Monday, December 21, 2009

O Brasil e a COP - 15 - Copenhaga, dezembro de 2009

O BRASIL E A COP – 15



A Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Alterações Climáticas, contando com 192 Estados, elaborada entre 7 e 18 de Dezembro de 2009, serviu de base à XV Conferência das Partes Sobre o Clima (COP – 15), com o objectivo de traçar um acordo final para definir as metas para a redução das emissões de gases de efeito de estufa após 2012 – data em que termina o primeiro período de compromisso do Protocolo de Quioto.
Por pressão dos países em desenvolvimento – ao lado dos quais o Brasil se colocou – os dois documentos-base das negociações foram o Protocolo de Quioto e o texto da LCA (Grupo de Acções de Longo Prazo, ligado à ONU).
O texto final da Cimeira do Clima, o Acordo de Copenhaga, apenas contou com a adesão de 26 países; o que, todavia, foi considerado muito bom pela delegação brasileira, em virtude desses 26 Estados abrangerem um grupo amplo de países, provenientes de várias regiões. Não apenas os mais importantes Estados-membros da União Europeia, como também nações africanas, o Japão, a Austrália, a Arábia Saudita e o Canadá concordaram com o acerto final iniciado com uma negociação entre os Estados Unidos e os países emergentes. Contrários ao acordo ficaram o Sudão e os países latino-americanos da ALBA (Venezuela, Equador, Cuba e Nicarágua) que, juntamente com a China, bloquearam o acordo de redução das emissões globais em 50% até 2050 e sobre a redução dessas emissões, em 80%, por parte dos países desenvolvidos. Ainda que, contraditoriamente, o ministro chinês dos Negócios Estrangeiros tenha qualificado o acordo de «importante e positivo», assegurando que a China continuará trabalhando com o resto da sociedade internacional para enfrentar os desafios colocados pelo aquecimento global.
Não obstante ter-se congratulado com o Acordo de Copenhaga, alcançado entre o Brasil, a China, a Índia, a África do Sul e os EUA – tendo-se o Brasil comprometido, em Copenhaga, a reduzir as emissões nacionais de gases de efeito de estufa entre 36,1% e 38,9% até 2020, sendo que tais metas serão transformadas em lei, para serem cumpridas nacionalmente, independentemente de governos – a verdade é que o Brasil ficou muito insatisfeito com a falta de metas no texto final da conferência, que encerrou oficialmente na tarde do dia 19 de Dezembro. O presidente Lula criticou, designadamente, a posição dos EUA na reunião, afirmando que o compromisso com a redução dos gases de efeito de estufa deve ser principalmente levado a cabo pelos países desenvolvidos, que historicamente emitiram mais e são mais responsáveis pelo aquecimento do planeta, lembrando que os EUA nunca ratificaram o Protocolo de Quioto. Lula foi ainda mais duro com Obama quando disse que o interesse norte-americano é congregar os países europeus e o Japão – signatários de Quioto – para terminar com o Protocolo, não deixando nada em seu lugar para não terem metas nem compromissos a honrar. Lula disse, ainda, que o Acordo de Copenhaga necessita de ser legitimado por todos e não apenas por 26 Estados, afirmando que, até ao próximo encontro, no México, um texto consensual deverá ser alcançado para que todos possam definir uma política mundial para o desaquecimento global.
Postura mais crítica foi adoptada pela Argentina, que culpou os países desenvolvidos pelo «fracasso» da COP – 15, que ficou, segundo o ministro argentino dos Negócios Estrangeiros, Jorge Taiana, muito aquém do esperado pela sociedade internacional em termos de metas para travar o aquecimento global.
A posição de força do Brasil em Copenhaga foi, todavia, criticada pelo espectro político nacional, na pessoa da dissidente petista Marina Silva, ministra do Meio Ambiente nos 6 primeiros anos de governo Lula. A senadora, do PV-AC, exigiu uma participação ainda mais activa do Brasil, declarando que o facto de a delegação brasileira ter sido liderada pela chefe da Casa Civil, candidata do PT às Presidenciais de 2010, Dilma Roussef, que «apagou» as actuações do ministro dos estrangeiros Celso Amorim e do ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, significou um acto de campanha eleitoral e não uma posição firme do Brasil em luta pelos interesses ambientais do planeta e dos países emergentes[1].
A senadora disse que o Brasil deveria comprometer-se com a criação de um fundo de ajuda para que os países pobres possam combater as alterações climáticas, propondo uma dotação de USD 1 bilião, o que foi desconsiderado por Roussef, não obstante o presidente Lula, no seu bombástico discurso de 18 de Dezembro, ter afirmado que o Brasil pode contribuir com recursos.
Efectivamente, no seu discurso inflamado, sincero e improvisado, de cerca de 10 minutos, aplaudido quatro vezes em Copenhaga, Lula disse que, embora os países desenvolvidos – que tiveram a sorte de se industrializar primeiro – tenham maiores responsabilidades no aquecimento global, não podem assumir todos os custos com a política mundial de redução das emissões de gases de efeito de estufa. É bem verdade que, como afirmou, quem tem mais necessita de garantir uma maior contribuição para proteger os mais necessitados, mas o Brasil, para as metas que estipulou, não carece de dinheiro externo, podendo mesmo vir a participar do financiamento mundial se todos se colocarem de acordo sobre uma proposta concreta e mundialmente aceite[2]. Mas para tanto, sublinhou, é necessário que todos, para além de terem concordado quanto a garantir as reduções globais em 12% até 2050, se empenhem na assumpção plena das suas responsabilidades para alcançar essa meta[3].
Não obstante a necessidade de repartir responsabilidades entre ricos e pobres, cabendo aos primeiros um papel mais activo, para Lula o que está causa não é apenas o clima, mas também discutir o desenvolvimento e as oportunidades para todos os países, chamando a atenção para que a intrusão dos países ricos sobre os pobres, designadamente através do FMI e do Banco Mundial, tem de ser alterada para o século XXI[4].

Para ver o discurso integral do presidente Lula, consultar http://buzzvolume.com/link/10201770/youtube-lula-e-aplaudido-4-vezes-em-copenhagen-18122009

[1] Uma pesquisa divulgada pelo instituto Vox Populi a 19 de Dezembro sobre as eleições de 2010 posiciona Marina Silva em quarto lugar da preferência dos eleitores, com 13% das intenções de voto. Em primeiro lugar, a pesquisa situa José Serra (do PSDB, com 39%), seguido por Dilma (com 18%) e Ciro Gomes (do PSB, com 17%).
[2] Discurso de Lula na COP – 15, a 18 de Dezembro de 2009, em Copenhaga.
[3] Cfr. Idem.
[4] Cfr. Idem.

Monday, December 14, 2009

III Curso de Especialização em Inserção Internacional e Política Externa do Brasil

UNIVERSIDADE TÉCNICA DE LISBOA
INSTITUTO SUPERIOR DE CIÊNCIAS SOCIAIS E POLÍTICAS

A INSERÇÃO INTERNACIONAL E A POLÍTICA EXTERNA DO BRASIL

3º CURSO DE ESPECIALIZAÇÃO

ANO LECTIVO 2009 - 2010

PROF. AUXILIAR DOUTORA RAQUEL PATRÍCIO

OBJECTIVOS:
A política externa brasileira esteve, durante muito tempo, reservada a certos segmentos da elite agrária e da incipiente burocracia, objectivando garantir a integridade territorial e a legitimidade das fronteiras. Com a Grande Depressão de 1929, chegou ao fim o provincianismo da oligarquia cafeeira e teve impulso a industrialização e a construção de um Estado moderno, com a consequente emergência de uma política externa mais activa, colocada ao serviço da industrialização desenvolvimentista. Os abalos da estrutura do sistema mundial provocados pelo fim da bipolaridade obrigaram o Brasil a procurar novas formas de inserção internacional diante da globalização. Ganha relevo, neste sentido, a aprendizagem da forma como o Brasil se insere hoje, e inseriu ontem, no sistema internacional, bem como da actuação com que, através de uma inteligente política externa, o Brasil tem alcançado os objectivos dessa inserção internacional. São estes, pois, os objectivos fundamentais do Curso, no âmbito da classificação do Brasil como um BRIC.

DESTINATÁRIOS:
O Curso destina-se a todos os interessados na aprendizagem das Relações Internacionais que pretendam adquirir uma formação avançada em matéria de inserção internacional e política externa brasileiras. O Curso destina-se, também, a todos os profissionais que necessitam desse conhecimento para tomar decisões no exercício das respectivas profissões.


FUNCIONAMENTO:
O Curso é composto por vinte horas lectivas, distribuídas por duas horas semanais, num total de dez semanas. As aulas serão leccionadas às Quartas-Feiras, em horário pós-laboral, das 18h00 às 20h00.

PLANO CURRICULAR:
Conceitos e Paradigmas
1.1. Brasil: Inserção Internacional e Política Externa – da Teoria à Prática
1.2. A Política Externa da Agro-Exportação
1.3. A Política Externa da Industrialização
1.4. A Política Externa Neoliberal
1.5. A Política Externa Logística

O Brasil Diante da Globalização
2.1. O Brasil e a ONU
2.2. O Brasil e a OMC
2.3. O Brasil e os Estados Unidos
2.4. O Brasil e a União Europeia
2.5. O Brasil e o Leste Europeu
2.6. O Brasil e os BRIC: Rússia, Índia, China
2.7. O Brasil e o Médio Oriente
2.8. O Brasil e a África Subsaariana
2.9. O Brasil e os Órgãos Multilaterais Globais
2.10. O Brasil e os Órgãos Multilaterais do Sistema Interamericano
2.11. O Brasil e a Integração Regional
2.12. O Brasil e as Relações Intersocietárias
2.12.1. Da Imigração à Emigração
2.12.2. O Turismo
2.12.3. A Cooperação Técnica e Científica

O Brasil e as Relações Regionais
3.1. O Brasil e os Vizinhos da América do Sul
3.2. As Relações em Eixo Argentino-Brasileiras

DURAÇÃO:
De 04 de Março de 2008 a 06 de Maio de 2010.

INSCRIÇÕES:
Inscrições abertas de 04 de Janeiro de 2010 a 03 de Março de 2010:
Na Secção Pedagógica do ISCSP, através do preenchimento da ficha de inscrição;
Por e-mail, fazendo o download da ficha de inscrição que consta do site do ISCSP/UTL e enviando-a para raquelpatricio@iscsp.utl.pt

CUSTO:
Custo total do Curso: € 300 (trezentos Euros), a dividir da seguinte forma:
€ 100 (cem Euros) no acto de inscrição;
€ 200 (duzentos Euros) a pagar no início das aulas.

DIPLOMA:
No final do Curso será passado um Diploma de Curso de Especialização com nota quantitativa numa escala de 0 a 20 valores. 5 ECTS

INFORMAÇÕES:
E-mail: raquelpatricio@iscsp.utl.pt

Thursday, December 3, 2009

A XIX Cimeira Ibero-Americana

XIX CIMEIRA IBERO-AMERICANA


Teve lugar, nos dias 30 de Novembro e 1 de Dezembro de 2009, no Estoril, a XIX Cimeira Ibero-Americana, que reuniu os dezanove países da América Latina, Portugal, Espanha e Andorra, sob o tema «A Inovação e o Conhecimento». Nem todos os países enviaram os respectivos chefes de Estado e de Governo – optando por delegações de nível inferior – sendo de realçar as ausências de Hugo Chávez (Venezuela), Evo Morales (Bolívia), Fernando Lugo (Paraguai), Tabaré Vasquez (Uruguai), Raul Castro (Cuba), Álvaro Colom (Guatemala) e Daniel Ortega (Nicarágua), tendo os presidentes brasileiro e equatoriano, Luiz Inácio Lula da Silva e Rafael Correa, respectivamente, decidido partir antes do encerramento da Cimeira.
Vale lembrar o significado do «Espaço Ibero-Americano» assim como as origens, os objectivos e a importância das Cimeiras Ibero-Americanas, para o que remeto para artigo deste mesmo blogue publicado a 22 de Novembro de 2007.
A partir das bases lançadas por esse artigo, fácil se torna compreender que, terceiro contribuinte do orçamento da Segib, coube a Portugal a tarefa de organizar a cimeira deste ano. Assim, a 2 de Fevereiro de 2009, realizou-se, no Palácio das Necessidades, a cerimónia de transmissão da Secretaria Pro-Tempore Ibero-Americana de El Salvador (organizador da cimeira de 2008) para Portugal, com a presença dos ministros dos Negócios Estrangeiros de El Salvador, Portugal, Marisol Argueta e Luís Amado, respectivamente, bem como do vice-ministro dos Estrangeiros da Argentina, Victorio Taccetti – que terá a presidência da cimeira em 2010. Para além, naturalmente, do Secretário-Geral Ibero-Americano, Enrique Iglesias[1].
Na realidade, num momento de crise global como o que hoje se vive, e que seguramente estender-se-á a parte do próximo ano, a inovação tecnológica e a pesquisa científica desempenham um papel de grande relevância, até mesmo como possibilidade de solução para a referida crise.
O desafio dos países latino-americanos, de Portugal e da Espanha, assim como de Andorra, é o de aumentar a respectiva cooperação nesses campos; tarefa para a qual a XIX Cimeira teve um papel importante, através da apresentação de projectos concretos, tanto bilaterais como multilaterais, de forma a poder avançar-se conjuntamente.
Não obstante ter alcançado resultados efectivos em matéria de «Inovação e Conhecimento», a verdade é que a Presidência portuguesa não conseguiu impor a sua agenda, tendo a XIX Cimeira Ibero-Americana sido dominada pela crise hondurenha, pelas alterações climáticas e pela crise financeira e económica mundial.
De facto, o tema das Honduras (novamente, remeto para a leitura de artigo deste blogue publicado a 25 de Setembro de 2009) não estava na agenda da Cimeira, mas acabou por dominar em particular os trabalhos desta. E a Cimeira esteve, desde o início, dividida entre os que reconhecem a liderança do presidente eleito a 29 de Novembro de 2009, Porfírio Lobo (Colômbia, Costa Rica e Panamá) e os restantes, que não a reconhecem – sendo que o Brasil, a Argentina, a Bolívia, Cuba, Equador, Nicarágua, Uruguai e Venezuela tornaram já público esse não reconhecimento.
Na verdade, se a condenação do golpe de Junho deste ano, a censura às violações dos direitos e liberdades do povo hondurenho e a restituição de Zelaya ao cargo de presidente das Honduras até completar o seu mandato constitucional – para o qual fora eleito democraticamente – foram relativamente consensuais entre os Vinte e Dois (não obstante o reconhecimento do novo governo pela Colômbia, Costa Rica e Panamá), o tema em si foi controverso, dadas as imensas e tão opostas posições reveladas durante a Cimeira sobre o tema, que foi o mais difícil de gerir pela Presidência portuguesa.
A Presidência portuguesa acabaria por conseguir fazer aprovar uma declaração consensual que censura o golpe militar nas Honduras, apela à recondução de Manuel Zelaya na Presidência hondurenha, apela ao diálogo interno no país e o fim do cerco à missão diplomática do Brasil nas Honduras, onde Zelaya permanece em asilo. Depois desta declaração, emitida antes do encerramento da Cimeira, os Vinte e Dois terminaram declarando a defesa dos princípios democráticos dos países do «Espaço Ibero-Americano», no sentido de prevenir e evitar tentativas de desestabilização de governos eleitos democraticamente.
A questão é que esta declaração foi aprovada sem a participação do presidente Lula do Brasil que, não reconhecendo os resultados eleitorais de 29 de Novembro nas Honduras, que indigitaram Porfírio Lobo como presidente, partiu em direcção a Kiev[2], seguindo depois para Berlim e Hamburgo[3], não sem deixar claro que, se soubesse que este seria o tema dominante da Cimeira, nem sequer teria participado do encontro. Lula voltou assim as costas à Cimeira, por considerar desnecessário que os Vinte e Dois adoptassem uma posição comum sobre as Honduras, alegando que as Cimeiras Ibero-Americanas não são uma instância de deliberação sobre as Honduras. Também Rafael Correa se ausentaria da Cimeira mais cedo.
Tal como o caso das Honduras, também as alterações climáticas foram abordadas à margem dos temas definidos na XIX Cimeira, em função da Conferência Mundial de Copenhaga sobre as Alterações Climáticas, que se reunirá a 7 de Dezembro[4]. Este foi um dos temas dominantes da Cimeira, com os países latino-americanos a exigir que os Estados mais desenvolvidos (e que mais poluem) paguem na mesma proporção os custos das medidas de restrição às emissões de dióxido de carbono. O primeiro-ministro português, José Sócrates, chegou mesmo a apelar aos quatro países latino-americanos membros do G20 que se sirvam da sua capacidade de influência para defender os interesses comuns dos Vinte e Dois em matéria de protecção ambiental.
Também a crise financeira e económica mundial foi abordada sem fazer parte da agenda da Cimeira, tendo sido, todavia, de grande pertinência, pois a «Inovação e Conhecimento» podem ser boas formas de solucionar a referida crise, que atingiu menos os países latino-americanos do que os países ditos desenvolvidos. Ademais, é útil ter em conta que os Vinte e Dois representam 10% da riqueza gerada a nível mundial e que o reforço das relações económicas e comerciais do eixo do Atlântico Sul pode ser uma excelente oportunidade para Portugal e Espanha saírem da crise.
Outro assunto tratado nesta XIX Cimeira Ibero-Americana foi a decisão de extraditar Posada Carriles – o terrorista responsável pela colocação de uma bomba num avião cubano em 1976, causando a morte de 73 civis – a pedido da Venezuela e dos Estados Unidos, no sentido de lhe retirar a impunidade e julgá-lo. Na realidade, a Cimeira do Estoril produziu um Comunicado Especial sobre Terrorismo que ratifica a necessidade de evitar a impunidade para aqueles que cometam este tipo de crimes, apelando ao cumprimento efectivo do Direito Internacional em matéria de penas por acções violentas para qualquer tipo de acto terrorista.
Apesar das atenções da Cimeira terem estado centradas na crise hondurenha, nas alterações climáticas (em função da Conferência do Clima de 7 de Dezembro) e na crise financeira e económica mundial, foi de facto em relação à «Inovação e Conhecimento», o tema central da agenda, que saíram os principais acordos entre os Vinte e Dois.
Desde logo, foi assinada a Declaração de Lisboa, na qual os países ibero-americanos acordaram incentivar as matérias “mediante a formulação e implementação de políticas públicas de médio e longo prazos, sejam de natureza fiscal, financeira ou de crédito, dirigidas aos agentes da inovação e do conhecimento (empresas, principalmente as pequenas e médias, as universidades, centros de I&D, governos, sectores sociais) e à população em geral, e promovendo a sua interacção, estimulando, consequentemente, a implementação gradual de uma cultura da inovação”[5].
Na verdade, pode bem ser a partir da «Inovação e Conhecimento» que as sociedades ibero-americanas consigam dar um novo impulso à recuperação económica e ao combate ao desemprego, à exclusão social e à pobreza, sendo certo que, para tanto, compete aos governos nacionais a definição de políticas públicas nesse sentido, e não à Comunidade Ibero-Americana.
Da Cimeira resultou também um Plano de Acção, também denominado de Lisboa, no qual são apresentadas e sugeridas acções visando promover a inovação e o conhecimento, designadamente através da promoção do acesso – universalizado no espaço ibero-americano – às tecnologias de informação e comunicação, consideradas fundamentais para o desenvolvimento económico e social da região.
A XIX Cimeira Ibero-Americana vem, assim, dar um novo impulso para a criação de uma «Comunidade Latino-Americana de Nações» vinculada à «Comunidade Ibero-Americana», no sentido de efectivar a «Ibero-América» como um fórum de consulta e de concertação política que reflicta sobre os desafios da região e impulsione a cooperação, a coordenação e a solidariedade regionais, promovendo o desenvolvimento dos países ibero-americanos.
De salientar, no âmbito da realização da XIX Cimeira Ibero-Americana, as IV Jornadas Ibero-Americanas promovidas pela Associação Espanhola de Professores de Direito Internacional e de Relações Internacionais (AEPDIRI), com o apoio directo da Sociedade Portuguesa de Direito Internacional, que tiveram lugar entre os dias 23 e 25 de Novembro de 2009, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade Técnica de Lisboa, das quais resultou a Declaración de Lisboa de 25 de Noviembre de 2009 sobre Innovación y Conocimiento Desde la Perspectiva de los Professores de Derecho Internacional y Relaciones Internacionales.
Nesta Declaração, reúnem-se as principais conclusões das Jornadas, guiadas no sentido da necessidade de se proceder a acções concretas em matéria de inovação e conhecimento na gestão dos recursos naturais, assim como em matéria de «comércio» internacional da inovação e do conhecimento. A Declaração conclui ainda pelo importante papel que a inovação e conhecimento podem ter na constituição do «Espaço Ibero-Americano de Educação Superior», assim como na inovação diplomática[6].


