Wednesday, September 22, 2010

Uma Incursão (Necessariamente Incompleta...) Pela História do Brasil

Descoberto a 22 de Abril de 1500, o Brasil, depois de ultrapassada a era pré-colombiana que antecedeu a expedição do navegador português Pedro Álvares Cabral, soma 507 anos de existência, primeiro como colónia portuguesa de além-mar, depois constituído como império e, finalmente, como república federativa de estados.
O Brasil criou, contudo, sob uma fachada de harmonia, uma sociedade amplamente contraditória, resultado da miscigenação de povos – indígenas, europeus e africanos –, da cultura portuguesa que manteve o país unido – ao contrário do sucedido com a América do Sul espanhola –, das promessas negadas pelas realidades da discriminação, da violência e da pobreza generalizada, assumindo-se, hoje, como uma das sociedades mais desiguais do mundo.
Quinta maior extensão política do Planeta, o Brasil localiza-se, em grande parte, na zona intertropical, já que 90% do território brasileiro situa-se entre o Equador e o Trópico de Capricórnio; sendo, duas vezes por ano, penetrado, perpendicularmente, ao meio-dia, pelos raios do Sol, quando este atinge o zénite; além de possuir outras características da tropicalidade: temperatura do mês mais frio do ano igual ou superior a 18º C, índice pluviométrico anual superior a 250mm, cultivo do solo sem necessidade de recorrer à irrigação, extensas florestas quentes e húmidas, territórios semelhantes às savanas tropicais, como as caatingas, os campos e os cerrados, existência de solos de aluvião e de vegetação acentuadamente marcados pela influência tropical[1]. Por outro lado, apenas a parcela meridional do Brasil – composta pelos estados do Rio Grande do Sul e de Santa Catarina, por grande parte do Paraná, pelo Sul de São Paulo e pela extremidade Sul do Mato Grosso do Sul – se situa no espaço subtropical[2], a partir do Trópico de Capricórnio.
Possuindo, desta forma, 1,7% do território mundial, 5,7% das terras emersas, 1/5 das regiões tropicais, 41,5% de toda a América Latina e 47,3% da América do Sul[3], o Brasil detém uma dimensão continental, resultado, quer do processo secular de colonização portuguesa do litoral e de penetração no interior, quer da anexação paulatina de territórios que, pelo Tratado de Tordesilhas (1494), pertenciam, de jure, à América espanhola[4].
Foram a soberania sobre esta vasta área territorial, assim como a demarcação das fronteiras daí resultantes, que originaram os vários confrontos que Portugal travou, durante a época colonial, com a Espanha, a Holanda e a Grã-Bretanha. Do mesmo modo, seriam estes os motivos que levariam o Brasil independente a disputar, com a França, o Amapá; com a Bolívia, o Acre; e com a Argentina, o Uruguai e o Paraguai, territórios platinos.
Na verdade, o próprio descobrimento do Brasil resultou da intensa competição luso-castelhana pela obtenção de uma rota marítima para o Oriente. Rivalidade que conduziria, num primeiro momento, à assinatura do Tratado de Tordesilhas (1494), para a divisão do Oceano entre Portugal e Espanha e, num segundo, à celebração do Acordo de Saragoça (1529), para a partilha do Novo Mundo, do Oceano Pacífico e da Ásia Oriental. A contraposição de teses relativas ao descobrimento do Brasil é ilustrativa desta intensa rivalidade. Uma vez que argumentos geográficos referentes à análise do movimento das marés na costa brasileira desvirtuam a tese de que o Brasil terá sido descoberto por acaso (pois se assim fosse tê-lo-ia sido muito mais a Norte do que realmente sucedeu), ganha força a tese segundo a qual o rei D. Manuel I terá dado instruções confidenciais a Pedro Álvares Cabral, comandante da expedição, para parar no Brasil, então já descoberto. A necessidade de todo este secretismo em torno da expedição cabralina reside, como bem nota Jorge Couto, “por um lado, na complexa teia de relações familiares e políticas que ligavam os soberanos de Portugal e Castela-Aragão, que, todavia, não eliminava a intensa competição ultramarina em que as respectivas Coroas se encontravam envolvidas e, por outro, nas profundas divergências existentes entre as concepções geográficas perfilhadas e os métodos de navegação utilizados por Portugueses e Castelhanos”[5]. Empenhado, no início de 1500, na exploração e tomada de posse das terras ocidentais que se encontrassem no hemisfério português, D. Manuel I terá, assim, dado instruções reservadas a Cabral para, “no decurso da sua viagem para o Índico, explorar a região oeste do Atlântico Sul, com o objectivo de encontrar o prolongamento austral do continente visitado por Colombo, Caboto e Duarte Pacheco, a fim de aí estabelecer uma escala destinada a apoiar a operacionalidade da rota do Cabo”[6], sendo o secretismo resultado de motivos geopolíticos, diplomáticos, económicos e técnicos.
