efectivamente, tem havido avanços significativos no relacionamento Brasil-Índia-Áfica do Sul, reunindo-se os três em Brasília, em 2003, para dar continuidade à aliança ensaiada no caso do contencioso das patentes. Nessa reunião, foi estabelecida uma aliança permanente entre os três, o Fórum de Diálogo G3-Ibas, visando fortalecer a capacidade dos três países nas negociações internacionais, lutar pela reforma das Nações Unidas e promover a cooperação técnica[32].De ressaltar, também, a assinatura, no mesmo ano, do Acordo Mercosul-Índia e, em 2005, de um acordo preferencial entre ambas as partes, bem como a articulação do Brasil com o Japão, a Alemanha e a Índia no âmbito do G4, visando fazer uma frente comum para negociar com os EUA e a União Europeia uma saída para a ronda de Doha da OMC.Ainda que o comércio Mercosul-África Austral seja reduzido – tendo vindo, todavia, a experimentar um aumento desde 2001 – foi também assinado, em 2005, um acordo preferencial entre as duas regiões[33].Nas negociações sobre o meio ambiente, o Brasil e a Índia iniciaram um diálogo no sentido de virem a estabelecer um protocolo favorável aos países em desenvolvimento[34].A parceria Brasil-China também tem vindo a conhecer alguns avanços, tendo sido assinados diversos protocolos de cooperação nas áreas económica e tecnológica, em 2004, na sequência da visita, ao Brasil, do vice-primeiro-ministro chinês. Foi estabelecida, por esta ocasião, uma Comissão de Concertação e Cooperação Bilateral e foram iniciados estudos para a assinatura de um acordo de livre comércio Mercosul-China – obstado pelo Paraguai, que mantém relações diplomáticas com Taiwan.Daqui advém o papel do Brasil como actor global da sociedade internacional. A sua capacidade de influenciar o comércio internacional patenteia-se por meio do G20[35]; a sua capacidade para influir sobre a segurança internacional torna-se evidente no G4[36]; a sua capacidade de fomentar a cooperação Sul-Sul entre os países emergentes surge evidente no G3-Ibas[37], a associação das três maiores democracias do Sul, destinada a promover a cooperação e o desenvolvimento. Ademais, o Brasil tem defendido o alargamento do G8 de modo a inclui-lo a ele e bem ainda a Rússia, a China, a Índia e o México[38].Na realidade, e como tem sido defendido neste paper, os BRIC têm vindo a estabelecer relações entre si, especialmente em matéria de cooperação e questões económicas. Mas é de fundamental importância observar que, paralelamente a estes esforços, os BRIC venham, já, a estabelecer contactos entre si ao mais alto nível, através de cimeiras que têm realizado. Assim, ocorreu, em Moscovo, em Maio de 2008, a primeira reunião formal entre os Quatro, visando criar as condições de coordenação quadrilateral que lhes permita adquirir peso e relevância nas decisões internacionais e, simultaneamente, contribuir para a estruturação de um sistema internacional democrático e multilateral, fundado sobre o direito.Em Junho de 2009, os líderes dos Quatro voltaram a encontrar-se, em Yekaterinburg, cidade da Rússia Central, onde assinaram uma Declaração Conjunta clarificando as visões dos BRIC relativamente às questões internacionais, e tendo, ainda, assinado um acordo sobre a segurança alimentar global[39], sendo que, no âmbito das cimeiras anuais que estes países têm procurado estabelecer entre si, o Brasil será o anfitrião da de 2010.Não obstante estes encontros, a institucionalização dos BRIC, como grupo formalmente existente de cooperação Sul-Sul, surge ainda ténue no horizonte próximo da sociedade internacional. Não é impossível que tal venha a ocorrer, muito menos improvável, apenas distante ainda.Essencialmente porque, de um modo geral, os BRIC funcionam de forma muito pragmática, tendo a economia como vector fundamental em torno do qual guiam a sua política externa. Alcançando o poder económico que lhes permite actuar na política internacional, é através dele que, também de modo pragmático, administram as fricções na sociedade internacional global, numa lógica que busca, na cooperação, a melhor maneira de potencializar esse poder[40].Seguindo esse pragmatismo, as relações entre os BRIC centram-se eminentemente no domínio económico. É neste vector que tais relações ocorrem, assim como é neste vector que se processa o entendimento entre estes actores das relações internacionais, até porque o entrecruzamento dos interesses aconselha ao relacionamento próximo, em nome da satisfação dos interesses nacionais de cada parte. Em níveis que ultrapassam o económico, o acordo não se regista e, por conseguinte, o estabelecimento de relações surge difícil[41].Afinal de contas, os Quatro divergem em quase todos os temas importantes da agenda multilateral. A Rússia não é membro da OMC e a sua importância no cenário internacional advém, praticamente, dos preços recordes do petróleo e do gás, bem como das ogivas nucleares do país, o que cria alguns entraves à previsão do que poderá vir a ser a Rússia de Medvedev e Putin em 2050. A Índia, por seu lado, crê-se que virá a tornar-se numa das principais bases industriais e tecnológicas do mundo, enquanto a China dividirá, com os Estados Unidos, o primeiro lugar no ranking das maiores economias do mundo em 2050, afirmando-se como base industrial, base tecnológica e potência militar. Ao Brasil cabe o destino de tornar-se o maior fornecedor de proteína animal e