[1] Cfr. http://www.cimeiraiberoamericana.gov.pt consultado a 16 de Novembro de 2009.
[2] O Brasil possui, com a Ucrânia, um acordo estratégico para o lançamento de foguetes espaciais.
[3] Esta é a quarta viagem de Lula à Europa nos últimos dois meses. Anteriormente esteve na França, na Itália, na Grã-Bretanha, na Bélgica, na Suécia e na Dinamarca.
[4] De salientar que este tema foi introduzido nos trabalhos da Cimeira pelo próprio presidente português, Aníbal Cavaco Silva, com o apoio do primeiro-ministro, José Sócrates.
[5] Cfr. Declaração de Lisboa, XIX Cimeira Ibero-Americana, Lisboa, 1 de Dezembro de 2009.
[6] Cfr. Declaración de Lisboa de 25 de Noviembre de 2009 sobre Innovación y Conocimiento Desde la Perspectiva de los Professores de Derecho Internacional y Relaciones Internacionales, Lisboa, 25 de Novembro de 2009.

Tuesday, October 20, 2009

As Eleições Portuguesas e o Actual Panorama Político-Partidário Brasileiro

AS ELEIÇÕES PORTUGUESAS E O ACTUAL PANORAMA POLÍTICO-PARTIDÁRIO BRASILIERO



O que há de semelhante entre os resultados das legislativas portuguesas de 27 de Setembro de 2009 e o actual cenário político-partidário brasileiro? Basicamente, o fim da tendência para a bipolarização dos respectivos sistemas políticos, em função da perda de poder dos grandes partidos e da subida dos partidos de médio porte. Em Portugal, o Centro Democrático Social – Partido Popular (CDS-PP), o Bloco de Esquerda (BE) e o Partido Comunista Português (PCP). No Brasil, o Partido dos Trabalhadores (PT). Paralelamente, a manutenção dessa bipolarização nas eleições para os níveis inferiores de governo, nos quais os grandes partidos continuam a dominar, tanto em Portugal como no Brasil.
Na verdade, nas legislativas portuguesas, os resultados somados dos dois maiores partidos, o Partido Socialista (PS) e o Partido Social Democrata (PSD) dão cerca de 65% dos lugares da Assembleia da República – o resultado mais baixo destes partidos desde a década de 1980, quando foi formado o bloco central. Como sucede no Brasil, onde os dois maiores partidos, o Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB) e o Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), perdem força desde a primeira vitória eleitoral de Lula, em Outubro de 2002.
É verdade que, tendo perdido as presidenciais em 2002, o PSDB conseguiu manter relativa força nas eleições estaduais, ganhando o governo de importantes estados como São Paulo (terceiro mandato consecutivo), Goiás e Minas Gerais. Voltando a ser derrotado nas presidenciais de 2006, o PSDB saiu porém com 66 deputados e 14 senadores no Congresso Nacional, além de 6 governadores (São Paulo, Minas Gerais, Rio Grande do Sul, Alagoas, Paraíba e Roraima), obtendo, nas eleições municipais de 2008, a segunda maior votação proporcional em todo o Brasil, elegendo, no total, 790 prefeitos.
O PMDB, por seu lado, ainda que seja o maior partido político brasileiro – não tendo, porém, eleito nenhum presidente da República por voto directo – tem vindo a perder expressão desde a vitória presidencial do PT. Os rostos do PMDB de hoje são quase todos nacionalmente desconhecidos, muitos deles oriundos de redutos eleitorais e não de plataformas sólidas. O PMDB de hoje pouco tem a ver com a época áurea da liderança de Ulysses Guimarães, transformando-se numa federação de lideranças regionais sem expressão.
A perda de força do PMDB é também visível no PSDB de Fernando Henrique Cardoso desde a primeira eleição de Lula para presidente da República. O reforço do PT encobre a força do PMDB e do PSDB de outrora. Assim como, em Portugal, a perda da maioria absoluta do PS (o único partido, note-se, que nestas legislativas perdeu deputados) e a derrota do PSD devem-se ao fortalecimento dos partidos médios.
Na realidade, desde 1991 – quando Jorge Sampaio perdeu as eleições para Cavaco Silva – que o PS não tinha um resultado eleitoral tão fraco em legislativas, embora tenha recuperado da pesada derrota sofrida nas eleições europeias do início de Setembro de 2009, em muito resultado da mudança no discurso, na prática e no estilo de se apresentar aos Portugueses. Mas os 36,56% dos votos, correspondentes a 96 deputados, estão longe dos 121 lugares de 2005.
É também notório que o PS venceu porque o PSD (que obteve 29,09%) não conseguiu convencer muitos dos descontentes com Sócrates, que optaram pela direita do CDS-PP (com 10,46%) e pela esquerda do BE (9,85%), não tendo conseguido mobilizar o seu tradicional eleitorado, que optou pela abstenção – 39,4%[1].
Por outro lado, a estratégia de Manuela Ferreira Leite para a campanha não terá sido a mais adequada, ao fugir deliberadamente ao marketing que hoje domina a cena política nacional (e não só) e ao optar pelas acusações ao PS – em lugar de aclamar o PSD. É bem verdade que a liderança de Ferreira Leite foi uma última escolha para o partido, e que ela assumiu, não com o objectivo de chegar a São Bento, mas de salvar o PSD do populismo. O que se torna evidente com a brecha que ela própria deixou abrir ao não deixar claro, no discurso de derrota, se continuaria, ou não, na liderança do PSD depois das autárquicas de 12 de Outubro.
Quem teve uma grande vitória nestas legislativas portuguesas foi o CDS-PP de Paulo Portas (com 10,46%, o que equivale a 21 deputados e a quase 600 mil votos); foi o melhor resultado do partido nos últimos 26 anos.
Portas conseguiu trazer de novo o CDS-PP para a condição de terceiro partido mais votado e, sobretudo, conseguiu fazer eleger um número de deputados suficiente para não poder ser ignorado pelo PS.
A questão, agora, é saber o que Portas fará com esse poder: se regressará ao tempo dos acordos pontuais com o PS, como na era de Guterres e de Manuel Monteiro (o que é improvável); ou se exigirá mais, designadamente participar no governo, fazendo o PS coligar-se com o CDS-PP, uma forte hipótese, já que os 21 deputados eleitos formam maioria com os 96 do PS. E a história da política portuguesa tem demonstrado que governos sem maioria não duram, ainda para mais se tivermos em conta as constantes dificuldades na aprovação do Orçamento de Estado, o que seguramente levará o PS a negociar com o CDS-PP.
Efectivamente, outra questão que agora se põe é a forma como Sócrates formará o seu governo. O PCP e o BE cresceram bastante e, sobretudo, cresceram à custa de eleitores tradicionais do PS. Mas uma aliança do PS com o PCP e o BE é indesejada, não só porque não conferirá maioria ao novo governo, como também porque os empresários portugueses logo se levantaram contra essa possibilidade, designadamente através da voz de Francisco Vanzeler. Uma aliança entre o PS e o PSD conferirá maioria ao novo governo, mas este é um cenário pouco provável, que levaria o PS a um destino semelhante ao SPD alemão que, no mesmo dia das legislativas portuguesas, sofreu uma pesada derrota à esquerda e terá de coligar-se à direita.
Mas há outros factores que influenciarão o futuro próximo em Portugal. Em primeiro lugar, gerir as tensões que se seguirão, a partir daqui, até às presidenciais. Depois, gerir as relações dos três homens que, a partir deste momento, terão de tomar as decisões centrais para assegurar um mínimo de governabilidade: Cavaco Silva, José Sócrates e Paulo Portas.
Em todo este contexto, a análise leva-nos à conclusão anterior. O PS de Sócrates tem duas hipóteses. Ou governa sozinho. Ou procura um acordo com outro partido parlamentar e, aqui, o CDS-PP aparece como a força mais bem posicionada, até para entendimentos parlamentares.
No Brasil, vale lembrar o contexto de criação do PMDB (fundado em 1980 com orientação política centrista), do PSDB (fundado em 1988 por importantes figuras do cenário político brasileiro, a partir da dissidência do PMDB especialmente de São Paulo e Minas Gerais) e do PT (fundado em 1980, mas apenas reconhecido oficialmente como partido político pelo Tribunal Superior de Justiça Eleitoral a 11 de Fevereiro de 1982). E tudo resulta da abertura política iniciada pelo presidente Ernesto Geisel e prosseguida por João Baptista de Oliveira Figueiredo.
De facto, apesar das graves dificuldades económicas e do quadro de crise social em que o Brasil vivia, o presidente Figueiredo prosseguiu com a abertura política iniciada por Geisel, ainda que esse processo continuasse – tal como no tempo de Geisel – a ser perturbado pela acção da linha-dura, que adoptava, agora, práticas violentas. A linha-dura fazia explodir bombas em jornais da oposição, na sede da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e na Câmara Municipal do Rio de Janeiro, ao mesmo tempo que raptava e espancava personalidades da Igreja Católica ou ligadas a ela[2], tendo os actos criminosos da linha-dura culminado com a tentativa de explodir bombas no centro de convenções do Rio de Janeiro Riocentro, a 30 de Abril de 1981, quando aí se realizava um festival de música.
Na realidade, não obstante a abertura política prosseguir, a oposição da linha-dura vinha ganhando terreno já desde o tempo de Geisel. E era muito apoiada pela própria legislação eleitoral existente, até porque a Lei Falcão, ainda vigente, atingia tanto a oposição quanto a ARENA – partido governamental que sustentara o regime militar instaurado pelo golpe de 1964. Por isso, Figueiredo, logo em 1979, procurou alterar essa legislação.
Com efeito, a legislação eleitoral de 1965, a que estava então em vigor, tornava-se uma armadilha para o poder, transformando, cada processo eleitoral, em votações contra ou a favor do desempenho do governo. Para tentar reduzir a força da oposição, e aproveitando a divisão que grassava no seio dessa oposição, em torno do Movimento Democrático Brasileiro (MDB, partido da oposição durante o bipartidarismo, contra o partido situacionista, a ARENA), Geisel obteve do Congresso, em Dezembro de 1979, a aprovação da Nova Lei Orgânica dos Partidos. De acordo com esta, eram extintos o MDB e a ARENA e, no lugar destes, criadas novas organizações partidárias que tinham obrigatoriamente de incluir no nome a palavra «Partido».
Neste sentido, a ARENA transformou-se no Partido Democrático Social (PDS) e o MDB acrescentou a palavra que lhe faltava, transformando-se no Partido do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB).
Porém, os tempos de uma oposição unida em torno de um inimigo comum haviam desaparecido, ao mesmo tempo que esse inimigo comum se ia flexibilizando em função da abertura política. Assim, ao lado do PMDB surgiram diversos outros partidos políticos de oposição. Em torno do sindicalismo, de sectores da Igreja e da classe média, surgiu o Partido dos Trabalhadores (PT), propondo-se representar os interesses dos assalariados do Brasil. O PT adoptava uma postura distante do Partido Comunista Brasileiro (PCB) e do socialismo sovietista, até porque, no seu interior, havia uma facção de simpatizantes da social-democracia e uma outra mais radical, esta sim partidária da ditadura do proletariado. Havia, ainda, uma facção ligada ao sindicalismo do ABC paulista; movimento que ganhava cada vez mais adeptos e importância dentro do PT, em torno da figura do metalúrgico Luiz Inácio da Silva, presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo.
Leonel Brizola também preferiu criar uma agremiação própria, desvinculando-se do antigo MDB. Tentando potenciar o prestígio que o trabalhismo de esquerda vinha ganhando no Brasil dos anos 1970, criou o Partido Democrático Trabalhista (PDT).
À direita, também a ARENA não correria sozinha. Reunindo adversários conservadores do governo, com destaque para Tancredo Neves – que havia sido primeiro-ministro no período parlamentarista – e Magalhães Pinto, era fundado o Partido Popular (PP), procurando congregar as camadas da burguesia favoráveis à transição para a democracia sem grandes mudanças. Apesar de bem estruturado, especialmente em virtude da participação de Tancredo, o PP não era, propriamente, um partido «popular», que se centrasse, como fazia crer a sua denominação, no povo, pelo que teria uma curta duração.
Mas as tensões e as dificuldades internas mantinham-se. Abatido pela impopularidade do PDS demonstrada nas eleições de 1982 e na campanha das «Directas já», Figueiredo manteve, todavia, o calendário eleitoral que previa eleições para Novembro de 1982, mantendo-se distante dos presidentes militares anteriores, que praticamente nomeavam os sucessores, entregando o processo político aos políticos, isto é, ao PDS[3]. Ainda assim, procuraria «segurar» a oposição.
Tentando limitar a margem de manobra da oposição, Figueiredo conseguiu fazer aprovar no Congresso uma medida que limitava as hipóteses de vitória da oposição. Foi ela a criação do chamado «voto vinculado», de acordo com o qual o eleitor era forçado a escolher candidatos de um mesmo partido para os vários níveis de governo, de vereador a governador. O eleitor não poderia mais escolher, para os vários níveis de governação, candidatos de diferentes partidos políticos, como sucedera até então. O objectivo desta medida era favorecer o PDS, já que este era mais forte no âmbito municipal. Esperava-se que o voto dos eleitores para vereador, atribuído geralmente ao PDS, levasse ao voto dos mesmos nos restantes níveis governamentais, designadamente para governador, sendo de ressaltar que seriam as primeiras eleições directas para governador desde 1965.
Percebendo as fracas hipóteses de vitória em função da nova medida, o PP decidiu dissolver-se e agregar-se ao PMDB, em 1982[4].
Os resultados foram favoráveis ao governo. O PDS venceu no Senado e na Câmara dos Deputados e, embora tenha perdido nos estados mais importantes, conseguiu eleger governadores na maioria deles. De facto, ainda que o PMDB tenha eleito os governadores dos estados mais importantes: de São Paulo (Franco Montoro), de Minas Gerais (Tancredo Neves), do Paraná (José Richa) e do Rio de Janeiro (Leonel Brizola), facto é que a divisão entre o PMDB e o PDT enfraqueceu a oposição, facilitando o êxito do governista PDS na maioria dos estados.
A manutenção das eleições indirectas para presidente da República, em função do carácter directo das mesmas para o nível de governador, começou a incomodar seriamente os políticos da oposição, que passaram a reivindicar eleições directas também para a Presidência da República.
Assim, no decurso de 1983, o PT assumiu como prioridade promover uma campanha pelas eleições directas para presidente da República, que logo seria abraçada pelos restantes partidos brasileiros, sindicatos e população, adquirindo um carácter de movimento popular, ultrapassando as organizações partidárias e ganhando uma quase unanimidade nacional. Porém, a emenda que previa a alteração da Constituição nesse sentido, a Emenda Dante de Oliveira (por ter sido apresentada pelo deputado Dante de Oliveira, do PMDB do Mato Grosso) não foi aprovada no Congresso, mantendo-se a eleição presidencial através do Colégio Eleitoral, o que provocaria grandes alterações políticas no Brasil, especialmente pela escolha de Paulo Maluf, pelo PDS, como candidato do governo à sucessão presidencial.
A escolha de Paulo Maluf pelos militantes do PDS, em Agosto de 1984, provocou uma cisão no partido. Na verdade, já em Julho Aureliano Chaves havia desistido da corrida pela indicação e passara a trabalhar, com Tancredo Neves[5], na organização de uma dissidência que apresentaria o candidato da oposição às presidenciais de Janeiro de 1985. Com a escolha de Maluf, Aureliano e outros fundaram, imediatamente, o Partido da Frente Liberal (PFL, actual DEM), sendo de ressaltar que também o senador por Pernambuco, Marco Maciel, havia deixado o PDS.
O PFL aproximou-se do PMDB para juntos lutarem pela vitória dos candidatos que haveriam de apresentar à Presidência e Vice-Presidência da República. Os dois partidos políticos chegaram a acordo e formaram a Aliança Democrática, em oposição a Paulo Maluf. Lançaram o nome de Tancredo Neves para presidente e o de José Sarney para vice-presidente. O PMDB teve muitas reservas em aceitar o nome de Sarney proposto pelo PFL. Sarney havia sido da UDN, senador pela ARENA e era agora uma das principais figuras do PDS. Se bem que fizesse parte da dissidência do PDS que levara à cisão deste partido político e à formação do PFL, muitas reservas circulavam pelo PMDB em torno da indicação de Sarney para vice-presidente. O PFL foi intransigente na indicação de Sarney e o PMDB cedeu para se alcançar o acordo. A 15 de Janeiro de 1985, a lista encabeçada por Tancredo Neves saía vitoriosa do Colégio Eleitoral, com 480 votos contra 180[6]. O PT absteve-se de votar, como forma de protesto pelas eleições continuarem a ser indirectas. O PFL e o PMDB votaram em Tancredo, assim como o PDT, embora não integrasse a Aliança Democrática. Também políticos conservadores, que permaneciam no PDS, como António Carlos Magalhães, ex-governador da Bahia, votaram em Tancredo, conduzindo à estrondosa vitória deste no Colégio Eleitoral, sobre Paulo Maluf.
A democracia regressava ao Brasil, com o fim do regime militar. A partir daqui, o cenário político brasileiro viveria uma bipolarização entre o PMDB e o PSDB, que formavam alianças várias – como a que, em Novembro de 1986, entre o PMDB e o PFL, que apoiava o presidente, venceria nos principais estados do país.
A entrada em cena de Fernando Collor de Mello alteraria, a partir de certo momento, este estado de coisas. Ele havia sido eleito governador de Alagoas pelo PMDB em 1986, na esteira da popularidade inicial do Plano Cruzado. Mas em Outubro de 1987, defenderia (foi o único governador do PMDB a fazê-lo) um mandato de 4 anos para o presidente Sarney, o que anteciparia as eleições presidenciais para 1988. Neste contexto, as intenções de Collor de concorrer à Presidência tornaram-se realidade e ele começou a manifestar-se junto do PMDB.
Fiel à sua estratégia rumo ao Palácio do Planalto, Collor acusou o governo Sarney de ser o responsável por todos os problemas e dificuldades político-administrativas que assolavam o Brasil naquele momento, postura que o levaria a ter de abandonar o PMDB e a ingressar no inexpressivo PRN, sucedâneo do também inexpressivo Partido da Juventude (PJ). Tomada a decisão de apresentar-se como candidato às presidenciais de 1989, Collor iniciou, de facto, as diligências para viabilizar partidariamente a candidatura. Afastando-se dos partidos tradicionais, utilizou o inexpressivo Partido da Juventude, que transformou em Partido da Reconstrução Nacional (PRN) e, “desprezando o próprio passado na ARENA e no PMDB, apresentava-se como «candidato da sociedade civil» e apelava ao povo que lotava os seus comícios»[7].
Desde então, passou à condição de alternativa conservadora às eleições desse ano, cujo panorama passava por dois nomes de esquerda tidos como os preferidos dos Brasileiros: Leonel Brizola e Luiz Inácio Lula da Silva.
Apesar de ser oriundo de um pequeno estado e filiado a um partido igualmente pequeno e inexpressivo, Collor venceu e logo sentiu necessidade de compor uma base de sustentação capaz de viabilizar a implementação do seu programa de governo, que contava com o apoio de políticos do PFL, do PDS, do PTB, do PL, de partidos conservadores de menor dimensão e, ainda, de ocasionais dissidentes. A alternância, no poder, entre o PMDB e o PSDB, era temporariamente interrompida.
Assim, nas eleições para governador de 1990, os aliados de Collor, especialmente o PFL, venceram em Brasília e na maioria dos estados. O PFL elegeu nove governadores, seis dos quais no Nordeste, o que compensou as perdas sofridas em grandes colégios eleitorais como São Paulo, Rio de Janeiro e Rio Grande do Sul, sendo certo que o PRN não conseguiu eleger um único governador. Nas legislativas, o PMDB obteve a maioria na Câmara e no Senado, conservando a direcção do Legislativo para os dois anos seguintes.
O PMDB e o PSDB logo continuariam a intercalar o domínio da cena política brasileira, tendo o PSDB obtido estrondosa vitória com a eleição (e reeleição) de Fernando Henrique Cardoso para a Presidência da República.
Todavia, a difícil situação económica do Brasil no início do século XXI, em muito resultado das constantes e graves crises financeiras internacionais dos anos 1990 e do «défault» argentino de 2000-2001, reforçou a posição da oposição de esquerda para as presidenciais de 2002. Oposição centrada no até então eterno candidato e eterno perdedor Luiz Inácio Lula da Silva. A partir da eleição de FHC, Lula tornava-se a liderança incontestável da esquerda brasileira, especialmente por ter-se apresentado às eleições numa lista que tinha, como vice-presidente, Leonel Brizola, que havia disputado arduamente com Lula a sua ida à segunda volta nas eleições de 1989 como adversário de Collor.
Frente a FHC, Lula tornou-se um dos principais opositores da política económica do governo, sobretudo da política de privatização de empresas estatais realizada nesse período.
A desvalorização do Real em Janeiro de 1999, logo após as eleições de 1998, as crises internacionais, as deficiências administrativas que permitiram a «crise do apagão» em 2001, e principalmente o reduzido crescimento económico do Brasil no segundo mandato de FHC fortaleceram a posição eleitoral de Lula, conduzindo-o à vitória nas presidenciais de 2002, na sua quinta tentativa para chegar ao Palácio do Planalto.
Com a esmagadora vitória eleitoral de Lula sobre o seu principal adversário – José Serra, do PSDB, escolha governista para o pleito – o PT ampliou a sua representação parlamentar, tornando-se finalmente num partido de grande porte, embora muitos governadores contrários a Lula tenham também sido eleitos[8].
A vitória de Lula conduziu à formação de um governo de centro-esquerda, tendo-se o PT aproximado dos valores e do discurso próprios do «establishment brasileiro» e, contrariando a esquerda (hoje apelidada de radical) do partido, aproximou-se da ala liberal-desenvolvimentista do governo FHC. O PT de Lula, ante a necessidade de construir uma coligação governamental, aproximou-se do centro, aliando-se ao Partido Liberal e fazendo do grande empresário da indústria têxtil, José Alencar, vice-presidente, numa tentativa de convencer os empresários do projecto moderado que apresentava. Lula aliou-se, ainda, à direita, erigindo entendimentos com o PMDB e com o PP, último vestígio da extinta ARENA. Assim, O PMDB ficou com os Ministérios das Comunicações, Minas e Energia e Previdência Social, enquanto lideranças outrora próximas de FCH também se aproximaram do novo PT, vindo José Sarney e Renan Calheiros (por duas vezes) a ocupar a Presidência do Senado entre 2003 e 2007.
Finalmente, Lula fazia do PT um partido de grande porte, colocando um ponto final nos enfraquecidos «grandes» PSDB e PMDB. E, de facto, desde a eleição de Lula, o PT tem conhecido importantes vitórias eleitorais. Em 2004, nas municipais, apesar de ter perdido em importantes centros urbanos (São Paulo, Campinas, Goiânia, Ribeirão Preto e Porto Alegre), aumentaria o número de prefeitos de 187 para 411, conseguindo eleger o prefeito para a terceira cidade mais importante do país, Belo Horizonte. Nas municipais de 2008, viria a vencer em cidades importantes de São Paulo, como São Bernardo do Campo, Osasco, Cubatão e Baixada Santista. Desde 2007 liderado por Ricardo Berzoini, o PT venceria também as presidenciais de 2006.
De facto, contrariando todas as expectativas, Luiz Inácio Lula da Silva não alcançou, nas eleições de 1 de Outubro de 2006, os necessários 50% dos votos válidos mais um para reeleger-se presidente da República Federativa do Brasil, ficando-se apenas com 49%, e, por isso, teve de disputar a segunda volta com o principal candidato da oposição, Geraldo Alckmin, do PSDB, que logrou obter 42 % dos votos.
Segundo os resultados eleitorais por região, Alckmin venceu em São Paulo, por larga vantagem. Aqui, o resultado do candidato tucano foi de 54,2%, contra 36,76% de Lula. Mas Alckmin venceria, ainda, não apenas nos estados do Sul – Paraná, Santa Catarina e Rio Grande do Sul – como no Mato Grosso do Sul, onde conquistaria o seu segundo melhor resultado (56,25%), no Mato Grosso (a quinta melhor votação, depois de Santa Catarina e do Rio Grande do Sul, com, respectivamente, 56,61% e 55,76%), no Acre, em Goiás, em Rondónia e no Distrito Federal (com 44,11%). Lula foi esmagador no Amazonas (com 78,06% dos votos), no Maranhão (75,5%), no Ceará (71,22%) e em Pernambuco (70,93%), sendo ainda de salientar os resultados eleitorais obtidos no Piauí, na Bahia, na Paraíba e no Rio Grande do Norte, estados nos quais ultrapassou a fasquia dos 60%, beirando-a no Tocantins (58,62%) e rondando os 50% no Amapá, em Alagoas, Minas Gerais, Espírito Santo e Rio de Janeiro, tendo a vitória sido menos retumbante em Sergipe, onde Lula contaria com 47,33% dos votos válidos, contra os 44,36% obtidos por Alckmin.
Não obstante, a verdade é que a reeleição do presidente Lula no dia 29 de Outubro de 2006 representou, acima de tudo, a falta de alternativa apresentada pela oposição, já que a insatisfação com o presidente havia crescido assustadoramente. Sem nenhuma alternativa credível, o eleitorado optou, assim, pela continuidade. E, na composição do gabinete, Lula teve de fazer um governo de coligação que contou, desde logo, com a participação do PT, PSB, PC do B, PTD, PRB e PMDB, e com o apoio do PTB, PL e PP. A tarefa mais difícil foi a de conseguir organizar a unidade do PMDB em torno de Lula, arregimentando o presidente do partido, o deputado Michel Temer (PMDB-SP), que apoiara a candidatura do tucano Alckmin à Presidência. Quanto à participação do PT no Executivo de Lula, este afirmou sempre que o cargo mais importante (o de presidente) já lhe competia, pelo que o seu partido, no novo governo, deteve uma participação menor, em nome da governabilidade. No entanto, ainda que inicialmente se pensara que a decisão de Lula sobre o novo governo seria tomada apenas após a eleição dos presidentes da Câmara e do Senado, que ocorreu a 15 de Fevereiro seguinte, no início de Dezembro Lula resolveu não estender até Fevereiro a reforma do governo, precisamente porque tal coincidiria com as eleições para as presidências da Câmara e do Senado, fazendo-o logo em Dezembro. Para já, o governo disputava, directamente com o PMDB, o direito de indicar o presidente da Câmara. Para o Planalto, o ideal seria a manutenção de Aldo Rebelo (do PC do B de São Paulo), enquanto o PMDB exigia indicar os dois presidentes, tanto o da Câmara quanto o do Senado, por ter eleito a maior bancada nas duas Casas.
Assim, o PMDB perdeu o Ministério da Previdência Social, mas obteve os da Integração Nacional (com Gedel Vieira Lima) e da Defesa (com Nelson Jobim). Ao todo, o PMDB detém hoje seis ministérios, sendo o maranhense José Sarney presidente do Senado e o paulista Michel Temer presidente da Câmara dos Deputados e do próprio PMDB.
No segundo governo Lula houve, desde logo, melhores condições de governabilidade, em função da alteração da correlação de forças nos governos estaduais: o PFL (DEM) já não tem governadores influentes e os dois principais governadores do PSDB, de Minas Gerais e de São Paulo (os dois maiores estados do Brasil) estão desunidos em função da disputa presidencial de 2010, embora se possa apontar, nas eleições de 2006, a visão de longo prazo do PSDB, já que, percebendo as fracas hipóteses de vitória nessas eleições, guardou, para dali a quatro anos, Aécio Neves, aquele que, à época, se apresentava como o candidato forte do PSDB para suceder Lula em 2010 – ainda que, até hoje, o partido não tenha indicado nenhum nome.
Na realidade, este é o tema central da actual política interna brasileira, à medida que, economicamente, o país se fortalece e a sua credibilidade internacional aumenta.
É evidente que os sucessivos escândalos enfraquecem a posição do governo. Em todo o caso, o PT divulgou já o nome da chefe da Casa Civil da Presidência, Dilma Roussef, como a candidata do partido para a sucessão de Lula nas presidenciais de 2010. Do lado da oposição, o PSDB ainda não se decidiu se optará por José Serra ou por Aécio Neves, enquanto o PMDB ainda não indicou nenhum nome.










[1] A abstenção nestas legislativas é uma questão curiosa. Abstiveram-se 39,4% dos eleitores, contra os 35,74% em 2005. É preciso, todavia, ter em conta, nas eleições do passado dia 27 de Setembro, o peso dos «eleitores-fantasma», por terem sido automaticamente recenseados todos os cidadãos inscritos no arquivo nacional de identificação, em função da criação do cartão do cidadão. Ou seja, o aumento da abstenção pode não ser real.
[2] Note-se que, no quadro de crise social em que o Brasil vivia, o activismo político da Igreja Católica ganhava cada vez mais força, especialmente com a expansão das igrejas evangélicas entre as camadas mais pobres, ao mesmo tempo que, com fortes laços com o PT, a teologia da libertação ganhava novos adeptos. Foi justamente neste contexto sócio-religioso complexo que o papa conservador João Paulo II visitou o Brasil em 1980, recomendando ao Clero brasileiro não envolver-se em política.

[3] Cfr. KOIFMAN, Fábio (org.); Presidentes do Brasil (de Deodoro a FHC), Universidade Estácio de Sá, Departamento de Pesquisa, 1ª edição, Cultura Editores, Editora Rio, Rio de Janeiro, 2002, pp. 765.
[4] Cfr. Idem, pp. 764.
[5] A partir de Outubro de 1983, Tancredo Neves começou a procurar lideranças do PDS que pudessem apoiar a campanha das Directas Já. Assim surgiu, dentro do PDS, um grupo de dissidentes auto-denominado Pró-Directas, que mais adiante se daria corpo à Frente Liberal, a dissidência do partido do governo que garantiria a vitória da oposição no Colégio Eleitoral. Cfr. KOIFMAN, Fábio (org); op. Cit., pp. 765.
[6] Cfr. FAUSTO, Bóris, História do Brasil, Edusp, 1ª edição de 1994, 11ª edição, São Paulo, 2003, pp. 512.
[7] Cfr. Idem, pp. 829.
[8] CFR. VIZENTINI, Paulo Fagundes; Relações Internacionais do Brasil: De Vargas a Lula, 1ª edição, Editora Perseu Abramo, São Paulo, Janeiro de 2003, pp. 103.