Uma vez descoberto, posteriormente colonizado, o Brasil seria alvo da rivalidade luso-espanhola, que ganharia terreno, depois acrescida da cobiça holandesa e britânica. Situação que seria mantida após a independência, marcando definitivamente aquilo que viria, depois, a ser o Brasil contemporâneo, sendo certo, todavia, que a compreensão deste exige, em particular, a análise das transformações sócio-político-económicas por que o país passou ao longo do século XX-início do século XXI, as quais estão na base da sociedade brasileira. Detentor de uma multirracialidade relativamente bem-sucedida, porém hierarquizada e extremamente desigual, sendo ainda de salientar a capacidade da elite política, relativamente pequena, de enfrentar as repetidas ameaças de revolução e os inúmeros protestos populares, o Brasil, designadamente a região sudeste, erigiu, na década de 1970, o maior parque industrial do Terceiro Mundo, adensando as contradições de uma sociedade que, industrializada, crescentemente urbana, é também pouco moderna, muito hierarquizada e com uma concentração de renda e de poder acima do normal.
A indagação de como essa sociedade emergiu e do que a tem permitido tornar-se aberta e igualitária como nunca o foi assume-se, assim, central para compreender-se as transformações por que o Brasil tem vindo a passar desde a independência, proclamada a 7 de Setembro de 1822, sendo certo, todavia, que o Brasil colónia estrutura, desde logo, a base sobre a qual assenta desde 1822. Uma base de continentalidade que determina as características da sociedade brasileira.
Na verdade, questionando-se, há dois séculos, a versão oficial de que Cabral chegara ao Brasil por acaso, ao afastar-se da África rumo à Índia, na mais possante frota da História de Portugal, com treze navios, em ligação com a problemática em torno do Tratado de Tordesilhas, o selvagem Brasil viu-se de início preterido em função do rico e promissor Oriente, sendo o pau-brasil o único atractivo da nova terra.
Algumas expedições colonizadoras, contudo, como a de Martim Afonso de Sousa, a primeira a ir além do extrativismo, foram-se realizando, tentando-se a ocupação assente na iniciativa particular, como havia já sido feito nas ilhas do Atlântico, com as capitanias hereditárias. Foram, porém, os bandeirantes que mais avançaram na expansão territorial do Brasil, assistindo-se, lentamente, à organização administrativa, social, política, económica e cultural da nova terra, ao mesmo tempo que incursões de Holandeses e crises esporádicas do sistema colonial se iam registando[7].
Na verdade, a decadência do domínio colonial ibérico agravou-se no século XVIII. A independência dos Estados Unidos da América (1776), a Revolução Francesa (1789-99) e os ideais da Liberdade, Igualdade e Fraternidade e a independência progressiva da América Latina despoletaram a crise no Brasil, que muito maior, mais rico e já mais populoso que a Metrópole, encarava a condição de colónia como um fardo.
A proibição das fábricas no Brasil por alvará régio e a cada vez maior dependência de Portugal face aos ditames britânicos acentuaram o processo independentista que parecia já irreversível, num terreno onde prosperavam os ideais da Revolução Francesa.
Neste ambiente, as inconfidências mineira e baiana, ambas da segunda metade do século XVIII, prenunciaram já a transição para a independência da colónia, que a transferência da Corte tornaria, de imediato, realidade. A propósito do Bloqueio Continental decretado por Napoleão em 1806 e a impossibilidade da neutralidade, a Corte cedeu à pressão de Londres e mudou-se para o Rio de Janeiro, ficando a administração do reino a cargo de uma regência que Beresford dominava completamente[8].