vegetal, açúcar, etanol e alimentos. Mas o caminho até alcançarem este patamar é longo e tortuoso. Os sistemas políticos terão de ser adaptados, as reservas de água controladas e o problema da poluição ultrapassado através da adopção das políticas correctas, designadamente em matéria de infra-estrutura, sistema tributário e sistema trabalhista.Por outro lado, é evidente que existem riscos associados à oferta, pela banca, de uma vasta carteira de investimentos nos mercados dos BRIC. Riscos esses que se prendem, especialmente, com a volatilidade desses mercados, que associada, muitas vezes, à instabilidade das respectivas sociedades, gera insegurança nos investidores. Sabe-se, todavia, que os mercados de investimento de risco são, também, os mais apetecíveis, dadas as possibilidades de retorno que apresentam. Os riscos não parecem, pois, pôr em causa os fluxos de investimento directo estrangeiro nos BRIC. Embora existam, de facto. Assim como, além da volatilidade dos respectivos mercados e da instabilidade das respectivas sociedades, não são de esquecer as vulnerabilidades acrescidas em função da dificuldade em transformarem o crescimento económico num efectivo desenvolvimento económico que abranja níveis elevados de investimento em IDT.Os próprios problemas actuais relativos à energia, ao ambiente e à tecnologia demonstram, sem grande margem para erro, que os BRIC não têm, ainda, desenvolvido todos os esforços necessários nessas matérias. Embora muito venha sendo feito, de há uns anos a esta parte, a verdade é que muito tem, ainda, de ser feito, para que se evitem as constantes crises energéticas, para que se alcance o desenvolvimento ambientalmente sustentável e para que os BRIC consigam, efectivamente, alcançar o patamar tecnológico que lhes confira a independência relativamente aos países ricos. Dependência que ainda possuem, tanto em matéria tecnológica, quanto ambiental, quanto, mesmo, energética (porque não chega ter as fontes de energia; é necessário ter, também, a tecnologia que permita trabalhar essas fontes).Por estas razões, para já, é difícil acreditar que os BRIC consigam institucionalizar algum tipo de aliança ou algo que os aproxime que não seja o pragmatismo na actuação económica no sistema internacional.Para que isso possa ocorrer, políticos, governantes e empresários deverão apostar no desenvolvimento sustentável, de modo que o crescimento económico seja, efectivamente, seguido do desenvolvimento económico que trará sustentabilidade àquele crescimento. Deverão, sobretudo, apostar na investigação e desenvolvimento tecnológico e na qualificação da mão-de-obra, para que as altas taxas de crescimento económico se reflictam numa maior margem de actuação internacional, independente, pois, da boa vontade dos países ricos.Neste sentido, não tem havido avanços, nas relações entre o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul em matérias distintas da económica, designadamente do ponto de vista da segurança internacional – com cada país a actuar de modo independente dos restantes – o que impõe sérios limites à consideração de uma influência geopolítica e geoestratégica destes países na sociedade internacional.De facto, a verdade é que, não obstante os discursos e os mecanismos diplomáticos já estabelecidos, a inserção internacional da Rússia não se compatibiliza com as características da inserção internacional do Brasil, da Índia e da África do Sul, em função de quatro aspectos essenciais:Do seu poder militarDa sua localização geográficaDo relacionamento que mantém com os seus vizinhos eDa interacção que a Rússia mantém com os EUA e a EU – interacção que assenta em bases muito distintas daquela que é levada a efeito pelo Brasil, pela Índia e pela África do Sul.Vale lembrar, igualmente, que também a China tem padrões diferentes de inserção internacional, especialmente – tal como a Rússia – em matéria de segurança internacional.É verdade que os esforços de relacionamento entre os BRIC e a África do Sul mantêm-se, mas os progressos acabam por ser, hoje, ainda muito incipientes, especialmente em função das enormes diferenças existentes entre estes países, que fazem com que os interesses nem sempre sejam coincidentes. Se eles o são em matéria económica, em tudo o resto divergem.Enquanto o Brasil é uma democracia consolidada, a China não o é claramente, apesar de ser uma economia de mercado; enquanto a Rússia, uma democracia afirmada em termos constitucionais, deixa muito a desejar neste ponto, com Putin a perpetuar-se no poder, de onde dificilmente sairá. Ademais, a Índia possui problemas de insurgência interna, conflitos étnicos e religiosos, assim como vizinhos hostis, enquanto a Rússia, diferentemente dos restantes BRIC e África do Sul, não exporta mais do que petróleo, gás natural e armamento[42].Mesmo em termos económicos, não será displicente notar que existem diferenças significativas em termos de desempenho económico entre os BRIC mais a África do Sul, já que a China e a Índia têm recebido especial atenção no período mais recente em razão das suas excepcionais taxas de crescimento económico, que diferem muito quando comparadas com as do Brasil, da Rússia e da África do Sul, tomando-se como referência o período pós-década de 1990[43].Ademais, se é verdade que a análise das variantes económicas destes países aponta para dois denominadores comuns – a taxa de investimento e a taxa de inflação – que têm impulsionado o crescimento económico destes países, não é menos verdade que outros factores – ainda que com uma contribuição menos importante em termos relativos – têm impulsionado estas economias de modo distinto. No Brasil, na Índia e na África do Sul destacam-se a taxa de juros real, enquanto, na China e na Índia assume importância a taxa de câmbio real efectiva. Já os fluxos de IDE são particularmente relevantes na China e na África do Sul, e o crescimento populacional na Índia e na Rússia[44].