Wednesday, September 30, 2009

A Credibilidade do Brasil em Alta

A CREDIBILIDADE DO BRASIL EM ALTA


Os fundamentos da economia brasileira continuam a apresentar-se sólidos, conseguindo o Brasil enfrentar os distúrbios da actual crise económica mundial. O crescimento do PIB brasileiro em 2009 ronda os 3%, conforme o governo havia previsto[1]. A formação bruta de capital continua a aumentar expressivamente, os investimentos directos estrangeiros entram em grande volume e as reservas internacionais do Brasil situam-se em USD 180 biliões, nível nunca antes alcançado pelo país. Ademais, o Brasil melhora a sua capacidade de suportar os choques externos e o governo brasileiro prevê, mesmo, que o país, em até dez anos, assuma a liderança mundial na exportação de etanol e soja, superando inclusive os EUA no ranking do comércio internacional destes produtos, reforce a sua liderança na venda de açúcar e registe um salto nas exportações de milho[2]. O Brasil ultrapassou já os EUA em matéria de produção de ferro e café, tornando-se o maior produtor mundial destes bens, sendo ainda o maior produtor do mundo em biocombustíveis, sumo de laranja concentrado, carne de vaca e carne de aves[3]. O Brasil, uma das maiores democracias do mundo, largamente conhecido como o país do «futuro», nunca alcançava esse «futuro», em virtude das crises económicas e políticas. Agora, esta situação tem-se alterado. Galardoado como «investment grade status» pela Agência Financeira Standard & Poor[4], em Maio de 2008, o Brasil assume-se como um país sério, que tem adoptado políticas sérias, que cuida das finanças com seriedade, merecendo, por conseguinte, a confiança internacional, como Lula afirmaria após o anúncio da Standard & Poor[5].
Depois da Standard & Poor, foi a vez de outras consultoras avaliarem positivamente a economia brasileira. A 22 de Setembro, a agência de classificação de risco Moody`s anunciou que os papéis do Brasil são confiáveis para investir e que a crise internacional não provocou grande impacto sobre o mercado brasileiro de acções. Algo que os investidores já sabiam, pelo que nem sequer o índice Ibovespa registou qualquer reacção, numa aparente indiferença do mercado. Na realidade, a Moody`s apenas veio confirmar que o Brasil é bom pagador e a economia brasileira, cada vez mais forte, não foi afectada de maneira significativa pela crise económica mundial.
Deve dizer-se que a própria Fitch Rating, em Maio de 2008, já havia explicado que a elevação do rating reflectia a melhoria das contas externas e do sector público do Brasil, o que terá reduzido a vulnerabilidade do país a choques externos e de câmbio, fortalecendo a estabilidade macroeconómica e melhorando as perspectivas de crescimento para o médio prazo. No mesmo período, a agência canadiana DBRS tomou idêntica decisão.
As agências mundiais têm, assim, seguido a análise pioneira da Standard & Poor, que em Abril de 2008 colocara o Brasil na lista dos países seguros, elevando a nota do país de BB+ para BBB- (no item «moeda estrangeira a longo prazo»). No quesito «moeda local a longo prazo», a Standard & Poor havia elevado o Brasil de BBB para BBB+ e o rating para «moeda local de curto prazo» foi ajustado de B para A-3.
Apenas se mantêm as ressalvas de todas as agências relativamente à dívida pública, que é maior no Brasil do que em outros países BBB, bem como do desequilíbrio da balança fiscal, tratado com cuidado pela mais recente avaliação, da Moody`s.
Não obstante este «senão», todas as avaliações têm significado o reconhecimento da maturidade das instituições do Brasil e da política monetária, bem como da melhoria das tendências de crescimento do país.
É evidente que o Brasil necessita de alguns ajustes: reduzir as despesas, aumentar o investimento em infra-estruturas, facilitar o acesso ao crédito por parte dos produtores rurais e dos empreendedores em geral e estimular as empresas a cumprir com a legislação.
Facto é que, não obstante a necessidade desses ajustes, o Brasil tem percorrido um excelente caminho e as perspectivas são muito positivas. Espera-se, mesmo, que a Standard & Poor e a Fitch melhorem ainda mais as notas atribuídas ao país, até porque a política económica que o Brasil tem seguido tem-se mostrado acertada, capaz de responder às actuais pressões através de um uso adequado das suas reservas internacionais, da venda de Dólares nos mercados e da liberação de créditos compulsórios.
Segundo Eduardo Pocetti, da BDO Trevisan, “se os acertos forem mantidos e os ajustes necessários se efectivarem [o Brasil] ingressará de vez no selecto grupo das nações desenvolvidas”. Pocetti vai mais além, numa nota de esperança que partilhamos: “potencial nós temos e estamos provando que o país do futuro finalmente se dispôs a desempenhar o papel de «país do presente»”.

[1] Em 2007, a previsão da Administração Lula era de um crescimento do PIB de 5%. No final de Agosto de 2008, esse valor baixou para 4,5%, tendo o governo actualizado as previsões, no final de Novembro de 2008, para cerca de 3,7% e 3,8%, pela voz do ministro Paulo Bento, do Planejamento.
[2] O boom das commodities, designadamente de soja, é particularmente relevante no estado do Mato Grosso, que se transformou na vanguarda da marcha brasileira em direcção a um novo lugar na sociedade internacional global.
[3] Cfr. BRIDGES, Tyler; Brazil no Longer Longo n Potential and Short on Performance, in MiamiHerald, 12 de Novembro de 2008.
[4] Cfr. The Country of the Future Finally Arrives, in secção financeira do The Guardian, 10 de Maio de 2008, pp. 41.
[5] Afirmação de Lula, in idem, ibidem.

Friday, September 25, 2009

O Brasil e o «Caso Zelaya»

O BRASIL E O «CASO ZELAYA»

A crise está instalada no Brasil, entre oposicionistas e governistas em torno do «caso Zelaya». À versão oficial do «golpe de Estado», opõem-se os defensores da sucessão presidencial em resultado de procedimentos constitucionais.
O então presidente hondurenho, Manuel Zelaya, tentou aplicar, contra uma cláusula pétrea da Constituição, o modelo chavista de permanência no poder, viabilizada por referendo popular. Na época (Junho de 2009), já estava em curso a campanha para a sucessão presidencial, em que o candidato de Zelaya tinha pouquíssimas hipóteses de vencer. Este «golpe referendário» foi condenado pelo Congresso hondurenho e rejeitado pelo Supremo Tribunal. Facto é que, tendo a via bolivariana do golpe publicitário de Zelaya sido condenado pelo Congresso e rejeitada pelo Supremo Tribunal, mesmo depois de o referendo ter sido declarado ilegal, Zelaya deu ordens para que o mesmo fosse realizado e mobilizou para tanto o Exército. Violando a Constituição e a Justiça hondurenhas. Segundo as regras dessa mesma Constituição, Zelaya foi deposto e, no seu lugar, assumiu quem, segundo a hierarquia constitucional hondurenha, é o sucessor legítimo, Roberto Micheletti, presidente do Congresso, já que o vice-presidente havia renunciado para concorrer às eleições de 29 de Novembro. Zelaya foi assim expulso do palácio presidencial e do país, a 28 de Junho. Refugiou-se na Nicarágua.
Alegadamente criminoso, corrupto e ligado aos cartéis da droga, Zelaya, apoiado pelo presidente Hugo Chávez, regressou às Honduras e instalou-se na Embaixada brasileira em Tegucigalpa – onde permanece desde 21 de Setembro – com o apoio expresso do presidente Lula e do Itamaraty, que, seguindo Chávez, adoptaram o partido de Zelaya.
Também seguindo Chávez, Lula e o Itamaraty apelidam o sucedido nas Honduras de «golpe militar», enquanto a oposição refere ter-se tratado de um procedimento «normal» ao abrigo das leis hondurenhas. A oposição brasileira critica a posição da diplomacia brasileira, acusando Zelaya de utilizar as instalações da Embaixada brasileira na capital hondurenha para fins políticos. A verdade é que o número de pessoas abrigadas na Embaixada, que começou por cem e chegou aos trezentos, já foi substancialmente reduzido, não passando hoje (25 de Setembro) das sessenta pessoas. O governo brasileiro defende-se ainda dizendo que, mais do preocupar-se com o lugar onde se encontra Zelaya, a comunidade política brasileira deveria preocupar-se com o facto de haver, no poder de um país latino-americano, um presidente «golpista», criticando ainda a obsessão golpista do Império Globo, que ataca a posição do governo brasileiro por acolher e defender a democracia e a vida de Zelaya.
Também a comunidade brasileira nas Honduras, de cerca de trezentas e cinquenta pessoas, apoia o novo presidente e rechaça a medida do governo brasileiro, receando inclusive represálias e ataques de zelayaistas, patrocinados pelo presidente venezuelano. A comunidade lançou mesmo um abaixo-assinado de repúdio às medidas brasileiras, que apelida de «abuso de poder sem precedentes na política externa do Brasil», segundo documento que começou a circular na Internet nas Honduras a 24 de Setembro.
Segundo o governo brasileiro, a Embaixada do Brasil em Tegucigalpa «abriga» o presidente deposto das Honduras, que designa de hóspede, tendo já afirmado que o fará pelo tempo que for necessário. Entretanto, a Embaixada foi sitiada pelos apoiantes de Micheletti, ainda que o fornecimento de água, luz e alimentos esteja sendo assegurado.
Ainda de acordo com o governo brasileiro, os objectivos «golpistas» foram favorecidos pela inactividade da diplomacia Obama, conduzida pela secretária de Estado Hillary Clinton – que se tem apoiado em personagens duvidosos da Administração anterior, como Hugo Llorens e Thomas Shannon.
Facto é que o actual presidente Micheletti ainda não foi reconhecido por qualquer Estado – o Brasil, a ONU, a OEA e toda a comunidade internacional, incluindo os Estados Unidos, continuam a reconhecer Zelaya como presidente constitucional – e a iniciativa de Barack Obama de sugerir que o presidente costarriquenho Óscar Árias mediasse negociações entre Micheletti e Zelaya – através do Acordo de San José, que previa o regresso de Zelaya ao poder, num governo de conciliação nacional, com amnistia a todos os envolvidos na crise – fracassou, além de ter sido uma atitude que marginalizou a OEA.
Agora, o governo brasileiro reforça a sua posição, forçando um compromisso da Administração Obama com a democracia, e mobilizando a OEA e, sobretudo, a ONU, que a 24 de Setembro tomou as primeiras medidas concretas. Ainda que o debate do caso no Conselho de Segurança das Nações Unidas seja esperado para hoje, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, suspendeu temporariamente a assistência técnica actualmente dada pela Organização ao Supremo Tribunal Eleitoral das Honduras, por considerar não haver condições para que neste momento se proceda a eleições credíveis e capazes de devolver a paz e a estabilidade no país. Ban Ki-Moon demonstrou ainda preocupação com as denúncias de violações dos direitos humanos nas Honduras, conclamando os michelettistas a respeitar os tratados e convenções internacionais, designadamente a inviolabilidade da missão diplomática do Brasil. O secretário-geral da ONU uniu-se ainda à OEA e aos líderes regionais em busca de um acordo que seja alcançado através do diálogo entre os actores políticos envolvidos, sendo certo que o primeiro contacto entre michelettistas e zelayaistas teve lugar ao final da manhã de hoje (hora de Lisboa), com Zelaya a declarar não reconhecer o governo interino até às eleições de Novembro.
A crise no Brasil está instalada. O que na verdade tem criado confusão é a acto, que a comunidade internacional tem considerado abusivo, de expulsar Zelaya do país pela força. Nisto reside a ilegitimidade do actual governo, sendo que, do outro ponto de vista, foi Zelaya quem violou a Constituição e, em abono da verdade, quando deixou as Honduras já não era presidente da República. Em torno destas posições inconciliáveis giram as controvérsias entre oposicionistas e governistas brasileiros, não sendo displicente a ideia de que, não obstante se poder atribuir algum ponto de razão a cada parte, não parece pertinente desconsiderar a postura da comunidade internacional e, especialmente, das Nações Unidas, com a qual se acomoda o governo e a diplomacia brasileiros. Mas a questão fundamental aqui, agora, e principal preocupação do Brasil e da comunidade internacional, é a solução da crise hondurenha, ou através do regresso imediato de Zelaya ao cargo de que foi deposto, ou, o que é mais provável, através do adiantamento do processo eleitoral de Novembro. Ainda relevante, é assinalar a consonância da posição de Lula e de Obama em torno da defesa da democracia na América Latina, não permitindo os golpes que caracterizaram a região em outros tempos.