Como bem nota Luiz Alberto Moniz Bandeira, desde 1783 que Dom luís da Cunha, notável diplomata português, avaliava que D. João V, para conservar Portugal, necessitava totalmente das riquezas do Brasil e não das de Portugal, já que era mais cómodo e seguro estar onde a riqueza económica subsistia[9]. De facto, a economia do Brasil, até meados do século XVIII, era, do ponto de vista industrial, bastante maior que a da Grã-Bretanha. Só a produção e exportação da indústria açucareira ultrapassaram, em largos períodos, o valor de £ 3 milhões anuais, enquanto a exportação britânica não alcançava tal cifra[10]. Posto isto, naturalmente que, no início do século XIX, a política económica portuguesa assentava em grande parte sobre a produção brasileira. Ainda que as rendas provenientes do Brasil tivessem, no orçamento do erário régio, um peso inferior a 25%, a verdade é que as exportações brasileiras para Portugal, de 1796 para 1807, passaram de 28 687 000 para 34 819 000, sendo ainda certo que grande parte dos produtos exportados por Portugal eram provenientes da colónia brasileira[11]. Dados que assumem uma relevância ainda mais acentuada se tivermos em conta o estado dramático da economia portuguesa a partir de meados do século XVIII, em virtude dos efeitos colaterais produzidos pela assinatura do Tratado de Meethuen com a Grã-Bretanha (1703). Desde esse ano que Portugal vinha, efectivamente, abandonando paulatinamente as suas incipientes manufacturas, em favor de um retorno à viticultura e à exportação de vinho e azeite, o que o tornava cada vez mais dependente do mundo exterior, em especial da Grã-Bretanha, seu principal parceiro comercial e fornecedor de produtos manufacturados. É evidente que, com as reformas económicas do Marquês de Pombal e seus sucessores, aproveitando as tendências internacionais – que operavam em favor do comércio – Portugal foi conseguindo expandir o seu comércio. Todavia, sempre com base na promoção dos produtos provenientes das colónias, em especial do Brasil. O algodão brasileiro, por exemplo, tinha uma importância determinante neste contexto. Entre 1781 e 1792, a exportação anual total do algodão brasileiro de Portugal para a Grã-Bretanha subiu de 135 para 3 500 toneladas, enquanto, em igual período, a França importou anualmente cerca de 620 toneladas[12].Assim, de 1796 a 1807 (com excepção dos anos 1797 e 1799), Portugal desfrutou de um saldo positivo na Balança Comercial, sendo que o Brasil, sozinho, era responsável por 83% do valor total de bens importados por Portugal das suas colónias[13].
Torna-se evidente, a partir desta análise, que o vector económico era, à época, um instrumento crucial na sustentação do Império Lusitano. Para D. João VI era certo que não existiria tal império caso o Brasil fosse dos Britânicos ou caso o seu rei fosse feito prisioneiro pelos Franceses ou pelos Espanhóis. Assim, mesmo com Portugal subjugado pelos Franceses, a única forma de conservar a riqueza do império, e simultaneamente empreender a resistência aos Franceses, seria deslocar o centro de gravidade da decisão política do Reino, de Lisboa para o Rio de Janeiro, permitindo a solidificação da monarquia. Ademais, como nota Moniz Bandeira, o diplomata Dom Luís da Cunha considerava, ainda, a hipótese de D. João VI, assumindo-se como imperador do Ocidente, poder expandir o seu império através da conquista do Reino do Peru e de um acordo com a Espanha, mediante a troca do Algarve pelo Chile, até ao Estreito de Magalhães[14].
A extensão e a riqueza do império eram, assim, tidas em consideração como factor decisivo na equação geoestratégica do posicionamento de Portugal no mundo. No entanto, não eram apenas as considerações económicas que imperavam na base deste pensamento geoestratégico. No final do século XVIII, quando Napoleão começou a sua ascensão, invadindo depois Portugal e promovendo o bloqueio à Grã-Bretanha, o nosso país sentiu, uma vez mais, as fragilidades geoestratégicas do seu posicionamento na Europa, surgindo, então, uma vez mais, a defesa da tese da transferência da Corte para o Brasil, o que acabou por ocorrer de facto. O Brasil surgiu, deste modo, como a solução geopolítica por excelência que, para além de apontar para a renovação do império português, punha cobro às pressões diplomáticas e agressões que Portugal vinha, há tanto tempo, sofrendo na Europa.