O primeiro blog português sobre a América Latina: A Universidade portuguesa a pensar a América Latina, por Raquel Patrício, Doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília, Prof. Auxiliar do ISCSP/UTL
Thursday, May 6, 2010
A RELEVÂNCIA DOS BRIC EM ANÁLISE
Durante a década de 1970, um grupo de países apresentou um acelerado crescimento industrial que os levou a buscar a liderança nos respectivos espaços regionais e, também, ao nível do espaço internacional, reivindicando novas fórmulas para o ordenamento da sociedade internacional[1]. Foi então que a cooperação Sul-Sul entrou na agenda das políticas externas, tanto por parte dos Estados system affecting[2], como dos países já então identificados como grandes mercados emergentes[3].Esta evolução acelerou-se no final dos anos 1990 e, particularmente, no início do século XXI, quando estes grandes mercados emergentes, como o Brasil, a Rússia, a Índia e a China, passaram a ser identificados através do acrónimo BRIC.Fala-se muito, hoje em dia, especialmente na comunicação social brasileira, relativamente na chinesa e na indiana, e praticamente nada na russa, dos BRIC. Acrónimo lançado por Jim O`Neill, economista do grupo norte-americano Goldman Sachs, em 2001[4], BRIC refere-se, sugestivamente, ao Brasil, à Rússia, à Índia e à China, no sentido de chamar a atenção para esses países, considerados emergentes, porque as respectivas economias têm alcançado tal nível de crescimento nos últimos anos que, em 2050, superarão o grupo de países desenvolvidos que formam o G6 (EUA, Japão, Alemanha, Grã-Bretanha, França e Itália, nesta ordem)[5].Assim, após o 11 de Setembro de 2001, em função da ameaça de instabilidade económica, Jim O`Neill lançou o acrónimo BRIC como alternativa de mercado. A Goldman Sachs, que já vinha estudando os mercados emergentes desde a década de 1980, lançou o termo BRIC a 30 de Novembro de 2001[6], como resposta ao 11 de Setembro, com receio de um crash bolsista. Em 2003, lançaria a tese do Dreaming With the BRICs[7], já que, do ponto de vista de quem investe, o deadline de 2003 a 2050 confere segurança e confiança, particularmente relevantes na era de insegurança e pouco ganho que se seguiu aos ataques terroristas. Para Dominic Wilson e Roop Purushothaman, “the BRICs economies could become a much larger force in the world economy. We map out GDP growth, income per capita and currency movements in the BRICs economies until 2005”[8]. A partir da previsão assim elaborada, a Goldman Sachs investiu agressivamente nestes mercados emergentes, sendo de salientar que, tendo em conta possíveis distúrbios nestas economias, lançou, depois, em conjunto com o mercado, derivações interessantes desse acrónimo, surgindo, assim, os BRICS (BRIC + África do Sul); BRICM (BRIC + México) e BRICSAM (BRIC + África do Sul + México + ASEAN), no sentido de serem apresentadas outras carteiras de investimento para além dos BRIC originais.Não obstante estas derivações, que acrescentam, aos BRIC inicialmente enunciados por O`Neill, outros países, a verdade é que são o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul as economias emergentes que mais se destacam, não só pela importância que estas economias têm revelado no comércio mundial e na atracção de fluxos de investimento, como também em função da posição relativa que as mesmas ocupam no conjunto das chamadas economias emergentes[9], especialmente em função do crescimento do PIB, da renda per capita e dos movimentos comerciais e financeiros.Na verdade, estas economias têm-se tornado alvo de crescente interesse, designadamente em termos das lições que podem vir a dar a outros países, mormente aos velhos poderes da sociedade internacional, graças ao seu actual desempenho económico e do potencial que estes países apresentam para tornarem-se os principais impulsores do crescimento da economia mundial[10].Estes países procuram desenvolver um comportamento internacional de natureza multifacetada, por forma a beneficiar das oportunidades oferecidas pelo sistema internacional, no sentido de remodelá-lo para beneficiar os países do Sul, permitindo-lhes actuar, nos respectivos contextos internacionais, com base numa perspectiva de hegemonia[11].