Friday, September 11, 2009

A Integração Regional na América Latina

No início dos anos 1990, a integração regional na América Latina iniciou um novo período histórico. Os processos de integração/cooperação da América Central e dos países andinos foram reactivados, o Cone Sul estabeleceu o Mercosul, de objectivos ambiciosos, e o México, ao integrar o NAFTA, formalizou a sua separação da América Latina e iniciou uma estratégia de integração económica Sul-Norte, até então inexistente.
Dezanove anos depois, a integração e cooperação latino-americanas encontram-se numa profunda crise e, por toda a região, aparecem processos e ideias acerca da integração e cooperação regionais totalmente novas e apresentando alterações significativas do ponto de vista da forma e do conteúdo que os novos processos integram.
Por um lado, o esgotamento do modelo do regionalismo aberto – que havia sido adoptado, conforme visto, no início da década de 1990; sendo que nessa altura o modelo representava um modo coerente para a cooperação e integração na América Latina, guiando o ciclo da integração/cooperação regionais de 1990 a 2005 – é uma das graves razões para a crise na integração/cooperação regionais.
A onda de cooperações Sul-Norte – iniciada com a participação do México do NAFTA e prosseguida com a assinatura de diversos acordos de livre-comércio entre países da região e os EUA – também tem criado dificuldades à integração/cooperação na região.
Por outro lado, ainda, as posturas diferentes que os líderes dos países da região têm apresentado relativamente ao tema não contribui para diluir as dificuldades; sem esquecer os próprios dilemas e desafios que hoje se colocam aos processos de integração/cooperação da América Latina.
Neste sentido, é necessário analisar, não só os dilemas e os desafios que se colocam a esses processos hoje (e amanhã), não só os obstáculos que têm surgido a esses processos, como também as novas propostas que têm surgido, desde logo em torno da Comunidade Sul-Americana de Nações (CSAN) e da União das Nações da América do Sul (UNASUL), o seu potencial para articular um espaço económico e político comum e as dificuldades que esta iniciativa enfrenta.
Era, de facto, necessário criar uma organização regional mais ampla, com um quadro institucional mais amplo que o Mercosul, de modo a agregar as restantes nações da América do Sul que não participam plenamente do Mercosul, visando promover a realização de vários projectos de integração, não apenas de âmbito económico e comercial, como também do ponto de vista da integração das comunicações, da infraestrutura, dos transportes, energética, educacional, cultural, científica e tecnológica.
Neste sentido, foi lançado, em Cusco, em 2004, o projecto de formação de uma Comunidade Sul-Americana de Nações (CSAN), hoje UNASUL, que se pretende idêntica à União Europeia. Resultado da soma dos Estados-membros do Mercosul com os da Comunidade Andina e ainda o Chile, a UNASUL[1] seria criada a 23 de Maio de 2008, com a forma de uma organização internacional (regional) com personalidade jurídica. Dispondo de um Conselho de Chefes de Estado e de Governo, de um Conselho de Ministros dos Negócios Estrangeiros, de um Conselho de Delegados e de uma Secretaria Geral com sede em Quito, a UNASUL viria a ter também um Conselho de Defesa a partir de Março de 2009, constituindo um avanço significativo no sentido da coordenação de políticas entre os seus membros, marco no qual terá lugar a edificação do gasoduto Venezuela-Brasil-Argentina e do Banco do Sul.
Com efeito, a UNASUL, pretendendo desenvolver um plano energético e um banco de desenvolvimento, para promover a integração regional e garantir uma maior presença internacional dos seus membros, criou, a 10 de Março de 2009, na capital chilena, o Conselho de Defesa – Conselho Sul-Americano de Defesa – organismo de defesa comum destinado a promover a concertação no plano militar e prevenir crises regionais. Composto pelos ministros da Defesa das doze repúblicas que fazem parte da organização (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela), o Conselho terá também por função supervisionar as despesas militares de forma transparente, até porque essas despesas aumentaram 25% em 2008, atingindo os USD 50 mil milhões[2].
Neste contexto, é importante a América do Sul assumir-se como sub-região distinta da América Latina, através da UNASUL, a qual deve ter em conta o enorme potencial político de que goza. Afinal, são doze países dentro de um espaço contíguo, com uma população de quase 400 milhões de habitantes – o equivalente a 6% da população mundial – com integração linguística; uma região que tem das maiores reservas de água doce e biodiversidade do mundo, enormes riquezas em recursos minerais, píscicolas e agrícolas, com um território de cerca de 17 milhões de quilómetros quadrdaos – o dobro do território norte-americano[3].
Os objectivos centrais da UNASUL são o fortalecimento do diálogo político entre os Estados-membros e o aprofundamento da integração regional, especialmente no que se refere à integração económica e produtiva, mecanismos financeiros, desenvolvimento social, cooperação cultural e desenvolvimento da infraestrutura regional nas áreas dos transportes, energia e comunicações.
É evidente que não se podem, à priori, apontar garantias de que as debilidades que surgiram no Mercosul, na Comunidade Andina e na ALALC não se venham também a manifestar na UNASUL, mas como bem refere o Prof. Doutor Luiz Alberto Moniz bandeira, “la Unión Europea ha demorado 60 años para constituirse y aún asi hay países en Europa que no la integran, como Noruega, otros, como Inglaterra y Suecia que no aceptaron el Euro, y también Francia y Holanda que rechazaron la Constitución. No se puede comparar el Mercosur con la Comunidad Andina y la ALALC, pues son proyectos muy diferentes. El Mercosur es una unión aduanera, aunque todavía imperfecta, la perspectiva es la de evolucionar para un mercado común, lo que ni la Comunidad Andina ni mucho menos la ALALC se proponen”[4].
Por outro lado, sendo certo que a UNASUL não pretende hostilizar os EUA, é evidente que a sua constituição é uma forma eficaz de evitar a subordinação dos países do América do Sul aos EUA ou à União Europeia ou a qualquer outra grande potência – “solamente unidos los países de América del Sur podrán obtener mejor inserción internacional y tener peso en las negociaciones con otros bloques o potencias económicas”[5]. Neste contexto, Cuba, apesar de estar nas Caraíbas, na zona de influência dos EUA, poderá vir a integrar a organização – até porque não pretende voltar a estar económica e politicamente subordinada aos EUA como esteve antes da Revolução de 1959. O interesse de Cuba é aproximar-se cada vez mais do Brasil, como potência industrial, mas o seu regime não democrático impedirá o total envolvimento do país nos esforços regionais de integração, sendo certo que uma democratização do regime cubano não se prevê para um futuro a curto prazo.
Paradoxalmente, a UNASUL foi criada no momento em que a integração latino-americana enfrenta a sua pior crise desde o impulso que lhe foi dado no início da década de 1990. O que, se poderá significar uma tentativa de ultrapassar essa crise, poderá reflectir, igualmente, a crescente fractura entre a integração na América do Norte (cada vez mais ligada a Washington) e o projecto sul-americano de integração (subordinado à liderança do Brasil).
Na realidade, em grande medida a UNASUL resulta de um desenho brasileiro, embora ela ofereça, a todos os seus membros, grandes perspectivas estratégicas. Para além da liderança que confere ao Brasil, abre-lhe maiores mercados para as manufacturas brasileiras, assim como recursos energéticos, melhor acesso aos portos e mercados do Pacífico e uma crescente relevância da sua agenda global. Para o Chile, a UNASUL pode significar uma ferramenta regional para melhorar a provisão de gás do país, assim como limitar o potencial de conflito nas suas relações bilaterais com a Argentina e a Bolívia. Para esta, a UNASUL poderá funcionar como âncora de estabilidade, abrindo mercados às suas exportações de gás, atraindo investimentos estrangeiros em infraestruturas e melhorando o acesso boliviano aos portos chilenos do Pacífico. O Peru poderá vir a fortalecer, através da UNASUL, o seu papel como porta de entrada para os mercados do Pacífico, enquanto, para o Equador e a Colômbia, menos interessados na UNASUL, esta poderá proporcionar a diversificação das respectivas relações externas, até agora demasiado focadas nos EUA. Para a Venezuela, a UNASUL virá, seguramente, desenvolver as complementaridades económicas em matéria energética com o Brasil, fortalecendo, por outro lado, a influência regional de Chávez.
A UNASUL foi criada a partir do processo desencadeado pela Cimeira Sul-Americana de 2000, embora apenas tenha sido formalmente estabelecida em Dezembro de 2004, na Terceira Cimeira Presidencial de Cusco, no Peru, com o nome de Comunidade Sul-Americana de Nações (CSAN). Apesar do objectivo inicial ser avançar na convergência dos esquemas de integração numa área de livre-comércio sub-regional, a CSAN acabou por nascer com o objectivo de estabelecer uma forte e consolidada missão política à semelhança do exemplo paradigmático da União Europeia.
A UNASUL funda-se em três grandes componentes:
1. Coordenação política no campo da política externa dos Estados-membros;
2. Criação de uma área de livre-comércio através da convergência da Comunidade Andina, do Mercosul, do Chile, do Suriname e da Guiana;
3. Estabelecimento, em 2000, do Programa Regional IIRSA – Integración de la Infraestructura Regionale Sudamérica – pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento e pela Corporação Andina de Desenvolvimento, no sentido de criar redes de transporte sub-regionais e construir corredores inter-oceânicos na América do Sul.
Nas últimas cimeiras, a CSAN, depois apelidada de UNASUL, alargou o seu âmbito de actuação, passando a integrar, também, a infraestrutura energética; o objectivo de alcançar a convergência real das suas economias, por forma a ultrapassar as enormes assimetrias; e a cooperação financeira através da criação do Banco do Sul.
Não obstante o alargamento do seu âmbito de actuação, a UNASUL ainda é apenas a expressão de um regionalismo light de natureza intergovernamental. Até 2007, ela não teve qualquer Tratado Constituinte que lhe conferisse existência formal, tampouco, em termos políticos, um acordo estabelecendo um pequeno secretariado, o que apenas viria a ocorrer a partir de 2008. Assim, hoje, em termos comerciais, a UNASUL repousa sobre Instituições existentes de facto, especialmente as da Comunidade Andina e do Mercosul.
O grande obstáculo da UNASUL continua a ser, todavia, as diferentes visões que a Venezuela e o Brasil têm sobre a natureza, o conteúdo e o formato institucional que o novo processo regional deve apresentar. A Venezuela, com o apoio da Bolívia e do Equador, encara a UNASUL como a sucessora da Comunidade Andina e do Mercosul, constituindo-se como a alternativa ao modelo neoliberal seguido por estes dois processos de integração. De acordo com a visão venezuelana, a UNASUL deveria concretizar a criação de uma área de livre-comércio em 2010. O Brasil, com o apoio da Argentina, do Chile e da Colômbia, encara a UNASUL como um guarda-chuva para os esquemas integracionistas sul-americanos que já existem no âmbito do comércio, da infraestrutura, da energia e da cooperação financeira. Apenas em Abril de 2007, na Primeira Cimeira sobre Energia, decorrida na Ilha Margarita, na Venezuela, foi alcançado um acordo sobre o nome UNASUL como substituto da CSAN, o estabelecimento de um Secretariado Geral em Quito, no equador e sobre a designação de Rodrigo Borja como Secretário-Geral da nova organização.
Não obstante o acordo alcançado, em Abril de 2007, relativamente ao nome UNASUL como substituição da CSAN, os desacordos sobre o futuro da nova organização mantiveram-se.
A Venezuela seguiu mantendo os seus próprios projectos de integração: o Tratado Comercial dos Povos (TCP) e a Alternativa Bolivariana das Américas (ALBA), sendo que o primeiro, assinado em Maio de 2006 (entre a Venezuela, a Bolívia e Cuba), é considerado o instrumento comercial da ALBA, ainda que, em ambos, falte substância económica, especialmente em matéria de comercialização de petróleo e hidrocarbonetos a preços preferenciais, e ambos rejeitem os princípios do livre comércio, baseando-se em mecanismos de comércio compensado.
Ademais, a Bolívia, o Equador e a Nicarágua adoptaram uma postura pragmática relativamente aos projectos regionais de integração. A Bolívia segue firme na Comunidade Andina de Nações, procurando estreitar laços com o Mercosul, ao mesmo tempo que participa nas negociações da CAN com a União Europeia. Os acordos que o governo boliviano estabeleceu, em Outubro de 2006, com diversas companhias petrolíferas estrangeiras – incluindo com a brasileira Petrobrás – significam laços mais estreitos com a Argentina e o Brasil e o desejo de alcançar uma maior autonomia para o seu modelo energético e sua política externa. Também o Equador vem seguindo um caminho autónomo no seio da ALBA e do Tratado Comercial dos Povos, enquanto a Nicarágua prossegue uma estratégia que oscila entre a retórica radical e o pragmatismo de uma política externa que procura retirar vantagens do potencial petrolífero da Venezuela.
Os desentendimentos dos países sul-americanos face ao caminho a seguir em matéria de cooperação intra-regional não anulam o potencial dessa cooperação. Há ganhos potenciais efectivos na integração sul-americana, especialmente porque há países com grandes reservas (Bolívia e Venezuela) e países com necessidades crescentes de energia para sustentar o crescimento económico (Brasil e Chile).
Os próprios custos da não-integração afiguram-se gigantescos. Se poderão surgir disputas causadas pela escassez, poderá também crescer a incerteza em torno da dependência extra-regional face a mercados e fornecedores. Simultaneamente, há riscos e custos inerentes ao uso de vias alternativas prejudiciais ao ambiente, designadamente a opção nuclear, assim como menos vantagens para os governos que necessitam de recursos para prosseguir políticas sociais e produtivas. Exemplos destes custos e riscos são a crise energética por que o Brasil passou em 2001-2002 e as disputas entre a Argentina e o Chile em 2003-2004 em torno dos fornecimentos de gás.
Na realidade, a integração energética começou a afirmar-se um tema central na agenda da CSAN/UNASUL, num contexto internacional pouco favorável caracterizado pela demanda crescente, a instabilidade dos mercados petrolíferos, a guerra do Iraque, o risco de conflito no Irão, a crise económico-financeira actual e as crescentes preocupações em matéria de segurança energética. Neste sentido, a agenda regional relativamente à integração energética possui três grandes e centrais desafios: o planeamento e construção de infra-estruturas necessárias para ligar as reservas energéticas aos respectivos consumidores; o financiamento dessas infra-estruturas; e o estabelecimento de acordos de regulamentação comum e garantias legais para os governos e para os operadores públicos e privados.
Facto é que cada um tem perseguido o seu caminho. O Chile encara a integração regional como a melhor forma de garantir a sua segurança energética, por forma a ultrapassar os conflitos com a Argentina e com a Bolívia. O Brasil prossegue numa estratégia de auto-suficiência energética em torno da consolidação da Petrobrás como actor regional. A Venezuela cada vez mais adopta uma estratégia ideológica que visa angariar maior autonomia relativamente aos seus principais fornecedores (os Estados Unidos), assim como apoios para a liderança das suas alianças sul-americanas. Procurando controlar as principais reservas e mercados de gás da região, a Venezuela estimula a construção do Gasoduto do Sul, um enorme pipeline de gás entre a Venezuela, o Brasil e a Argentina, ao mesmo tempo que criou a Petrocaribe e a Pteroamérica no sentido de estabelecer joint ventures com companhias petrolíferas nacionais para vender petróleo com financiamentos preferenciais, e nacionalizou, unilateral e radicalmente, companhias petrolíferas bolivianas e a Petrobrás brasileira, visando alcançar uma posição dominante para a sua Petróleos de Venezuela, Sociedad Anónima – PVDSA.
Os desentendimentos em torno da integração energética atingiram o clímax na Cimeira Energética da Ilha Margarita, em Abril de 2007, quando o presidente Chávez desaprovou a preferência brasileira pelo etanol e pelos biocombustíveis. Mais tarde, em Novembro, quando o Brasil anunciou a descoberta de novas reservas de petróleo e gás em Tupi, na bacia de Santos, a Petrobrás rejeitou constituir – como desejava a Venezuela – uma joint venture com o complexo venezuelano de gás de Mariscal Sucre. Uma decisão que pode significar o fim do projecto do Gasoduto do Sul e o fim dessa aliança.
Apesar de serem as mais gravosas, no actual contexto internacional de instabilidade energética, estas divergências não são as únicas a obstaculizar a implementação de projectos regionais de infra-estruturas energéticas. O anel de gás sul-americano, que ligaria os campos de gás de Camisea, no Peru, aos países do Mercosul e ao Chile pode bem ser uma tentativa de conter as ambições energéticas do governo boliviano. Será, todavia, difícil, acreditar que tal projecto venha a ser lucrativo sem o gás boliviano. Outra dificuldade, que poderá inibir potenciais investidores no sector, diz respeito à inexistência de regulamentação energética comum aos países interessados.
Na realidade, em matéria energética, o enfoque tem sido colocado, não na integração, mas na inter-conexão – uma falta de ambição que poderá sair cara.
Além das dificuldades inerentes às questões energéticas, a UNASUL enfrenta ainda outras complicações.
Em primeiro lugar, a proposta venezuelana de criar o Banco do Sul, uma nova instituição financeira regional que ambiciona ser uma alternativa ao FMI e ao banco Mundial, foi rejeitada por alguns parceiros sob liderança brasileira. Proposto pelo presidente Chávez em Agosto de 2004, o Banco do Sul não passava de um financeiro destinado a conceder empréstimos contingenciais em situações de crise financeira e de um banco de desenvolvimento destinado a financiar grandes projectos em infra-estruturas. Não obstante o desacordo em torno da proposta, depois de longas negociações, o Banco do Sul viria a ser efectivamente criado em Dezembro de 2007, em Buenos Aires, ainda que questões importantes como os estatutos e a distribuição de votos pelos membros tivessem ficado por decidir. Assim, a nova instituição financeira da América do Sul não parece ser mais do que uma modesta instituição de crédito destinada a conceder empréstimos, com um tamanho e uma missão demasiado limitados. Uma redundância, se pensarmos nos 67 biliões providos pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Estes desenvolvimentos revelam os limites dos projectos venezuelanos para a integração sul-americana. Apesar da gravidade dos problemas, o maior obstáculo ao fortalecimento da UNASUL será, porventura, a incapacidade de conciliação das lideranças brasileira e venezuelana no seio da nova organização, enquanto outros países delegam, num ou noutro, as suas responsabilidades, numa clara demonstração de falta de vontade em exercer influência. A Argentina de Cristina Kirchner tem estado absorvida em si própria e o Chile mantém-se na sua posição periférica em matéria de integração sub-regional. Dois exemplos apenas.
Será, todavia, difícil que a UNASUL ganhe relevância e influência internacionais sem uma clara liderança que a dote de um senso de direcção – o que nem a visão ideológica da Venezuela, nem a hegemonia benevolente do Brasil parecem capazes de promover.
Na acertada visão de José António Sanahuja[6], é a liderança brasileira que, a longo prazo, importa. Afinal, a conformação do espaço sul-americano deve muito ao desenho que o Brasil lhe tem impresso. A diplomacia e os actores estatais brasileiros, as entidades semi-públicas como o Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) e a petrolífera Petrobrás têm corporizado a liderança brasileira da integração sub-regional, em função dos respectivos pesos políticos internacionais e, por conseguinte, a capacidade de influência das suas acções.
A tradição realista da diplomacia brasileira, presa à visão nacionalista dos interesses nacionais, assim como o peso económico e político internacionais que angariou, permitem-lhe perseguir os seus objectivos, regionais e globais, minimizando os custos e as concessões. Demonstrando preferência pela intergovernamentalidade e os acordos pouco institucionalizados, sem grandes compromissos em termos de comércio, finanças e política externa, o Brasil tem liderado o Mercosul e fortalecido as negociações com os EUA e a Europa, para além das próprias negociações multilaterais.
Na realidade, “… Brazil hás the advantage of having the economic and political clout to assume the real costs of regional leaership. The challenge is to design a Basic agreement about the future of South American integration capable of integrating the legitimate interests of Brazil and its global goals, ando f giving other countries enough political sapce and economic incentives do participate”.[7]

[1] O Tratado Constitutivo da UNASUL, que entra em vigor depois de nove dos doze Estados-membros o terem ratificado, tem um carácter geral. Tem vinte e sete artigos sobre os órgãos, os objectivos e os fins, sendo a forma de deliberação por consenso. O Tratado, em protocolo anexo, fala ainda da criação de um Parlamento Sul-Americano sediado em Cochabamba.
[2] Cfr. Mário Miranda, Agência Lusa, de Lisboa, 10 de Março de 2009.
[3] Cfr. Luiz Alberto Moniz Bandeira, em entrevista à La República Montevideo, Viernes, 23 de Mayo de 2008, año 9, nº 2917.
[4] Cfr. Luiz Alberto Moniz Bandeira, idem.
[5] Idem.
[6] SANAHUJA, José Antonio; From Open Regionalism to the Union of South American Nations: Crisis and Change in Latin American Regional Integration, exemplar cedido pelo autor, pp. 12.
[7] Cfr. Idem, pp. 13.