Surge claro, pois, que a viagem do príncipe regente, da respectiva família e Corte, para o Brasil, não significou a fuga real às responsabilidades nacionais; pelo contrário, representou a materialização de uma visão estratégica que vinha sendo amadurecida há mais de um século, na esperança de se vir a formar, na América do Sul, longe das vulnerabilidades e das ameaças de Portugal, um grande império. Esperança que acabaria por ser catalisada pelas convulsões napoleónicas.
A condição de sede do Reino lisonjeou a colónia, que assim viveu uma metamorfose económica, social, política, administrativa e cultural. Assistiu-se à abertura de portos, à liberação das indústrias e a uma série de outros progressos concretos que levariam o rei D. João VI, sem pressa de regressar a Lisboa uma vez vencido Napoleão e reposta a ordem pelo Congresso de Viena, a alterar o estatuto político da América Portuguesa, criando o Reino do Brasil, unido a Portugal e aos Algarves. Acalentando o plano de fazer do Brasil um vasto império, expandido ao Prata, e confiar Portugal a seu filho primogénito D. Pedro, D. João VI traçava, pela primeira vez, os contornos de um estado brasileiro com territorialidade bem definida[15].
Os movimentos de independência, grandemente impulsionados pela Maçonaria – activa na Europa desde a Renascença e pregando nas Américas a independência –, porém, frustrariam todos os planos neste sentido. Em 1817 assistiu-se à primeira de uma longa série de revoltas que, da Amazónia ao Rio Grande do Sul, ambicionavam a independência, ao mesmo tempo que a Revolução Liberal de 1820, na Metrópole, inaugurava, na colónia brasileira, a profunda crise político-institucional que desembocaria no Grito do Ipiranga[16].
A revolução de 1820, na verdade, expôs a crise do regime, não só em Portugal, onde a regência fora substituída por uma junta provisória, como também no Brasil. E enquanto em Portugal a crise aprofundava-se e as contradições aguçavam-se, nas lutas entre os liberais e os absolutistas chefiados pelo infante D. Miguel, no Brasil, D. Pedro, de influência liberal, suprimia impostos abusivos e proclamava liberdades e garantias. Exigido o seu regresso a Portugal pelas Cortes, em Janeiro de 1822, decidiu, porém, ante petições e pressões várias, permanecer no Brasil, mantendo-se sob a decisiva influência de José Bonifácio de Andrada e Silva, Patriarca da Independência[17].
Logo após a ficada, como então se dizia, tudo conduziu à independência. A tropa portuguesa, amotinada no Rio de Janeiro em apoio às Cortes, foi dominada e o príncipe-regente expulsou e proibiu a chegada de outras, ordenando também que os decretos de Lisboa apenas fossem aplicados com o seu aval. Indicou cônsules brasileiros em Buenos Aires, Londres, Washington e Paris, recebeu o título de Defensor Perpétuo do Brasil e convocou uma Assembleia Constituinte e Legislativa do Brasil, num percurso que conduziria ao Grito do Ipiranga, quando D. Pedro, a 7 de Setembro de 1822, anunciasse a célebre divisa Independência ou Morte, ficando para a História de Portugal como um traidor e, para a do Brasil, como um herói[18].