É bem verdade que estes países emergentes actuam em relativa consonância no domínio económico, mas nos restantes assuntos internacionais, designadamente no que à segurança internacional diz respeito, a sua influência na sociedade internacional é nula, já que não existem interesses comuns entre esses países do ponto de vista securitário. A sua relevância na sociedade internacional advém, desta forma, não de um verdadeiro peso geopolítico e geoestratégico, mas de uma importância geoeconómica crescente – o que, em abono da verdade, poderá vir a conceder-lhes as tais importâncias geopolítica e geoestratégica. Que, para já, são reduzidas. Ademais, embora a própria existência destes países lhes confira um peso crescente em matéria de constrangimento sobre os restantes países da sociedade internacional, o que, por si só, já é uma arma poderosa[12], esse peso geoconómico não lhes garante, em termos absolutos, a sua segurança internacional.Para que exista uma visão coincidente da segurança e da defesa entre o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul, no cenário internacional, é necessário que existam pontos de contacto em matéria de interpretação e avaliação da missão que estes países têm através das respectivas políticas de segurança e defesa; de explicitação e análise das ameaças que sobre eles pesam ou pesarão; dos meios que possuem para a defesa (disponíveis ou mobilizáveis); e da escolha de uma estratégia para a defesa de todos e dos espaços comuns de interesses[13]. O que, para já, não existe, não apenas em função da não coincidência entre os regimes políticos (especialmente porque nem todos são democracias) e entre as próprias organizações internas destes países, como também, e fundamentalmente, em função dos diferentes modos de inserção internacional que estes países têm levado a efeito após a década de 1990 (e mesmo antes). Assim, se a Rússia está mais voltada para a União Europeia e para os EUA, a China para o espaço euro-asiático, a Índia comprometida, essencialmente, com os seus problemas internos (referentes aos conflitos étnicos e religiosos) e externos (relativo à vizinhança hostil) e a África do Sul voltada para o espaço africano sub-saariano, é o Brasil aquele que mais tem levado a cabo uma inserção internacional multifacetada. A sua prioridade deixa de ser exclusivamente o espaço regional, designadamente o Cone Sul, onde ressalta o Mercosul e, particularmente, as relações em eixo com a Argentina[14], e passa a agregar, a essa prioridade, o estabelecimento de alianças e parcerias com os restantes emergentes, no sentido de alcançar mais-valias que o elevem a potência mundial, sua ambição mais premente na actualidade.Assim, embora o Brasil seja, dos BRIC, aquele que menos sucessos apresenta em termos económicos, o que tem levado o próprio presidente Lula a falar em “colocar um B em BRIC”[15], seguido de análises de especialistas da The Economist, a verdade é que é o Brasil o emergente que mais tem patrocinado o estabelecimento de ligações/relações entre os BRIC e a África do Sul, procurando conformar a sociedade internacional a uma ordem não polar[16] pós-americana[17]. Neste sentido, tem sido a política externa brasileira, a partir do início dos anos 1990, a liderar o engajamento dos países emergentes uns com os outros, o que justifica que se saliente a posição dessa política externa no enquadramento do relacionamento entre o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul. Até porque o Brasil tem interesses específicos em ligar-se aos restantes BRIC, potenciando a economia e o investimento nesses países, porque a globalização dos mercados, ao transformar o mundo numa pequena aldeia global, determina a rápida repercussão dos fenómenos. Desta forma, a capitalização da economia e do investimento na Rússia, na Índia e na China, por parte do Brasil, terá, certamente, efeitos benéficos para a economia brasileira, em pleno momento de expansão, pese embora a crise financeira internacional despoletada em meados de 2007, nos EUA, a propósito do subprime.De facto, embora o Brasil tenha historicamente actuado nos fora multilaterais terceiro-mundistas, é a partir de 1993, com a ascensão de Itamar Franco à Presidência da República, que o país começou a buscar um tipo novo de cooperação Sul-Sul, no contexto de uma ordem internacional caracterizada “por acções mais isoladas da dimensão Norte-Sul ou pela volatilidade das alianças organizadas na defesa de temas específicos”[18]. Sendo o Brasil apoiado pelos restantes BRIC, pela África do Sul e, até, pelo México; países que têm estabelecido, entre si, novos fora de debate e coordenação económico/política, dando corpo a uma cooperação Sul-Sul que influencia, cada vez mais, a sociedade internacional. Assim, partindo do denominador comum do crescimento económico acelerado, adquirem, hoje, uma importante relevância do ponto de vista geoeconómico.As semelhanças das dimensões geopolíticas e geoeconómicas referentes ao território, à reconhecida importância regional, à população, ao PIB, aos recursos naturais – ainda que aqui não entre o tipo de regime democrático, para muitos um destes vectores, por, de facto, nem todos os BRICS serem democráticos – têm sido as bases sobre as quais tem assentado a cooperação entre estes países, formando-se, mesmo, parcerias estratégicas.