Friday, May 8, 2009

O ACUMULADO HISTÓRICO DA DIPLOMACIA BRASILEIRA

O ACUMULADO HISTÓRICO DA DIPLOMACIA BRASILEIRA



Na evolução da política externa do Brasil, certos princípios e valores vêm sendo agregados à diplomacia. Esses princípios e valores tornaram-se inerentes à conduta da política externa brasileira e são de tal modo marcantes que, além de conferirem previsibilidade à acção externa do Brasil, moldam essa conduta, impondo-se à sucessão dos governos e, até mesmo, às alterações de regime. Contribuem, ainda, para fazer da política externa brasileira uma verdadeira política de Estado, conferindo-lhe racionalidade e continuidade – mais do que mudança.
Neste sentido, pode-se identificar o acumulado histórico da política externa brasileira referindo, em primeiro lugar, que o desenvolvimento económico, ou a busca deste, é a base da política externa brasileira – e foi-o especialmente de 1930 a 1989. Na verdade, o desenvolvimento económico é a preocupação central da tradicional visão latino-americana das Relações Internacionais. A preocupação central em torno da qual giram as abordagens internacionalistas latino-americanas é o subdesenvolvimento a que as suas sociedades se vêem sujeitas. É como se, na sociedade internacional, existissem dois esquemas de Relações Internacionais. Como assinala o Professor Doutor Amado Luiz Cervo, da Escola de Brasília, “…as políticas exteriores dos países do Sul – pelo menos é o caso do Brasil – centralizam suas preocupações em torno dos problemas do desenvolvimento. O mesmo não ocorre com os países avançados do Norte. É possível perceber dois esquemas de relações internacionais contemporâneas. Entre países avançados, as relações igualitárias deixam transparecer um caráter lúdico. Zelar pela paz ou preparar-se para a guerra, compor ou desfazer alianças, construir a potência e o prestígio, difundir ideologias e valores situam-se do lado do divertimento. Entre países desiguais, para aqueles que são atrasados, as relações internacionais deixam transparecer o caráter existencial. Delas dependem, em boa medida, os ritmos de desenvolvimento, as oportunidades de melhoria das condições sociais, o cotidiano. (…) Os nortistas continuam admitindo que as teorias do desenvolvimento, desde Keynes, integram a ciência econômica, não a ciência política. Como se a pobreza, a dominação e a dependência, a cooperação e a exploração não fizessem parte do mundo real das relações internacionais”[1].
Também a defesa da autodeterminação dos povos, da não-intervenção e da solução pacífica de conflitos surge como parte do acumulado histórico da política externa brasileira, assim como o jurisdicismo, no sentido em que os tratados internacionais são assimilados como factores de estabilização das relações internacionais. O multilateralismo normativo é um outro aspecto importante do acumulado histórico da actuação externa do Brasil, sendo que, neste sentido, o Brasil participou da tentativa de erigir uma Nova Ordem Económica Internacional ao lado do Terceiro Mundo nos anos 1970 e, hoje, procura que a globalização crie uma ordem internacional mais justa, transparente e igualitária.
O realismo, o pragmatismo e a acção externa não confrontacionista são igualmente características marcantes da política externa do Brasil, bem como a criação de parcerias estratégias, surgindo relevantes, em momento de crise internacional, as parcerias Brasil-Alemanha e Brasil-Japão – em função da depressão das relações Brasil-EUA – sem esquecer o relacionamento que o Brasil tem desenvolvido com os outros países emergentes, designadamente com a Rússia, a China e, até, a própria Índia. Vale lembrar que, relativamente aos vizinhos da América do Sul, o Brasil tem procurado sempre um trato de cordialidade oficial, que o aconselha a não ostentar a grandeza nacional e a superioridade económica de que desfruta em relação aos vizinhos.
Tendo agregado, mais recentemente, a preocupação com o narcotráfico, a luta contra o macroterrorismo e a protecção ambiental à sua política externa, o Brasil desenvolve, tradicionalmente, uma inserção internacional independente, o que pressupõe uma visão própria de mundo, a autonomia do processo decisório, a formulação própria da política externa e sua posterior execução – ainda que períodos de excepção a esta independência tenham igualmente existido.
Tendo por base este acumulado histórico – sendo de ressaltar a tese dos Três Ds de Araújo de Castro, Desenvolvimento, Descolonização e Desarmamento – a política externa brasileira vem evoluindo, desde a independência e, sobretudo, desde a implantação da República (1889) seguindo em geral estes vectores, mas oscilando, em períodos de excepção, no que se refere à independência na inserção internacional. Dito de outro modo, a característica essencial, o grande traço de continuidade da política externa brasileira é a independência com que esta é formulada e executada – uma independência, sobretudo, relativamente aos Estados Unidos. Todavia, nesse processo/linha de continuidade, tem havido períodos de excepção, hiatos, nos quais a política externa brasileira se alinhou às directrizes norte-americanas e deixou de lado a autonomia que a caracteriza de um modo geral.
Apenas durante a Primeira República (1912-1930) esse não seria o grande traço de continuidade da acção externa do Brasil. A linha condutora da política externa brasileira de então era o alinhamento face aos EUA e o que fugia a este comportamento era considerado marginal e excepcional.
De facto, na primeira metade do século XX, quando a sociedade brasileira estava ainda na sua infância evolutiva, marcada pelos parâmetros da agroexportação de Clodoaldo Bueno, a política externa do país teve como tendência predominante a inserção do Brasil no contexto hemisférico, tendo como eixo central o estreitamento das relações com os EUA, de acordo com a aliança não escrita concebida pelo Barão do Rio Branco, cuja gestão corresponde ao único hiato autonomista desse período.
Efectivamente, com Rio Branco, a política externa brasileira foi temporariamente transformada num instrumento de apoio ao desenvolvimento económico, utilizada como instrumento estratégico para alcançar a industrialização do Brasil, buscando-se uma relativa autonomia na dependência e uma barganha para a defesa dos interesses brasileiros. Após a gestão Rio Branco, o restante da República Velha retomaria o alinhamento face a Washington.
Quando Getúlio Vargas subiu ao poder, em 1930 (onde permaneceria até 1945), como reacção a esse conservadorismo de estruturas obsoletas, a política externa brasileira retomaria a lógica de Rio Branco e o Brasil transitaria, do modelo liberal-conservador, para o desenvolvimentista, cuja orientação sócio-político-económica assentaria numa busca incessante pelo desenvolvimento económico através do método da substituição de importações. Regendo-se internamente por este nacional desenvolvimentismo populista de esquerda, o Brasil de Vargas actuaria, externamente, de acordo com esse padrão de comportamento, numa postura que atingiria o apogeu na barganha nacionalista às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Neste período, o Brasil vendeu a preço elevado a sua adesão a um conflito que não lhe interessava. O Brasil jogava com o Eixo e com os Aliados, negociando e apoiando aquele que, no momento, mais vantagens económicas lhe oferecesse, sem pejo em voltar-se de um para outro consoante essas vantagens. O Brasil e a América do Sul ganhavam rapidamente um poder de negociação como nunca haviam tido, sem que os EUA se apercebessem dessa relevância no contexto declarado de beligerância.
Apenas com as vitórias de Rommel no Norte d`África é que os Estados Unidos se aperceberam da importância da região, começando Roosevelt a temer uma invasão alemã às Américas, a partir do Nordeste brasileiro. Roosevelt oferece a Vargas, neste contexto, no célebre encontro de 1942, o financiamento integral da Siderurgia de Volta Redonda, nos arredores do Rio de Janeiro, como forma de comprar a adesão brasileira aos Aliados. Conseguiu e, Volta Redonda, a maior siderurgia da América Latina, seria construída em tempo recorde, começando a funcionar logo em 1946.
Vargas criara, assim, para o Brasil, uma política externa autónoma; uma política externa que, nacionalista e preocupada com o desenvolvimento económico, chamar-se-ia nacional desenvolvimentismo.
Todavia, o propósito de Getúlio teve uma duração limitada. Ele actuava ainda num momento dominado pelas velhas estruturas regionais de poder e, quando as contradições internas da sociedade brasileira se avolumaram, ele caiu e, junto, o seu nacional desenvolvimentismo. Em 1946, a reacção conservadora a Vargas colocou no poder Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), por forma a terminar com o varguismo incómodo ao status quo da ordem interna brasileira e da ordem externa hemisférica. Dutra esperava que o Brasil viesse a ter uma relação privilegiada com os Estados Unidos por o terem apoiado na guerra. O novo presidente chegou mesmo a pensar que o Brasil poderia ser convidado a integrar a Organização do Atlântico Norte que era criada em 1949. Todavia, em função da localização a Sul do Brasil, ademais já integrado nas estruturas hemisféricas do pan-americanismo, no seio da Organização dos Estados Americanos (OEA) e militarmente protegido da subversão comunista pelo Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), o convite não se concretizou. O Brasil já se havia, por outro lado, colocado dos EUA na Ordem bipolar dos Pactos Militares, pelo que qualquer acção norte-americana visando esse objectivo era desnecessária. A decepção de Dutra não invalidou o alinhamento brasileiro aos EUA, voltando o Brasil, tal como na Primeira República, às formas mais ou menos passivas de submissão aos Estados Unidos.
O desenvolvimento económico do Brasil – que já havia estado presente na equidistância pragmática de 1935 a 1942 e no alinhamento do Brasil aos EUA em 1942, quando o país lucrou em reequipamento económico e militar – não deixou de dominar a política brasileira. Muito pelo contrário: o alinhamento incondicional de Dutra aos EUA visava, precisamente, uma relação especial com a superpotência ocidental, que deveria implicar um tratamento especial face às reivindicações brasileiras de auxílio económico para o desenvolvimento económico interno.
O método do alinhamento a Washington para o alcance desse fim não foi, todavia, o mais acertado perante as dinâmicas do Brasil de então e, nesse contexto, germinariam as sementes desenvolvimentistas de Vargas. Ou seja, o nacional desenvolvimentismo de Vargas, conquanto não tenha vingado na sua época, viria a ter muito mais importância no futuro do que se poderia supor, pois funcionaria como as raízes profundas das características de autonomia que a política externa brasileira voltaria a ter, assim que Dutra saísse do poder.
De facto, em 1951, houve uma reacção ao conservadorismo de Dutra, que levou Vargas novamente ao poder (1951-1954), com uma nova aplicação, interna e externa, do nacional desenvolvimentismo populista de esquerda de outros tempos. O desenvolvimento económico do país continuava a ser a prioridade, mas desta vez Vargas teria de adaptar-se à era bipolar.
O contexto interno e externo que Vargas encontrou era, de facto, bastante distinto do que o que existira entre 1930 e 1945.
Internamente, o incremento da industrialização e da consequente urbanização levaram à afirmação da burguesia e de uma classe operária nascente que, porém, impunha novas exigências ao poder político. O sistema político era obrigado a dar resposta à crescente participação popular, o que levou Vargas a retomar o desenvolvimentismo todavia abrindo a economia brasileira ao exterior, em busca de capitais, tecnologia e cooperação económica.
Externamente, e uma vez que Getúlio precisava desses capitais e, por conseguinte, da cooperação norte-americana, no contexto de Guerra Fria, em que os EUA, mais preocupados com a Europa, desligavam-se da América Latina, que sabiam de antemão estar do seu lado, a margem de manobra do Brasil foi drasticamente reduzida. Situação que se acentuou quando, em 1953, o republicano Eisenhower se tornou presidente dos Estados Unidos. Estando a Europa e o Japão ainda em processo de reconstrução e o Terceiro Mundo ainda muito embrionário, restava ao Brasil apenas a cooperação de origem norte-americana, à qual não tinham como fugir.
Esta contradição externa somava aos distúrbios pelos quais passava a sociedade brasileira, a braços com uma crescente polarização entre direita e esquerda, ao mesmo tempo que o desenvolvimentismo de Vargas era cada vez menos apoiado e gerava sucessivamente mais críticas. Esta situação conduziu Vargas ao suicídio – para não ter de renunciar – o que provocou uma imensa comoção nacional.
Em seu lugar, a reacção conservadora fez ascender ao poder uma figura manejável pelos EUA, Café Filho (1954-1955), visando pôr ordem ao caos populista esquerdizante do Brasil. Novamente, interna e externamente o Brasil voltou a alinhar-se com a potência norte-americana, promovendo uma total abertura económica ao capitalismo, assim como a afirmação das teses da Escola Superior de Guerra (ESG). A política externa brasileira vivia o primeiro hiato da linha de autonomia e independência na inserção internacional do país que tem vingado até hoje.
Figura apagada da História do Brasil, que permaneceria na Presidência nem um ano completo, Café Filho – dos períodos do país menos estudados – depressa motivaria uma forte reacção ao conservadorismo que tentou imprimir às dinâmicas do Brasil, com a eleição de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-1961). O desenvolvimentismo ganhava novamente força, especialmente consubstanciado no Plano de Metas dos 50 anos em 5. Necessitando de capitais externos para levar adiante esse plano, em função da escassez de reservas do Brasil, Jk teria de associar esse desenvolvimentismo à entrada desses capitais estrangeiros no país, o que, se criou um desfasamento entre a política e a economia, depressa deu origem a uma síntese entre o desenvolvimentismo e a necessidade de capitais estrangeiros – leia-se norte-americanos – na formulação do que seria o desenvolvimentismo associado (associado aos capitais externos).
Assim, o governo de JK foi marcado por uma iniciativa política que procurava viabilizar a atracção de capitais públicos estrangeiros (leia-se norte-americanos) para o Brasil, de acordo com o desejado Plano de Metas a nível interno. Esse instrumento político foi a célebre Operação Pan-Americana (OPA), tendo-se a política externa de Kubitschek caracterizado pela defesa do pan-americanismo. Movida politicamente sobretudo por questões económicas, a política externa de JK não constituía exemplo isolado da adopção dessa postura pelo Brasil, voltando o desenvolvimentismo económico a ser o vector central das políticas interna e externa do Brasil, como sucedera com Rio Branco e, sobretudo, com Vargas e, até mesmo, com Café Filho e Dutra.
Os primeiros passos da política externa de JK foram no sentido de reafirmar a solidariedade política frente aos Estados Unidos e à causa ocidental, em busca de vantagens económicas. A cedência da ilha de Fernando de Noronha para a instalação de um posto norte-americano de observação de foguetes teleguiados, em fins de 1956, constitui prova cabal desse alinhamento[2].
Foi assim que, ajustando necessidades económicas internas e externas, o governo JK estabeleceu a agenda diplomática do Brasil em torno, por um lado, da negociação de acordos regionais e/ou internacionais que estabilizassem as cotações internacionais do café e, por outro, das reivindicações de ampliação e flexibilização dos empréstimos fornecidos sobretudo pelo Banco Mundial[3], sendo que, a partir de 1958, a agenda diplomática brasileira seria substancialmente ampliada, revelando-se fundamental na defesa do panamericanismo.
A conjuntura internacional evoluía rapidamente. A partir de 1955, com o processo de desestalinização e a subida ao poder de Kruschev na União Soviética e, depois, com o início da coexistência pacífica em 1956-1957, a política externa soviética sofreria alterações significativas que se repercutiriam também sobre a América Latina. Esta atitude criou, nos círculos políticos norte-americanos, o receio de uma possível penetração económica soviética na América Latina que fosse, de alguma forma, favorável à região e a fizesse pender para o lado soviético da Balança de Poderes.
Evoluía, por outro lado, a própria conjuntura política e económica da América Latina. De uma parte, o processo de redemocratização que, durante os anos 1955 e 1958, ocorrera em diversos países latino-americanos (Argentina, Peru, Venezuela e Colômbia) desgastou, junto da opinião pública e dos próprios governos latino-americanos, a imagem da Administração Eisenhower (e dos EUA em geral), que apoiara politicamente os governos ditatoriais de Rojas Pinilla na Colômbia, de Pérez Jimenez na Venezuela e de Manuel Odria no Peru. De outra parte, a conjuntura económica era amplamente desfavorável para a América Latina. A deterioração das relações entre os EUA e a América Latina criava assim diversos receios aos EUA, abrindo caminho ao surgimento de propostas que preconizavam uma ampla revisão dessas relações. Foi neste contexto que JK lançou a Operação Pan-Americana (OPA), procurando mobilizar os demais países latino-americanos para pressionarem o presidente Eisenhower a adoptar uma atitude de maior cooperação com o desenvolvimento da região, com base no argumento de que o estado de subdesenvolvimento poderia aproximar a América Latina dos países comunistas.