Iniciar-se-ia o modelo liberal-conservador de organização interna e inserção internacional que, marcado pelos parâmetros da agroexportação, esgotar-se-ia na ampla margem de manobra do Brasil entre a Grande Depressão e o fim da Segunda Guerra Mundial, quando se estruturou o desenvolvimentismo que, se do ponto de vista externo rompeu com o alinhamento automático face aos Estados Unidos, retomando a orientação diplomática do Brão do Rio Branco, internamente assentaria numa busca incessante pelo desenvolvimento económico através do método da substituição de importações. Regendo-se internamente por este nacional desenvolvimentismo populista de esquerda, o Brasil de Vargas actuaria, externamente, de acordo com esse padrão de comportamento, numa postura que atingiria o apogeu na barganha nacionalista às vésperas da Segunda Guerra Mundial, quando o Brasil desenvolveu o nacional desenvolvimentismo em termos de actuação externa. Neste período, o Brasil vendeu a preço elevado a sua adesão a um conflito que não lhe interessava. O Brasil jogava com o Eixo e com os Aliados, negociando e apoiando aquele que, no momento, mais vantagens económicas lhe oferecesse, sem pejo em voltar-se de um para outro consoante essas vantagens. O Brasil e a América do Sul ganhavam rapidamente um poder de negociação como nunca haviam tido, sem que os EUA se apercebessem dessa relevância no contexto declarado de beligerância.
Apenas com as vitórias de Rommel no Norte d`África é que os Estados Unidos se aperceberam da importância da região, começando Roosevelt a temer uma invasão alemã às Américas, a partir do Nordeste brasileiro. Roosevelt oferece a Vargas, neste contexto, no célebre encontro de 1942, o financiamento integral da Siderurgia de Volta Redonda, nos arredores do Rio de Janeiro, como forma de comprar a adesão brasileira aos Aliados. Conseguiu e, Volta Redonda, a maior siderurgia da América Latina, seria construída em tempo recorde, começando a funcionar logo em 1946.
Todavia, o propósito de Getúlio teve uma duração limitada. Ele actuava ainda num momento dominado pelas velhas estruturas regionais de poder e, quando as contradições internas da sociedade brasileira se avolumaram, ele caiu e, junto, o seu nacional desenvolvimentismo. Em 1946, a reacção conservadora a Vargas colocou no poder Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), por forma a terminar com o varguismo incómodo ao status quo da ordem interna brasileira e da ordem externa hemisférica.
O desenvolvimento económico do Brasil – que já havia estado presente na equidistância pragmática de 1935 a 1942 e no alinhamento do Brasil aos EUA em 1942, quando o país lucrou em reequipamento económico e militar – não deixou de dominar a política brasileira. Muito pelo contrário: o alinhamento incondicional de Dutra aos EUA visava, precisamente, uma relação especial com a superpotência ocidental, que deveria implicar um tratamento especial face às reivindicações brasileiras de auxílio económico para o desenvolvimento económico interno.
O método do alinhamento a Washington para o alcance desse fim não foi, todavia, o mais acertado perante as dinâmicas do Brasil de então e, nesse contexto, germinariam as sementes desenvolvimentistas de Vargas. Ou seja, o nacional desenvolvimentismo de Vargas, conquanto não tenha vingado na sua época, viria a ter muito mais importância no futuro do que se poderia supor, pois funcionaria como as raízes profundas das características sócio-político-económicas internas e de autonomia que a política externa brasileira voltaria a ter, assim que Dutra saísse do poder.
De facto, em 1951, houve uma reacção ao conservadorismo de Dutra, que levou Vargas novamente ao poder (1951-1954), com uma nova aplicação, interna e externa, do nacional desenvolvimentismo populista de esquerda de outros tempos. O desenvolvimento económico do país continuava a ser a prioridade, mas desta vez Vargas teria de adaptar-se à era bipolar.
O contexto interno e externo que Vargas encontrou era bastante distinto do que o que existira entre 1930 e 1945.
Internamente, o incremento da industrialização e da consequente urbanização levaram à afirmação da burguesia e de uma classe operária nascente que, porém, impunha novas exigências ao poder político. O sistema político era obrigado a dar resposta à crescente participação popular, o que levou Vargas a retomar o desenvolvimentismo todavia abrindo a economia brasileira ao exterior, em busca de capitais, tecnologia e cooperação económica.
Externamente, e uma vez que Getúlio precisava desses capitais e, por conseguinte, da cooperação norte-americana, no contexto de Guerra Fria, em que os EUA, mais preocupados com a Europa, desligavam-se da América Latina, que sabiam de antemão estar do seu lado, a margem de manobra do Brasil foi drasticamente reduzida. Situação que se acentuou quando, em 1953, o republicano Eisenhower se tornou presidente dos Estados Unidos. Estando a Europa e o Japão ainda em processo de reconstrução e o Terceiro Mundo ainda muito embrionário, restava ao Brasil apenas a cooperação de origem norte-americana, à qual não tinham como fugir.