É evidente que existem experiências de actuações conjuntas dos países do Sul em termos históricos, sendo de ressaltar a cooperação desenvolvida no âmbito do Grupo 77. Todavia, se nesta época existiam condicionalismos externos, sobretudo económicos, que limitavam o impacto da cooperação Sul-Sul na sociedade internacional, com o derrube do muro de Berlim e o fim do bipolarismo, estes países aumentaram a sua capacidade de negociação na esfera internacional[19], buscando, especialmente, uma cooperação internacional que lhes permita contrapor-se às acções unilaterais das grandes potências.Neste sentido, a política externa brasileira, a partir de 1993, fez da cooperação do país com potências médias de grande porte, com destaque para a China, a Índia, a África do Sul e a Rússia – embora esta não pertença ao que se entende por Sul – uma prática corrente e, mesmo, uma das prioridades da diplomacia brasileira. Afinal, foi a partir de 1993, com Itamar Franco, que a corrente autonomista do Itamaraty ocupou mais espaço nas concepções diplomáticas do Brasil. E, de acordo com esta visão, o país observou que as características semelhantes entre si e os restantes emergentes deveria ser capitalizada através do desenvolvimento de formas de cooperação entre si e esses países extra-regionais, com o firme objectivo de reordenar o sistema internacional. Se esta ideia ganhou força quando Fernando Henrique Cardoso, no final do seu segundo mandato, cunhou o termo globalização assimétrica[20], foi, de facto, com Lula, que ascendeu à Presidência da República em 2003, que o estabelecimento de fora extra-regionais e parcerias estratégicas com os emergentes se transformou numa opção relevante da política externa brasileira.Vale lembrar que, desde 1993, o Brasil buscou a aproximação com os países emergentes através de dois modelos distintos, porém complementares. Por um lado, esta cooperação foi levada a efeito através das negociações comerciais no âmbito do Mercosul, procurando o país assinar acordos comerciais entre o bloco e os restantes emergentes, tanto a nível individual como em grupo. Por outro lado, a diplomacia brasileira buscou aproximar-se desses países em termos individuais, país a país, tanto ao nível dos consensos na esfera mundial – saliente-se o caso das negociações no seio da OMC – tanto a nível bilateral, através do estabelecimento de parcerias estratégicas[21].Assim, em 1993, as relações entre o Brasil e a China assistiram a um incremento considerável, na sequência da visita do presidente Zemin ao Brasil, visando estabelecer uma parceria estratégica entre ambos os países nos sectores de infra-estruturas e tecnologia. Foram assinados, também, um protocolo de cooperação em pesquisa espacial e um acordo na área científica e tecnológica. Ademais, o encontro procurou também fortalecer a ligação dos dois países à Índia a partir da actuação de todos nos fora multilaterais no tratamento de temas de política e de comércio externo. Embora, na prática, estes esforços não se tenham traduzido num incremento significativo das relações Brasil-Índia naquele momento, eles serviram para lançar as bases nas quais assentam, hoje, essas relações.Também neste período se assistiu ao incremento das relações Brasil-África do Sul, em 1994, aquando do fim do apartheid, ainda que, neste período, com Itamar Franco, a nova etapa das relações bilaterais não tenha, tal como no caso da Índia, obtido grandes resultados práticos.Relativamente à Rússia, foi assinado, em 1994, um tratado de parceria que almejava estabelecer, entre ambos, uma parceria estratégica visando o encetamento de negociações para a formação de um organismo de consulta bilateral. O comércio entre ambos, porém, manteve-se muito reduzido.Quando Fernando Henrique Cardoso sucedeu a Itamar, em 1995, este ritmo de cooperação entre os países emergentes, liderado pelo Brasil, diminuiu de forma bastante premente, em função da predominância mundial das concepções neoliberais. Apenas as relações comerciais foram, de alguma forma, estimuladas, tendo sido assinados, em 1996, o Acordo de Pretória, entre o Brasil e a África do Sul, buscando iniciar as negociações comerciais entre o Mercosul e o gigante da África Austral e, em 2000, o acordo marco entre ambos, no sentido da criação de uma área de livre comércio.Em relação à China, no início dos anos 1990, o mercado deste país passou a ocupar a terceira posição como destino das importações brasileiras, tendo sido apresentado, pela diplomacia brasileira, um estudo preparatório sobre a viabilidade em estabelecer-se, entre a China e o Mercosul, um acordo de livre comércio, embora não tenham sido levados adiante os esforços de criação de uma parceria estratégica entre ambos os países[22].Com a Rússia, as negociações comerciais não prosperaram[23]. Ainda que, a partir de 1995, o comércio bilateral tenha tido um crescimento relativo, a diversificação dos produtos exportados manteve-se reduzida. Até porque os maiores avanços nas relações bilaterais foram levados a efeito no âmbito político e da cooperação[24]. Em 1997, todavia, na sequência da visita do então ministro russo dos Negócios Estrangeiros, Primakov, ao Brasil e, depois, em 2000, da visita do então vice-presidente brasileiro Marco Maciel, foram assinados acordos de cooperação nas áreas da educação, cultura, ciência, tecnologia e investigações sobre o espaço exterior, bem como a Declaração Conjunta de Criação da Comissão de Alto Nível, que começou a funcionar em 2000.No final do mandato de FHC, o Brasil formou uma aliança com a África do Sul e a Índia em matéria de propriedade intelectual na área farmacêutica. Isto sucedeu na sequência do contencioso das patentes que o Brasil e a África do Sul levaram adiante contra os EUA, na defesa da possibilidade dos dois países incentivarem a produção interna de medicamentos contra a SIDA a custos mais reduzidos. Foi muito importante a associação da Índia a estas questões, em função da fase de transição do Acordo TRIPS, estabelecido no âmbito da OMC, o qual produzia benefícios na produção e venda de medicamentos similares aos das indústrias norte-americanas a