Ao mesmo tempo que motivava, da parte dos EUA, a Aliança Para o Progresso – uma amplo projecto norte-americano que visava melhor enquadrar a América Latina na política externa norte-americana, ainda que de resultados minguados – a OPA produzia, internamente, o fortalecimento do grupo nacionalista desenvolvimentista adepto do desenvolvimento económico e da inserção internacional independente dos EUA.
É no contexto da OPA e da radicalização esquerdista do Brasil que ascende ao poder Jânio Quadros (1961), que irá levar a política externa autónoma aos extremos, com a recuperação da barganha nacionalista dos anos 1950, desenvolvendo a sua Política Externa Independente, que o governo seguinte, de João Goulart (1961-1964) haveria de extremar ainda mais.
De facto, em matéria de relações internacionais, o governo Jânio Quadros procurou, desde o início, imprimir uma política externa independente face aos Estados Unidos; política esta que se materializou no reatamento de relações diplomáticas com a União Soviética, na intensificação dos laços comerciais com os países socialistas, na recusa à política de isolamento de Cuba do sistema interamericano e na adopção de uma política anti-colonialista e de afirmação do princípio da não intervenção.
Segundo Pedro Sampaio Malan[4], a análise da política externa brasileira de 1961 a 1964, quando se delineou a Política Externa Independente, abarca três elementos distintos mas integrados. Em primeiro lugar, há a retoma do ideário da Operação Pan-Americana com uma “noção mais clara das possibilidades e responsabilidades do Brasil, após o surto desenvolvimentista-associado da segunda metade dos anos 50”[5]. Em segundo lugar, a política externa independente enquadrou perfeitamente o nacionalismo que vinha funcionando como ideologia dominante do Estado, ante o esforço da industrialização brasileira, apesar deste processo ter sido feito com recurso amplo ao capital estrangeiro. A população apoiava a política externa independente face aos EUA, o que tanto Quadros como Goulart perceberam, daí retirando vantagens ao nível da política interna, especialmente em fase de grandes dificuldades económicas. Em terceiro lugar, tanto a revolução cubana quanto o agravamento da tensão Leste-Oeste e, ainda, o processo de descolonização permitiram aos governos Quadros e Goulart explorar a possibilidade do Brasil afirmar, externamente, a sua autonomia face à hegemonia norte-americana sobre a América Latina. Para tanto, seria necessário que o Brasil ultrapassasse o âmbito do subsistema interamericano e alcançasse uma afirmação mais ampla no contexto internacional, o que, nas condições da década de 1950, nem Vargas nem Kubitschek haviam conseguido fazer.
Neste sentido, a posição afirmativa e independente do Brasil, no período que vai de 1961 a Março de 1964, manifestou-se em quatro áreas específicas:
Cuba e as questões da autodeterminação e não-intervenção;
Relações com os países socialistas, especialmente com a URSS;
Anticolonialismo na África;
Apoio à inclusão, na agenda da Assembleia Geral das Nações Unidas, do ingresso da China na Organização.
Foi em torno destas questões que se estruturou a oposição interna à política externa independente, que desejava o retorno do Brasil à órbita do sistema regional interamericano e à submissão face aos EUA. Situação que gerou uma polarização extrema da sociedade brasileira em direita e esquerda e que levaria o presidente Quadros a renunciar visando obter do Congresso poderes reforçados. Foi na realidade um golpe palaciano, já que o objectivo não era deixar a Presidência, mas reforçar os seus poderes, na convicção de o Congresso jamais permitiria a subida ao poder do vice João Goulart, de esquerda, num momento em que as forças da direita ganhavam terreno em torno do alinhamento económico e externo aos EUA. Enganou-se, mas o receio da ascensão do esquerdista Goulart levou à experiência parlamentarista no Brasil (1961-1963): Goulart assumia como presidente, mas com poderes reduzidos, tendo de partilhá-los com um gabinete ministerial presidido pelo primeiro-ministro Tancredo Neves.
Goulart é empossado presidente da República e, em termos de política externa, leva o Brasil pelos caminhos da total autonomia face aos EUA, levando ao auge a Política Externa Independente de Quadros.
Mas a Política Externa Independente levada aos extremos teria consequências imprevisíveis sobre a evolução interna do Brasil.
As contradições e dificuldades económicas do Brasil adensavam-se com a postura dos Estados Unidos relativamente ao reforço da Política Externa Independente com João Goulart.
De cato, não obstante os alcances da Política Externa Independente com Quadros e, particularmente, com Goulart, ao transformar a política externa brasileira em multilateral, relacionando-se o país com a Europa Comunitária, o Japão, o Terceiro Mundo e os países socialistas, a verdade é que os Estados Unidos, ainda que com o seu poderio internacional abalado, continuavam a ser dominantes e a ter uma forte capacidade de reacção à barganha nacionalista e à Política Externa Independente, o que determinaria a interrupção desta.
Esta interrupção está associada à crise do regime populista no Brasil. Desde a segunda metade do seu mandato que Goulart não conseguia controlar a situação interna e via-se empurrado, pelos sectores populares, para a radicalização que viria adensar as contradições do regime. Com a economia quase paralisada, o agravamento dos conflitos sociais e políticos deixou o governo sem alternativas, ameaçando ainda as bases do capitalismo do populismo brasileiro[6]. Assim, no célebre Discurso dos Três Ds, o embaixador Araújo Castro procurou salvar a Política Externa Independente despolitizando-a e concentrando-a em temas económicos, por forma a ultrapassar a inviabilização do neutralismo de Quadros e a inacção de Goulart ante as pressões norte-americanas. A política externa brasileira sofreu um acentuado refluxo. Mesmo assim, a Política Externa Independente continuava a desagradar aos conservadores, razão pela qual viria a estar no centro da reacção conservadora que culminaria com o golpe de 31 de Março de 1964.
De facto, com Goulart no poder, os EUA começaram a considerar o Brasil um caso perdido e, assim, começaram a articular o golpe que colocaria os militares no poder.
Castelo Branco, Costa e Silva e Emílio Garrastazu Médici procuraram conter o movimento popular e as tendências esquerdistas, alinhando Castelo Branco e Médici com os EUA, embora Costa e Silva viesse resgatar a ideia do projecto nacional, opondo-se aos Estados Unidos.
À frente das decisões das Forças Armadas, Castelo Branco envolveu o regime de contra-revolução permanente em que mergulhara o Brasil na doutrina segundo a qual o conflito político e ideológico entre os Estados Unidos e a União Soviética deslocara-se para o interior de cada país, assumindo o carácter subversivo da luta revolucionária. Neste contexto, considerava que a preservação da independência nacional exigia um certo grau de interdependência, que o levou a orientar a política externa brasileira pelas directrizes norte-americanas, com base no conceito, que ele próprio elaborara, das fronteiras ideológicas, que justificava o novo comportamento internacional do Brasil: abandono do terceiro-mundismo, do multilateralismo e da Política Externa Independente, compondo uma aliança automática com os EUA – no que constitui um novo hiato na tradição autonomista da política externa brasileira.
A sucessão de Castelo Branco pelo marechal Arthur da Costa e Silva teve por efeito resgatar o interesse nacional como fundamento essencial de uma política externa verdadeiramente soberana, já que o alívio da tensão Leste-Oeste parecia guiar a sociedade internacional cada vez mais em direcção ao policentrismo.
Assim, as relações internacionais do Brasil, durante o mandato de Costa e Silva, representaram uma profunda ruptura com o período anterior, opondo-se frontalmente aos desígnios norte-americanos. A política externa que o chanceler de Costa e Silva, Magalhães Pinto, prosseguia, virava-se para o desenvolvimento e a autonomia, à semelhança da Política Externa Independente, com a diferença de não mencionar a reforma social. Era a chamada diplomacia da prosperidade[7], que afirmava que a distensão Leste-Oeste fazia emergir o antagonismo Norte-Sul, pelo que o Brasil deveria definir-se, não como nação do Ocidente, mas como nação do Terceiro-Mundo. Por conseguinte, o Brasil deveria aliar-se aos restantes países do Terceiro-Mundo para com estes compor uma aliança que lutasse pela alteração das regras injustas do sistema internacional.
De acordo com as novas orientações da política externa, o Brasil procurou afastar-se do pan-americanismo em busca de um novo latino-americanismo. Neste sentido, propôs a cooperação e a integração regionais, assim como a cooperação nuclear, entre os países do Terceiro-Mundo; o relacionamento das nações ibero-americanas por meio da Comissão Especial de Coordenação Latino-Americana (e não da OEA); o aprofundamento das relações comerciais com os países socialistas; e a cooperação entre os países latino-americanos.
Com Médici a questão alterou-se. Em termos de política externa, o governo Médici era desenvolvimentista e pró-americano, desenvolvendo uma diplomacia que, na sequência do Brasil potência, buscava o interesse nacional. Esta diplomacia do interesse nacional buscava restabelecer, com os Estados Unidos, uma relação de confiança, especialmente nas áreas onde houvera, no período anterior, maiores divergências. Abandonando a solidariedade terceiro-mundista e o discurso politizado – substituído pelo pragmatismo – a nova estratégia internacional do Brasil abandonava o multilateralismo em benefício do bilateralismo, ambicionando colocar o Brasil no grupo dos países do Primeiro Mundo, e alinhava-se aos EUA mesmo não se submetendo a eles. Assim, o Brasil seguiu recusando-se a assinar o Tratado de Não Proliferação Nuclear e avançou com o desenvolvimento da própria indústria armamentista e estabeleceu laços com o Japão e a Europa Comunitária com vista à atracção de investimentos e tecnologia.
Neste contexto, é pertinente a interrogação sobre a conciliação das boas relações com os EUA e o desenvolvimento de um projecto nacionalista-industrializante de grande potência[8] – que para os governos anteriores havia sido impossível. De facto, num momento em que a Doutrina Nixon preconizava um afastamento dos EUA relativamente às querelas mundiais, através da transferência de tarefas para as potências regionais aliadas, e em que no Chile e no Peru estavam no poder governos de esquerda e em que na Argentina e no Uruguai as contradições adensavam-se, beirando a guerra civil, o Brasil surgia, para os EUA, como um aliado de peso para estabilizar a região, pelo que os EUA toleravam a não submissão do Brasil à sua orientação. Sendo que a situação da América do Sul permitiu o crescimento do Brasil face aos vizinhos.
Face a esta hegemonia regional brasileira e a necessidade que Washington tinha do Brasil para evitar a subversão comunista na América do Sul, num momento em que a preocupação primeira de Nixon era acabar com a questão do Vietname, existia, de facto, um espaço internacional para que o Brasil desenvolvesse o seu projecto de potência mundial sem a oposição norte-americana. A diplomacia do interesse nacional preocupava-se em aproveitar as brechas existentes no sistema internacional, daí que tenha apostado no bilateralismo em detrimento do multilateralismo, voltando-se para os países mais fracos.
Quando Geisel assume a Presidência, em 1974, procura retomar uma maior margem de manobra para o Brasil, através do Pragmatismo Responsável e Ecuménico, que determinava o estabelecimento de relações de forma variada e com quem fosse mais vantajoso.
Em função do relacionamento que o Brasil assim desenvolvia com os países do Terceiro-Mundo e dada a insatisfação geral relativamente aos laços com os EUA, a diplomacia de Geisel incrementou a cooperação comercial, a política de atracção de investimentos, a transferência de tecnologia e a implantação de projectos agrícolas e industriais com a Europa Comunitária e com o Japão. Relativamente à América Latina, o Brasil foi gradativamente abandonando o discurso de grande potência para estreitar relações com os vizinhos, particularmente com a Argentina, com a qual iniciou conversações para solucionar o problema do aproveitamento hidroeléctrico da Bacia do Prata.
A margem de manobra autonomista que Geisel imprimiu à política externa independente, através do Pragmatismo responsável, seria depois amplamente visível com Figueiredo 81979-1985), José Sarney (1985-1990), segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002) e com Lula (2003-2007-…). Assim, os governos de Fernando Collor (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994) e o primeiro mandato de Fernando Henrique (1995-1999) seriam novamente hiatos à tradição autonomista da política externa brasileira vigente desde 1930, alinhando-se incondicionalmente aos EUA.
De facto, o último governo militar (assim como o primeiro civil) foi marcado pela continuidade da política externa brasileira no quadro interno e externo cada vez mais adverso. Quadro no qual os EUA adquiriam, com Reagen, um novo protagonismo internacional, com a sua Iniciativa de Defesa Estratégica (IDE) a produzir uma nova Guerra Fria e a acirrar a bipolaridade, enfraquecendo a URSS e promovendo a subjugação política do Terceiro Mundo. Também as Nações Unidas enfraqueciam como instrumento de apoio aos países periféricos, enquanto Reagen terminava com o diálogo N-S e punha fim à proposta mexicana de criar uma Nova Ordem Económica Internacional, desarticulando, por conseguinte, a actuação coordenada do Terceiro Mundo. Simultaneamente, o neoliberalismo irrompia nos principais países do centro, eliminando qualquer esperança de sobrevivência das “experiências capitalistas nacional-desenvolvimentistas do Sul”[9]. O modelo desenvolvimentista esgotava-se.
Em ternos de relações internacionais o Brasil logrou obter grandes avanços, especialmente em matéria de respeito por parte da sociedade internacional. A política externa autodenominou-se universalismo porque se esforçou por manter a autonomia do Brasil num cenário internacional cada vez mais adverso, através de uma diplomacia que se espraiava em relações com os quatro cantos do mundo, na mesma lógica do Pragmatismo Responsável. Assumindo o Brasil como um país do Terceiro Mundo, a diplomacia de Saraiva manteve a actuação em convergência com os Não-Alinhados – embora não fosse membro pleno deste grupo – denunciando as estruturas políticas e internacionais da sociedade internacional capitalista.
Neste sentido, o Brasil continuou actuando nos fora internacionais segundo a lógica do Movimento dos Países Não-Alinhados, tendo apoiado a Argentina na Guerra das Malvinas/Falklands e mantido a presença em África, nos países do Médio Oriente e até mesmo na China.
Finalizando a abertura política iniciada por Geisel, Figueiredo concluiu com êxito a transição do regime militar para a democracia. Ainda que as eleições não tenham sido livres, houve uma verdadeira campanha eleitoral, com possibilidade de manifestação por parte da população, que depositou todas as esperanças no presidente eleito, Tancredo Neves, ainda que este fosse uma personalidade oriunda do regime – apenas era parte da oposição moderada ao regime.
Tendo sido eleito, não chegaria a tomar posse, pois adoeceria entretanto, vindo a falecer em Abril, já depois de empossado o vice José Sarney, que assumiu como programa de governo, a plataforma eleitoral de Tancredo – a Nova República.
A política externa da Nova República apresentou uma evolução muito particular. Rompeu com o pragmatismo responsável e com o universalismo, argumentando que o Brasil era um país ocidental, pelo que deveria maximizar as suas potencialidades individuais para chegar ao Primeiro Mundo. Deveria, assim, entrar em estreita cooperação com os Estados Unidos. Assim, afastou-se do Terceiro Mundo, desligando-se das reivindicações deste.
Tendo em conta a situação internacional, na qual os EUA reafirmavam a sua liderança, o socialismo entrava em período de reforma, com a ascensão de Mikhail Gorbatchov na União Soviética – o que sucedeu praticamente ao mesmo tempo em que José Sarney assumiu a Presidência do Brasil – e o Terceiro Mundo enfrentava graves dificuldades – em virtude da Reunião do G 7 em Cancun ter posto um ponto final no diálogo Norte-Sul, o Brasil decidiu aproximar-se dos Estados Unidos como forma de alcançar o desígnio de vir a pertencer ao Primeiro Mundo.
O Brasil iniciava, desta forma, a maximização das suas possibilidades de actuação internacional, em primeiro lugar através da valorização da América do Sul, com vista a estreitar os laços de cooperação e integração com a Argentina, que vinham sendo costurados há algum tempo. O entendimento entre os presidentes Sarney e Raul Alfonsín foi decisivo para a concretização deste objectivo, tendo ambos aproveitado a conjuntura adversa do ponto de vista económico e diplomático. A crise da dívida, fazendo os países latino-americanos ficarem vulneráveis às pressões do FMI e do Banco Mundial, a Guerra das Malvinas/Falklands e o conflito centro-americano – que permitia a Reagen trazer a Guerra Fria para a América Latina – motivou a aproximação entre o Brasil e a Argentina, em virtude de ter fomentado a solidariedade bilateral para fazer frente às novas pressões. O retorno da democracia em ambos os países voltava, por seu lado, a aproximar os regimes brasileiro e argentino