Esta contradição externa somava-se aos distúrbios pelos quais passava a sociedade brasileira, a braços com uma crescente polarização entre direita e esquerda, ao mesmo tempo que o desenvolvimentismo de Vargas era cada vez menos apoiado e gerava sucessivamente mais críticas. Esta situação conduziu Vargas ao suicídio – para não ter de renunciar – o que provocou uma imensa comoção nacional.
Em seu lugar, a reacção conservadora fez ascender ao poder uma figura manejável pelos EUA, Café Filho (1954-1955), visando pôr ordem ao caos populista esquerdizante do Brasil. Novamente, interna e externamente, o Brasil voltou a alinhar-se com a potência norte-americana, promovendo uma total abertura económica ao capitalismo, assim como a afirmação das teses da Escola Superior de Guerra (ESG). A política externa brasileira vivia o primeiro hiato da linha de autonomia e independência na inserção internacional do país que tem vingado até hoje.
Figura apagada da História do Brasil, que permaneceria na Presidência nem um ano completo, Café Filho – dos períodos do país menos estudados – depressa motivaria uma forte reacção ao conservadorismo que tentou imprimir às dinâmicas do Brasil, com a eleição de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-1961). O desenvolvimentismo ganhava novamente força, especialmente consubstanciado no Plano de Metas dos 50 anos em 5. Necessitando de capitais externos para levar adiante esse plano, em função da escassez de reservas do Brasil, Jk teria de associar esse desenvolvimentismo à entrada desses capitais estrangeiros no país, o que, se criou um desfasamento entre a política e a economia, depressa deu origem a uma síntese entre o desenvolvimentismo e a necessidade de capitais estrangeiros – leia-se norte-americanos – na formulação do que seria o desenvolvimentismo associado (associado aos capitais externos).
Jânio Quadros e João Goulart prosseguiriam na via desenvolvimentista, mais autónoma que a da era JK, levando-a aos extremos com a radicalização expressa na Política Externa Independente.
Com estas características, o paradigma desenvolvimentista, que havia substituído o modelo liberal-conservador de inserção internacional, predominante do final do século XIX até meados de 1930, produziu o que podemos denominar de hiperpolitização das sociedades latino-americanas, designadamente a argentina, a brasileira, a chilena e a mexicana. Afinal de contas, o Estado era o centro das decisões sobre as principais questões económicas e políticas da sociedade; tendo sido justamente sob essa matriz que as sociedades latino-americanas incorporaram politicamente, a partir da década de 1930, as classes médias e populares urbanas[19].
A ordem internacional então vigente permitiu a estruturação desse paradigma desenvolvimentista, já que tolerou que as principais sociedades latino-americanas gozassem de autonomia para gerir e organizar os respectivos subsistemas capitalistas nacionais (ainda que dependentes do centro) e para construir formas próprias de domínio político[20].
Sob tal lógica internacional, acrescentada da regulação e directa actuação do Estado, a Argentina logrou alcançar taxas razoáveis de crescimento económico, chegando o Brasil e o México a obter taxas consideradas muito boas.
O desenvolvimentismo, assente numa lógica de acentuado pragmatismo, foi a marca característica de todo o regime militar brasileiro. Na realidade, desde a implantação do regime militar no Brasil, em 1964 (e, mais especificamente, desde o segundo governo militar, com Costa e Silva no poder a partir de 1967) que a política externa brasileira foi fortemente guiada pelo desenvolvimentismo e pelo pragmatismo, assim se mantendo até que a crise da dívida viesse alterar os pressupostos sobre os quais assentava o paradigma desenvolvimentista, provocando, a partir daí, mutações consideráveis no ordenamento brasileiro, quer interno, quer externo, designadamente o fim do regime militar em 1985.
De facto, a subida ao poder, nos EUA, de Ronald Reagan (1980-1988) viria bloquear a trajectória precedente. Convencido da necessidade de recuperar a hegemonia norte-americana, Reagan colocaria um ponto final no diálogo Norte-Sul e na proposta da Nova Ordem Económica Internacional.