custos mais reduzidos[25]. Assim, a aliança Brasil-África do Sul conseguiu arregimentar outros países africanos e os dois puderam passar a comprar o coquetel anti-SIDA ao governo indiano – uma experiência de sucesso que serviu de modelo de cooperação no âmbito da cooperação Sul-Sul frente a um tema multilateral, embora não tenha produzido consequências até ao momento.A conjuntura internacional pós-11 de Setembro de 2001, já no final na gestão de FHC, obrigou a diplomacia brasileira a repensar a inserção internacional do Brasil, concluindo pela necessidade de reforçar a vertente multilateral e a aproximação aos países emergentes. Até porque, em Novembro desse mesmo ano, era lançada a tese dos BRIC, pelo economista norte-americano Jim O`Neill, do grupo Goldman Sachs.Iniciando uma inserção internacional assente no reforço da corrente autonomista do Itamaraty, o governo Lula procurou, para o Brasil, um modelo de inserção na sociedade internacional que apela à “inserção periférica dos países em desenvolvimento”[26] – o que tem sido chamado, por Amado Cervo, da Escola de Brasília, de inserção logística[27], uma inserção que faz a síntese entre os aspectos positivos do Desenvolvimentismo e do Neoliberalismo, numa espécie de convivência entre o estruturalismo latino-americano de base marxista e o capitalismo ocidental.Neste sentido, o Brasil, além de ter introduzido, na sua agenda de política externa, os temas do papel das Nações Unidas, dos princípios do multilateralismo, do Direito Internacional, das preocupações com a segurança regional e internacional, do combate ao terrorismo e ao narcotráfico, da busca de um comércio mais fortalecido e não discriminatório, da protecção ambiental e das fórmulas para ultrapassar a pobreza, buscou também dar um novo peso à cooperação Sul-Sul[28], por forma a consolidar um multilateralismo mais favorável a estes países, bem como recolocar a divisão Norte-Sul no centro da política internacional[29].De facto, a política externa brasileira tem tentado conformar a ordem internacional à filosofia política de equalizar os benefícios, nas relações internacionais, entre os países ricos e os emergentes ou, por outras palavras, obter a reciprocidade nas relações internacionais, na tentativa de ultrapassar o que Fernando Henrique Cardoso, quando se tornou céptico quanto à sociedade internacional conformada ao neoliberalismo, chamou de globalização assimétrica[30].Tem sido, contudo, difícil obter a reciprocidade real entre países capitalistas e emergentes, o que tem levado o Brasil a voltar-se, cada vez mais, para outros espaços de actuação. Reflectindo sobre os vectores económico, social, político e agrícola (sendo o Brasil, de todos os BRIC, o maior mercado agrícola), o Brasil tem, através de sistemas de rede montados com as universidades, as empresas e os centros de estudo, estruturado pontos de contacto e ligações com os restantes países emergentes. O Brasil congregou a Índia e a China, já pensando nas potencialidades dos minérios; congregou a África do Sul, em função da dinâmica económica sul-africana e da sua rede de influências; e tem-se ligado aos melhores académicos russos, indianos e chineses, para além de ter criado a Secretaria de Acções Especiais de Longo Prazo – englobando o Núcleo de Assuntos Estratégicos (NAE) e o Instituto de Pesquisa Económica Aplicada (Ipea) – à frente da qual está Roberto Mangabeira Unger, conhecido professor de Direito na Universidade de Harvard, que defende formas alternativas de globalização – designadamente a reorientação do regime internacional do comércio e a reorganização das instituições multilaterais do sistema Bretton Woods – e o entendimento do Brasil com as potências emergentes (China, Rússia e Índia) o qual permitirá que, a pouco e pouco, se transforme a natureza da hegemonia norte-americana. Ideias que vão no sentido de criar uma forma de globalização mais propícia ao pluralismo. Mangabeira Unger sustenta que a energia para lutar por essa reconstrução do regime global tem de vir da tentativa de reorientar os projectos nacionais, pelo que, somente quando se tenta desenvolver um projecto nacional alternativo ao projecto neoliberal se torna possível levar adiante a ideia de mudar as regras do actual sistema global[31].Acima de tudo, a dificuldade em obter a reciprocidade nas relações internacionais tem justificado a aposta brasileira na aproximação aos países emergentes consubstanciada nas coligações anti-hegemónicas que têm nascido sob sua liderança, desde a reunião de Cancun, em 2003, no âmbito da Ronda de Doha da OMC.Desde logo, ressalta o G20, grupo de países composto pelos de maior peso da América do Sul, da África e da Ásia, liderado pelo Brasil.Igualmente liderado pela diplomacia brasileira surge, também desde 2003, a articulação com a Índia e a África do Sul. Efectivamente, tem havido avanços significativos no relacionamento Brasil-Índia-Áfica do Sul, reunindo-se os três em Brasília, em 2003, para dar continuidade à aliança ensaiada no caso do contencioso das patentes. Nessa reunião, foi estabelecida uma aliança permanente entre os três, o Fórum de Diálogo G3-Ibas, visando fortalecer a capacidade dos três países nas negociações internacionais, lutar pela reforma das Nações Unidas e promover a cooperação técnica[32].De ressaltar, também, a assinatura, no mesmo ano, do Acordo Mercosul-Índia e, em 2005, de um acordo preferencial