Floresciam as condições propícias à retoma das negociações para a integração económica entre os governos argentino e brasileiro, num momento em que os problemas em torno das hidroeléctricas que se construíam na região eram sanados (pelo Tratado de 1979), em que a corrida nuclear entre os Dois chegava ao fim (com o Tratado de 1980) e em que o processo de abertura económica era iniciado em ambos os países[10].
Neste ambiente, os dirigentes brasileiros e argentinos tomaram a firme decisão política de enfrentar, em conjunto, as dificuldades da conjuntura económica da década de oitenta, assinando, em 1988, o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, pelo qual os dois países se comprometiam a criar um espaço económico comum através da supressão gradual, por um período de dez anos, das barreiras pautais e não pautais à circulação livre de bens e serviços[11].
As relações entre o Brasil e os EUA sairiam bastante prejudicadas desta aproximação argentino-brasileira, tendo-se por isso o Brasil voltado para outras regiões, tentando preservar a diversificação dos eixos diplomáticos e demonstrar autonomia em relação aos EUA.
O período de governação de Fernando Collor foi particularmente rico em matéria de acontecimentos internacionais. Assim, em 1990, Margaret Thatcher renunciou na Inglaterra, concluindo, no país, mais de uma década de hegemonia conservadora. No final do ano, o Iraque invadiu o Kuwait, tendo em 1991, após a rejeição do presidente iraquiano do ultimatum da ONU para retirar as suas tropas do Kuwait, tido início, a 16 de Fevereiro, a Guerra do Golfo, que terminaria escassos onze dias depois. Ainda em Fevereiro, o Pacto de Varsóvia era extinto, em Maio a Croácia tornava-se independente, a cidade de Berlim era estabelecida como capital da Alemanha reunificada e o início da guerra civil da Jugoslávia fechava o semestre. Esse ano marcou, ainda, a dissolução da URSS, enquanto as Comunidades Europeias reconheciam a independência da Croácia e da Eslovénia, terminava a guerra civil em El Salvador e o Peru passava por um golpe de Estado liderado por Alberto Fujimori. Em Maio tinha início, no Rio de Janeiro, a ECO-92, reunião ecológica que reuniu 178 países, enquanto em Julho começavam os Jogos Olímpicos de Barcelona e, em Agosto, uma multidão, com Nelson Mandela à frente, protestava em Pretória contra a segregação racial.
Neste contexto internacional, o Brasil afastou-se da sua anterior política externa multilateral e universal, voltando a alinhar-se aos EUA e a desenvolver uma política quase exclusivamente voltada para as Américas e submissa às proposições do FMI segundo o Consenso de Washington.
Conjunto de princípios – convergentes com o receituário do FMI, do Banco Mundial e do BIRD – propostos pelos Estados Unidos, o Consenso de Washington deveria ser aplicado por todos quanto desejassem receber ajuda económica e financeira dos EUA e das instituições financeiras internacionais.
Aderindo a esse conjunto de princípios, a diplomacia de Collor substituiu o consenso em torno do desenvolvimento pelo Consenso de Washington[12]. O objectivo formal da nova orientação externa era “obter para o Brasil o acesso a novas tecnologias. Nesse sentido, a abertura comercial se daria de forma unilateral e sem um mínimo de reciprocidade de parceiros (e concorrentes) externos”[13].
No começo, o Brasil ainda tentou agir com alguma autonomia, especialmente por causa dos compromissos assumidos com a base política que levara Collor à Presidência. A ideia era desenvolver, internamente, uma política económica que detivesse a inflação, para que, no plano externo, o país conseguisse recuperar alguma da imagem perdida junto dos credores internacionais. Mas como os Planos Collor e Collor II não surtiram os efeitos esperados e a comunidade financeira internacional não passou a olhar o Brasil conforme o presidente idealizara, então ele optou por acomodar-se às regras impostas pelos Norte-Americanos, esperando, então sim, alcançar o objectivo de integrar o Brasil na sociedade internacional junto do Primeiro Mundo. Collor desmontou o projecto nuclear brasileiro, assim como a indústria da informática, abandonou antigas parcerias, anulando as iniciativas tendentes ao Brasil potência, apostando antes nos grandes temas do meio ambiente, da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos humanos, do desenvolvimento sustentável, da justiça e da paz, conjugados com a Agenda para a Paz que implicava o desarmamento e a obediência aos novos regimes internacionais. A política externa brasileira perdia grande parte do acumulado histórico que ela mesma vinha construindo de modo coerente havia décadas. O próprio relacionamento com a Argentina viria a ser transformado, especialmente pela actuação da equipa económica de Zélia Cardoso de Mello. A integração que Sarney e Alfonsín vinham costurando a dois passava a incluir também o Uruguai e o Paraguai, países que aplicavam direitos aduaneiros muito reduzidos, com o objectivo de reduzir os praticados no Brasil e na Argentina. Do carácter autonomista e desenvolvimentista que a integração no Cone Sul apresentava na década de 1980, evoluía-se para um viés comercial-neoliberal.
Nem toda a diplomacia brasileira alinhou nesta lógica, o que levou Collor a retirar-lhe muitas das suas atribuições. O Itamaraty não teve, na realidade, uma participação activa na política externa de Collor. O governo actuava de modo independente. Mas quando este se começou a afundar em escândalos sucessivos, então Collor procurou resgatar a sua respeitabilidade também dentro do Itamaraty, chamando Celso Lafer para ministro em Abril de 1992. A política externa brasileira centrada naqueles grandes temas, mundialmente consensuais, seria então definida na 47ª Assembleia Geral das Nações Unidas em Setembro de 1992, com Lafer a alinhar na política externa previamente traçada pelo governo, ao mesmo tempo que o Brasil passou a reivindicar a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Com os escândalos a conduzir ao processo de impeachment de Collor, assumiu Itamar Franco, então vice-presidente.
A política externa brasileira visava a integração do Brasil no sistema internacional, de forma democrática e condizente com os valores da sociedade brasileira e com o processo de reestruturação interna por que esta vinha passando desde a tomada de posse de Itamar.
Neste sentido, o Brasil seguiu defendendo a democracia, a justiça social, os direitos humanos, as liberdades individuais, a justiça social, o desenvolvimento, a autodeterminação dos povos, o princípio da não-intervenção em assuntos internos e a solução pacífica e negociada de conflitos[14]. Mas fazia-o tendo por base a ênfase na ideia de projecto nacional, que a política externa brasileira recuperava. O objectivo era revalorizar a presença do Brasil na sociedade internacional, tanto através dos fora multilaterais, quanto da integração regional – o que havia sido amplamente reduzido com Collor.
Assim, em termos multilaterais, e uma vez que o espaço de manobra existente nos anos 1970 e 1980 era agora reduzido, a estratégia do Brasil passou a ser participar nas organizações internacionais e, no seio destas, construir alianças visando alterar em seu favor o rumo da política internacional.
Desde logo, fez-se eleger, por dois anos, como membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas[15], assinou a Convenção sobre Armas Químicas e a Convenção para a Proibição de Armas Biológicas. Em termos multilaterais, o Brasil propôs uma Agenda de Desenvolvimento ligada a uma Agenda da Paz, revitalizando diversos relacionamentos que Collor havia deixado esfriar e participando activamente nos grandes fora internacionais, designadamente as Nações Unidas e a Organização Mundial de Comércio (OMC). No plano regional, a integração sul-americana e, particularmente, do Cone Sul, foi a área privilegiada, tendo o Brasil chegado a propor a criação da Área de Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA), em 1993. O Mercosul ganhou, também, a dimensão estratégica que, até então, não possuía
Estas iniciativas que surgiam como clara resposta à implantação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), que deveria iniciar funções a de Janeiro de 1994, e começava a funcionar como verdadeiro canto da sereia para os países da América do Sul, especialmente a Argentina e o Chile. Na verdade, Clinton prometia, aos países que aceitassem o receituário do Consenso de Washington, a integração no NAFTA e, por meio desta, o acesso ao mercado norte-americano, como base para uma futura integração hemisférica. Ademais, decorreria em Miami, em Dezembro de 1994, a Cimeira Ibero-Americana, reunindo as trinat e quatro repúblicas americanas com excepção de Cuba, para lançar-se, oficialmente, a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), que previa a eliminação das barreiras ao comércio e aos investimentos a partir de 1 de Janeiro de 2005.
O Brasil reagiu a este planos. Manter a Argentina no Mercosul e comprometer o Chile com negociações para se tornar membro associado eram dois aspectos fundamentais.
Assim, a diplomacia brasileira assinou, com o Chile, acordos de cooperação científica, técnica e tecnológica, criando ainda o Conselho Bilateral de Economia e Comércio e uma comissão mista para estudar a ligação interocêanica. Em outro sentido, a diplomacia brasileira procurou, junto da Colômbia, da Venezuela, da Guiana e do Suriname, estabelecer negociações bilaterais nas áreas agrícola, meio ambiental transportadora e de repressão ao narcotráfico e controlo da região amazónica. Com o Equador e o Peru, para além da questão amazónica, procurou também desenvolver negociações para o estabelecimento de uma via interoceânica. Com a Bolívia, procurou aproximar-se a chamá-la para membro associado do Mercosul, de modo a facilitar, não só o fornecimento de gás ao Brasil, como ainda a adesão de outros Estados da Comunidade Andina ao Mercsoul. Na América central, o Brasil defendeu o reexame da situação de Cuba na OEA, rejeitando também a militarização da América Latina. O Brasil tentou ainda uma solução pacífica para o conflito inerno no Haiti, evitando uma intervenção externa como pretendiam os EUA. Afinal, “abrir mão do princípio da não-intervenção seria permitir futuramente a legitimidade de ações como o Plano Colômbia”[16].
Relativamente à América do Norte, a política externa de Itamar preocupou-se com o NAFTA, mas também com o relacionamento bilateral com os EUA, conseguindo, no âmbito do Uruguai Round que não se aplicassem sanções norte-americanas ao comércio brasileiro[17]. Foram ainda estabelecidos diversos acordos militares entre o Brasil e os Estados Unidos.
Em termos mais específicos, o Brasil procurou estreitar os laços com os países de Língua oficial Portuguesa, no seio da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP), enquanto a União Europeia se afirmava como o maior parceiro económico do Brasil (realizando 26% das trocas comerciais[18]), o que incomodava os EUA.
Os acontecimentos que se sucederam às Revoluções Europeias, associados ao processo de globalização e expansão do capitalismo “despojaram muitos grupos nacionais de decisão de «critérios orientadores» para a formulação da política exterior”[19], levando Fernando Henrique Cardoso (FHC), então novo presidente, a adoptar o pensamento único que Collor introduzira no Brasil.
Neste sentido, a política externa de FHC, tal como a de Collor, em maior escala, vieram romper com a continuidade da política externa brasileira que se vinha manifestando no período da Política Externa Independente e do Pragmatismo Responsável, tendo FHC, habilmente, tenha esvaziado o Itamaraty das suas funções[20], em razão do MRE continuar a ser um reduto de resistência do projecto nacional desenvolvimentista contrário ao projecto neoliberal de abertura económica. A política externa de Fernando Henrique Cardoso contribuiu para a expansão do universalismo da política externa brasileira, através de uma diplomacia pessoal que se centrou em torno de quatro vectores essenciais, a saber o multilateralismo, o regionalismo, os Estados Unidos e a União Europeia[21].
Com Lula, o Brasil passaria a ter uma política externa ainda mais activa e assertiva, optando desde logo por uma linha de defesa activa dos interesses e da soberania nacionais, o que implicou começar imediatamente a trabalhar por uma ordem internacional mais justa e equitativa.
De facto, a política externa brasileira tem tentado conformar a ordem internacional à filosofia política de equalizar os benefícios, nas relações internacionais, entre os países ricos e os emergentes ou, por outras palavras, obter a reciprocidade nas relações internacionais, na tentativa de ultrapassar aquilo que Fernando Henrique Cardoso, quando se tornou céptico quanto à sociedade internacional conformada ao neoliberalismo, chamou de globalização assimétrica. Apostado numa inserção internacional logística, que, mantendo a abertura económica, reintroduz a intervenção estatal sempre que necessária, associando o liberalismo ao desenvolvimentismo, fundindo a doutrina clássica do capitalismo com o estruturalismo latino-americano, o Brasil procura, neste sentido, recuperar a autonomia decisória sem deixar de actuar no sistema internacional vigente, nele procurando superar as assimetrias entre países desenvolvidos e emergentes[22]. Além disso, a política externa brasileira, mantendo a tendência da diversificação de parceiros, segue tentando contrapor-se à acção externa dos EUA.
A diplomacia de Lula tem procurado contribuir para o reforço do multilateralismo, actuando em negociações comerciais que se desenrolam em três sectores do multilateralismo: no seio da OMC, no âmbito da edificação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e no quadro do estabelecimento de uma zona de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Tem contribuído, também, para o reforço do multilateralismo em outras áreas da esfera política e geopolítica, designadamente exigindo uma voz mais audível no seio do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, estando disposto a pagar uma quota mais alta ao FMI para poder ampliar o seu poder de decisão no seio desta instituição internacional; a reforma das Nações Unidas e a candidatura brasileira a um assento permanente no Conselho de Segurança, assim como as diligências mais recentes para entrar para a Organização dos Países Produtores e Exportadores de Petróleo (OPEP), sendo de considerar, ainda, a participação do Brasil na liderança da Força de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (com 1 200 homens).
A actual política externa brasileira procura igualmente dar ênfase aos temas sociais, em particular à luta contra a fome e a pobreza no âmbito global.
Tem sido, contudo, difícil obter a reciprocidade real entre países capitalistas e emergentes, o que tem levado o Brasil a voltar-se, cada vez mais, para outros espaços de actuação.Desde logo, o Brasil volta-se para a participação activa no âmbito do multilateralismo regional expresso no sistema interamericano institucionalmente suportado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e pelo Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), ainda que este vector hemisférico ocupe uma importância secundária na actual política externa brasileira que, em termos regionais, prefere valorizar o fortalecimento da integração sul-americana, contexto no qual ganham relevo as relações em eixo[23] com a Argentina e, ainda, o Chile, a Bolívia e a Venezuela. De igual modo, a política externa brasileira mantém relações crescentemente significativas com a África e o Médio Oriente, tentando ainda manter o trato cordial com os EUA. O Brasil tem também estruturado pontos de contacto e ligações com a Índia, a China e a África do Sul, relacionando-se ainda com a Rússia.
Acima de tudo, a dificuldade em obter a reciprocidade nas relações internacionais tem justificado a aposta brasileira na aproximação aos países emergentes consubstanciada nas coligações anti-hegemónicas que têm nascido sob sua liderança, desde a reunião de Cancun, em 2003, no âmbito da Ronda de Doha da OMC, na qual o Brasil tem reivindicado a queda das barreiras alfandegárias e dos subsídios agrícola.
Assim, ressalta, desde logo, o G20, grupo de países composto pelos de maior peso da América do Sul, da África e da Ásia, liderado pelo Brasil. Igualmente liderado pela diplomacia brasileira surge, também desde 2003, a articulação com a Índia e a África do Sul no seio G3-Ibas; e a articulação com o Japão, a Alemanha e a Índia no âmbito do G4; enquanto a Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA) foi instituída em 2005, prelúdio do que, no primeiro trimestre de 2008, viria a ser a União Sul-Americana de Nações (UNASUL).
Recuperando grande parte do acumulado histórico da diplomacia brasileira, que Collor e o primeiro governo FHC haviam deprimido, o Brasil volta hoje a formular e a executar uma política externa que, autónoma e independente, se enquadra na tradição característica que teve desde 1930.