Os vectores de estrangulamento histórico do desenvolvimento nacional brasileiro tornar-se-iam, a partir daqui, perfeitamente evidentes: a dependência energética do exterior, especialmente no referente ao petróleo bruto, e os serviços da dívida externa[21], crescentemente preocupantes e impeditivos da aplicação de recursos em investimentos produtivos[22].
O modelo vinculado ao desenvolvimentismo evoluía, assim, para uma fase de crise e de contradições, passando o Brasil a sofrer os efeitos perversos do sistema internacional, no qual passava a ser sujeito passivo, não obstante o influxo positivo do Itamaraty relativamente às políticas e possibilidades do comércio externo[23].
Deste modo, o período da crise da dívida assiste à redução do espaço de actuação que o sistema de poder internacional deixava aos Estados nacionais. Desde logo, tornava-se mais evidente a globalização financeira, que minava notoriamente a ordem económica do pós-guerra. Por outro lado, a ideologia institucional-neoliberal, que desde o final da década de 1970, se convertera em matriz dos governos britânico e norte-americano, expandia-se aos organismos financeiros multilaterais do Ocidente, que passavam a exigir, dos governos que necessitavam do seu auxílio, a adopção de políticas monetárias e fiscais ortodoxas, concordantes com o figurino neoliberal[24].
A situação internacional passava, assim, a deixar um espaço de actuação reduzido às elites governamentais dos países periféricos da América Latina para reconstruírem a ordem interna nos moldes o anterior desenvolvimentismo. Por conseguinte, as sociedades latino-americanas começaram a transformar-se, fosse por processos de democratização, fosse através da liberalização económica, fosse por meio de ambos.
No Brasil, a democratização ocorreu antes da liberalização económica. O regime autoritário não resistiu à alteração da ordem internacional, ao mesmo tempo que, face às dificuldades internas, a democracia parecia o melhor meio para enfrentá-las, porque supunha uma maior capacidade para manejar os instrumentos da gestão económica sem romper com o intervencionismo estatal do passado. Por isso, o novo regime democrático brasileiro optou pela manutenção da anterior articulação entre o Estado e a economia, em meio à falta de recursos externos e às pressões internacionais contrárias[25].
No fim da década de 1980 e início da seguinte, o fracasso desse modelo tornou-se evidente, generalizando-se a crença de que era absolutamente necessário que a sociedade brasileira se ajustasse às exigências da globalização, e do próprio Institucionalismo-Neoliberal, no sentido de liberalizar a economia. Foi assim que, a partir de Fernando Collor de Melo (1990-1992), a intelectualidade governamental brasileira deixou-se dominar pelos postulados do Washington Consensus. Encerrando o ciclo desenvolvimentista em 1989, as novas orientações, moldando o Estado Normal[26], apareciam, todavia, confusas e contraditórias, ainda que plenamente dominadas pelos interesses económicos.
Na verdade, diante do novo cenário internacional, a política externa brasileira parecia perdida, incapaz de manter a racionalidade e a continuidade que, durante 60 anos, lhe havia impresso, na busca incessante pelo desenvolvimento nacional. O Itamaraty não reagiu com facilidade ao novo contexto internacional. O processo de impeachment de Collor de Mello, em 1992, e o hiato do governo de Itamar Franco até 1994 contribuiram para a indefinição.
Apenas a partir de 1995, com Fernando Henrique Cardoso (1995-2002) e a continuidade da gestão do ministro dos Negócios Estrangeiros Luiz Felipe Lampreia (1995-2000) o Brasil pareceu capaz de reagir, ainda que sob os postulados neoliberais vindos de Washington. Reagindo aos novos condicionalismos externos, essa reacção não era, contudo, coerente e firme; antes fazia crer que a responsável pela crise do endividamento era a estratégia tradicional da racionalidade desenvolvimentista e, por isso, esta deixava de ser o centro nevrálgico da política do governo, de ora em diante marcada pelas directrizes de Washington, ao mesmo tempo que a liberalização económica iniciada por Collor dava mostras de insustentabilidade.
Na realidade, o Brasil encontrava, nos fluxos de capitais, nova fonte de dependência, enquanto revigorava o multilateralismo, com base no entendimento com a Argentina em torno da resolução do contencioso das águas, que daria origem à assinatura, em Março de 1991, do Tratado de Assunção, criando o Mercosul, juntamente com o Uruguai e o Paraguai.