entre ambas as partes, bem como a articulação do Brasil com o Japão, a Alemanha e a Índia no âmbito do G4, visando fazer uma frente comum para negociar com os EUA e a União Europeia uma saída para a ronda de Doha da OMC.Ainda que o comércio Mercosul-África Austral seja reduzido – tendo vindo, todavia, a experimentar um aumento desde 2001 – foi também assinado, em 2005, um acordo preferencial entre as duas regiões[33].Nas negociações sobre o meio ambiente, o Brasil e a Índia iniciaram um diálogo no sentido de virem a estabelecer um protocolo favorável aos países em desenvolvimento[34].A parceria Brasil-China também tem vindo a conhecer alguns avanços, tendo sido assinados diversos protocolos de cooperação nas áreas económica e tecnológica, em 2004, na sequência da visita, ao Brasil, do vice-primeiro-ministro chinês. Foi estabelecida, por esta ocasião, uma Comissão de Concertação e Cooperação Bilateral e foram iniciados estudos para a assinatura de um acordo de livre comércio Mercosul-China – obstado pelo Paraguai, que mantém relações diplomáticas com Taiwan.Daqui advém o papel do Brasil como actor global da sociedade internacional. A sua capacidade de influenciar o comércio internacional patenteia-se por meio do G20[35]; a sua capacidade para influir sobre a segurança internacional torna-se evidente no G4[36]; a sua capacidade de fomentar a cooperação Sul-Sul entre os países emergentes surge evidente no G3-Ibas[37], a associação das três maiores democracias do Sul, destinada a promover a cooperação e o desenvolvimento. Ademais, o Brasil tem defendido o alargamento do G8 de modo a inclui-lo a ele e bem ainda a Rússia, a China, a Índia e o México[38].Na realidade, e como tem sido defendido neste paper, os BRIC têm vindo a estabelecer relações entre si, especialmente em matéria de cooperação e questões económicas. Mas é de fundamental importância observar que, paralelamente a estes esforços, os BRIC venham, já, a estabelecer contactos entre si ao mais alto nível, através de cimeiras que têm realizado. Assim, ocorreu, em Moscovo, em Maio de 2008, a primeira reunião formal entre os Quatro, visando criar as condições de coordenação quadrilateral que lhes permita adquirir peso e relevância nas decisões internacionais e, simultaneamente, contribuir para a estruturação de um sistema internacional democrático e multilateral, fundado sobre o direito.Em Junho de 2009, os líderes dos Quatro voltaram a encontrar-se, em Yekaterinburg, cidade da Rússia Central, onde assinaram uma Declaração Conjunta clarificando as visões dos BRIC relativamente às questões internacionais, e tendo, ainda, assinado um acordo sobre a segurança alimentar global[39], sendo que, no âmbito das cimeiras anuais que estes países têm procurado estabelecer entre si, o Brasil será o anfitrião da de 2010.Não obstante estes encontros, a institucionalização dos BRIC, como grupo formalmente existente de cooperação Sul-Sul, surge ainda ténue no horizonte próximo da sociedade internacional. Não é impossível que tal venha a ocorrer, muito menos improvável, apenas distante ainda.Essencialmente porque, de um modo geral, os BRIC funcionam de forma muito pragmática, tendo a economia como vector fundamental em torno do qual guiam a sua política externa. Alcançando o poder económico que lhes permite actuar na política internacional, é através dele que, também de modo pragmático, administram as fricções na sociedade internacional global, numa lógica que busca, na cooperação, a melhor maneira de potencializar esse poder[40].Seguindo esse pragmatismo, as relações entre os BRIC centram-se eminentemente no domínio económico. É neste vector que tais relações ocorrem, assim como é neste vector que se processa o entendimento entre estes actores das relações internacionais, até porque o entrecruzamento dos interesses aconselha ao relacionamento próximo, em nome da satisfação dos interesses nacionais de cada parte. Em níveis que ultrapassam o económico, o acordo não se regista e, por conseguinte, o estabelecimento de relações surge difícil[41].Afinal de contas, os Quatro divergem em quase todos os temas importantes da agenda multilateral. A Rússia não é membro da OMC e a sua importância no cenário internacional advém, praticamente, dos preços recordes do petróleo e do gás, bem como das ogivas nucleares do país, o que cria alguns entraves à previsão do que poderá vir a ser a Rússia de Medvedev e Putin em 2050. A Índia, por seu lado, crê-se que virá a tornar-se numa das principais bases industriais e tecnológicas do mundo, enquanto a China dividirá, com os Estados Unidos, o primeiro lugar no ranking das maiores economias do mundo em 2050, afirmando-se como base industrial, base tecnológica e potência militar. Ao Brasil cabe o destino de tornar-se o maior fornecedor de proteína animal e vegetal, açúcar, etanol e alimentos. Mas o caminho até alcançarem este patamar é longo e tortuoso. Os sistemas políticos terão de ser adaptados, as reservas de água controladas e o problema da poluição ultrapassado através da adopção das políticas correctas, designadamente em matéria de infra-estrutura, sistema tributário e sistema trabalhista.Por outro lado, é evidente que existem riscos associados à oferta, pela banca, de uma vasta carteira de investimentos nos mercados dos BRIC. Riscos esses que se prendem, especialmente, com a volatilidade desses mercados, que associada, muitas