[1] Cfr. CERVO, Amado Luiz (org.); O Desafio Internacional – A Política Exterior do Brasil de 1930 a Nossos Dias, Colecção Relações Internacionais, Editora Universidade de Brasília, 1ª edição, Brasília DF, 1994, pp.15.
[2] Cfr. SILVA, Alexandra de Mello e; A Política Externa de JK: Operação Pan-Americana, documento não publicado, fornecido pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), pp.15.
[3] Cfr. Idem, ibidem.
[4] Cfr. MALAN, Pedro Sampaio; Relações Económicas Internacionais do Brasil (1945-1964)”, in FAUSTO, Boris (org.); “História Geral da Civilização Brasileira”, tomo III: “O Brasil Republicano”, Vol. IV – Economia e Cultura (1930-1964), 3ª edição, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, pp.95-99.
[5] Cfr. Idem, pp. 95-96.
[6] Cfr. VIZENTINI, Paulo Fagundes; Relações Internacionais do Brasil: de Vargas a Lula, Editora Fundação Perseu Abramo, 1ª edição, São Paulo, Janeiro de 2003, pp. 31.
[7] Cfr. VIZENTINI, Paulo Fagundes; op. Cit., pp. 45.
[8] Cfr. idem, pp. 48.
[9] Cfr. VIZENTINI, Paulo Fagundes; op. Cit., pp. 62.
[10] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; As Relações em Eixo Franco-Alemãs e as Relações em Eixo Argentino-Brasileiras – Génese dos Processos de Integração, ISCSP/UTL, 1ª edição, Lisboa, Julho de 2007, pp. 334.
[11] Cfr. art.1º e art.3º do Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento entre a República Federativa do Brasil e a República Argentina. DAI – Divisão de Actos Internacionais do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, Brasília, Brasil.
[12] Cfr. Idem, pp. 81.
[13] Cfr. Idem, ibidem.
[14] Cfr. VIZENTINI, Paulo Fagundes; op. Cit., pp. 85.
[15] Cfr. VIZENTINI, Paulo Fagundes; op. Cit., pp. 88.
[16] Cfr. Idem, pp. 88.
[17] Cfr. Idem, ibidem.
[18] Cfr. Idem, pp. 89.
[19] Cfr. BERNAL-MEZA, Raul; A Política Exterior do Brasil 1990-2002, in Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI, ano 45, nº 1, Brasília DF, 2002, pp. 36-71, pp. 36.
[20] Cfr. VIZENTINI, Paulo Fagundes; op. Cit., pp. 93.
[21] Cfr. CERVO, Amado Luiz; A Política Exterior: De Cardoso a Lula, in revista Brasileira de Política Internacional – RBPI, ano 46, nº 1, Brasília DF, 2003, pp. 5 (editorial).
[22] Cfr. CERVO, Amado Luiz; Inserção Internacional – Formação dos Conceitos Brasileiros, Editora Saraiva, 1ª edição, São Paulo, 2008, pp. 85.
[23] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; As Relações em Eixo Franco-Alemãs e as Relações em Eixo Argentino-Brasileiras – Génese dos Processos de Integração, ISCSP/UTL, 1ª edição, Lisboa, Julho de 2007.