Dando prosseguimento à política económica de Fernando Henrique, o governo Lula não só não rompeu com a orientação liberal do segundo mandato de Cardoso, como inclusive, a aprofundou. O primeiro governo Lula (2003-2006) exerceu um ajuste fiscal ainda mais forte que o realizado sob a era Cardoso, aplicando uma política monetária ainda mais rígida e retomou o programa de reformas (tributária, da Segurança Social, de autonomia do Banco Central, laboral, entre outras) de carácter amplamente liberal, que a Administração Fernando Henrique tinha suspenso por falta de condições políticas para levar a efeito[27]. Lula lançou assim, no início do segundo mandato, o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), no qual a política liberalizante surge evidente. Mas nele nota-se, também, como já se tornara claro no primeiro mandato, a preocupação social do presidente sindicalista, que à lógica capitalista tem agregado o estado interventor da era desenvolvimentista.
De facto, é necessário atentar sobre algo que parece fundamental. Em toda a manutenção que traduz da política económica, em termos práticos, o PAC reflecte uma mudança da essência dessa mesma política, ao ressuscitar o papel mais activo do Estado na promoção do desenvolvimento, que há muito vinha sendo afastado da lógica económica do Brasil, em outros tempos desenvolvimentista. E, mais importante, a orientação de Lula resultou em ganhos económicos sustentados para o Brasil, que tem revelado capacidade para reduzir e, até, solucionar, a médio prazo, alguns dos mais graves problemas internos. Sendo a décima economia mundial, a economia brasileira prova estar apta a superar situações que, outrora, a afastariam dos seus intentos de transformar a Nação em potência regional.
Neste sentido, existe uma correlação entre o papel desempenhado pelo Brasil na América do Sul e no mundo e a sua própria evolução interna. O Brasil funciona, assim, como âncora da América do Sul, cujo desempenho económico e actuação externa, na base das relações em eixo, o têm levado ao patamar de potência regional prestes a transformar-se em potência mundial.
A sua diplomacia multilateral e pragmática, o incremento da sua capacidade de emprego dos meios de defesa – ainda embrionária – permitem o cálculo positivo dos interesses nacionais. Com o apoio mútuo do seu comércio externo global, o Brasil, líder regional do Mercosul e dos mecanismos de integração política, económica, física e social sul-americanos, tem assumido, no contexto internacional global, o papel de interlocutor dos países emergentes com os países mais avançados, ao contestar a hegemonia norte-americana através da estruturação de alianças com esses emergentes. O G20 permite-lhe influir no comércio mundial; o G4 coloca-o no centro das questões de segurança e defesa; o G3 lança-o na liderança da cooperação Sul-Sul; a UNASUL e o seu Conselho de Defesa (criado em Março de 2009), permitem-lhe liderar os esforços de integração na América do Sul, a partir das relações em eixo com a Argentina.
Por outro lado, a manutenção da integridade territorial – com a sensível questão da Amazónia – o combate às recentes ameaças – como o macroterrorismo, o narcotráfico e o crime organizado – a capacidade de dissuasão e projecção no Atlântico Sul, permitiram ao Brasil de Lula começar a afirmar a sua dimensão estratégica, ao mesmo tempo que os tradicionais problemas políticos, económicos e sociais internos viram, com Lula, um combate mais objectivo e sustentado.
O Brasil, desta forma, a partir da plataforma regional, projecta-se como actor global, como o gigante adormecido que finalmente acorda.
[

1 comment:

Nuno Rogério Santos said...

De fato já é tempo do Brasil se mostrar ao mundo. Na minha atividade (aviação) ele está bem presente através da Embraer, um exemplo de sucesso brasileiro, sendo o 3º construtor mundial de aviões e um dos maiores exportadores do brasil (foi mesmo o maior entre 1999 e 2001!).
Pena é que o Brasil, não tenha capacidade para atrair mais turismo. Com aquelas praias, sol, comida, caipirinhas, e sobretudo aquela forma de receber carinhosa.
Ai se os EUA, com a sua população e poder de compra, fossem mais perto...