vezes, à instabilidade das respectivas sociedades, gera insegurança nos investidores. Sabe-se, todavia, que os mercados de investimento de risco são, também, os mais apetecíveis, dadas as possibilidades de retorno que apresentam. Os riscos não parecem, pois, pôr em causa os fluxos de investimento directo estrangeiro nos BRIC. Embora existam, de facto. Assim como, além da volatilidade dos respectivos mercados e da instabilidade das respectivas sociedades, não são de esquecer as vulnerabilidades acrescidas em função da dificuldade em transformarem o crescimento económico num efectivo desenvolvimento económico que abranja níveis elevados de investimento em IDT.Os próprios problemas actuais relativos à energia, ao ambiente e à tecnologia demonstram, sem grande margem para erro, que os BRIC não têm, ainda, desenvolvido todos os esforços necessários nessas matérias. Embora muito venha sendo feito, de há uns anos a esta parte, a verdade é que muito tem, ainda, de ser feito, para que se evitem as constantes crises energéticas, para que se alcance o desenvolvimento ambientalmente sustentável e para que os BRIC consigam, efectivamente, alcançar o patamar tecnológico que lhes confira a independência relativamente aos países ricos. Dependência que ainda possuem, tanto em matéria tecnológica, quanto ambiental, quanto, mesmo, energética (porque não chega ter as fontes de energia; é necessário ter, também, a tecnologia que permita trabalhar essas fontes).Por estas razões, para já, é difícil acreditar que os BRIC consigam institucionalizar algum tipo de aliança ou algo que os aproxime que não seja o pragmatismo na actuação económica no sistema internacional.Para que isso possa ocorrer, políticos, governantes e empresários deverão apostar no desenvolvimento sustentável, de modo que o crescimento económico seja, efectivamente, seguido do desenvolvimento económico que trará sustentabilidade àquele crescimento. Deverão, sobretudo, apostar na investigação e desenvolvimento tecnológico e na qualificação da mão-de-obra, para que as altas taxas de crescimento económico se reflictam numa maior margem de actuação internacional, independente, pois, da boa vontade dos países ricos.Neste sentido, não tem havido avanços, nas relações entre o Brasil, a Rússia, a Índia, a China e a África do Sul em matérias distintas da económica, designadamente do ponto de vista da segurança internacional – com cada país a actuar de modo independente dos restantes – o que impõe sérios limites à consideração de uma influência geopolítica e geoestratégica destes países na sociedade internacional.De facto, a verdade é que, não obstante os discursos e os mecanismos diplomáticos já estabelecidos, a inserção internacional da Rússia não se compatibiliza com as características da inserção internacional do Brasil, da Índia e da África do Sul, em função de quatro aspectos essenciais:Do seu poder militarDa sua localização geográficaDo relacionamento que mantém com os seus vizinhos eDa interacção que a Rússia mantém com os EUA e a EU – interacção que assenta em bases muito distintas daquela que é levada a efeito pelo Brasil, pela Índia e pela África do Sul.Vale lembrar, igualmente, que também a China tem padrões diferentes de inserção internacional, especialmente – tal como a Rússia – em matéria de segurança internacional.É verdade que os esforços de relacionamento entre os BRIC e a África do Sul mantêm-se, mas os progressos acabam por ser, hoje, ainda muito incipientes, especialmente em função das enormes diferenças existentes entre estes países, que fazem com que os interesses nem sempre sejam coincidentes. Se eles o são em matéria económica, em tudo o resto divergem.Enquanto o Brasil é uma democracia consolidada, a China não o é claramente, apesar de ser uma economia de mercado; enquanto a Rússia, uma democracia afirmada em termos constitucionais, deixa muito a desejar neste ponto, com Putin a perpetuar-se no poder, de onde dificilmente sairá. Ademais, a Índia possui problemas de insurgência interna, conflitos étnicos e religiosos, assim como vizinhos hostis, enquanto a Rússia, diferentemente dos restantes BRIC e África do Sul, não exporta mais do que petróleo, gás natural e armamento[42].Mesmo em termos económicos, não será displicente notar que existem diferenças significativas em termos de desempenho económico entre os BRIC mais a África do Sul, já que a China e a Índia têm recebido especial atenção no período mais recente em razão das suas excepcionais taxas de crescimento económico, que diferem muito quando comparadas com as do Brasil, da Rússia e da África do Sul, tomando-se como referência o período pós-década de 1990[43].Ademais, se é verdade que a análise das variantes económicas destes países aponta para dois denominadores comuns – a taxa de investimento e a taxa de inflação – que têm impulsionado o crescimento económico destes países, não é menos verdade que outros factores – ainda que com uma contribuição menos importante em termos relativos – têm impulsionado estas economias de modo distinto. No Brasil, na Índia e na África do Sul destacam-se a taxa de juros real, enquanto, na China e na Índia assume importância a taxa de câmbio real efectiva. Já os fluxos de IDE são particularmente relevantes na China e na África do Sul, e o crescimento populacional na Índia e na Rússia[44].
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