O BRASIL E A NOVA ORDEM INTERNACIONAL
Quase duas décadas volvidas desde o derrube do muro de Berlim – e subsequentes transformações registadas no Leste do Velho Continente – o mundo continua a alterar-se velozmente. As relações internacionais adquirem um significado especial, diferente do quadro realista que desde a Segunda Guerra Mundial havia marcado a evolução da ordem mundial e do seu sistema internacional. Não é certo que o sistema dito westphaliano tenha desmoronado, tampouco que o Estado esteja prestes a desaparecer como actor das relações internacionais. O que tem ocorrido é uma transformação profunda daquele sistema, bem como do sentido que pode hoje atribuir-se ao Estado. A clássica potência territorial e político-militar vê alterarem-se as funções, outrora especificamente consideradas prerrogativas exclusivas da sua soberania. As funções de regulação económica são, em parte, transferidas para organizações internacionais, para espaços regionais organizados e, até mesmo, para actores privados, o que ocorre mesmo em relação ao poder régio de emitir moeda, que os Estados da União Europeia já foram levados a não mais assumir. As funções sociais e culturais ultrapassam também as fronteiras nacionais, porque os problemas são globais e é globalmente que têm de ser solucionados. As organizações humanitárias e ecológicas, os movimentos sociais transfronteiriços, as organizações não governamentais de um modo geral proliferam para fazer-nos lembrar disso. As funções protectoras dos Estados estão também em mutação. A falência dos modelos europeus do Welfare State estão aí para o demonstrar. Até mesmo a era da monopolização da guerra pelos Estados chega ao fim, com a relação entre violência e política totalmente alterada. Os movimentos terroristas o comprovam. É evidente que o Estado continua a existir, continua com a função de assegurar a competitividade das suas empresas e, de forma mais ortodoxa, vê imporem-se novas funções macroeconómicas, como a acção anti-inflacionária, a gestão das finanças públicas, o respeito pelos grandes equilíbrios; enfim, permanece, mas com funções diferentes, muitas delas ainda não interiorizadas. Os aparelhos de Estado estão ainda despreparados para a nova realidade e a relativização do princípio territorial, que multiplica os espaços nos quais as aspirações e as opções políticas podem ocorrer, ainda não é tranquilamente vista como dado adquirido. É complexa a relação entre as reivindicações identitárias e o território, já que, de um lado, a multiplicação dos espaços criados pela mundialização fragiliza a relação Estado-cidadão e, por outro, as reivindicações nacionalistas proliferam, obrigando à consolidação de espaços políticos no interior de uma entidade territorial que carece de novas estruturas.
Na realidade, após a era unipolar (com os EUA como potência única), que sucedeu à era bipolar (quando ainda existia a URSS), o mundo tornou-se multipolar, quando novos poderes, essencialmente económicos, surgiram para dominar o mundo juntamente com os EUA e a União Europeia. São eles o Brasil, a Rússia, a Índia e a China, num primeiro momento, logo seguidos pelo México e pela África do Sul, depois por mais uma dezena de outros países ditos emergentes.
Estes novos poderes têm em comum, realmente, o facto de serem emergentes, o que terá motivado a criação do acrónimo BRIC.
Fala-se muito, hoje em dia, especialmente na comunicação social brasileira, relativamente na chinesa e na indiana, e praticamente nada na russa, dos BRIC. Acrónimo lançado por Jim O`Neill, economista do grupo norte-americano Goldman Sachs, em 2001[1], BRIC refere-se, sugestivamente, ao Brasil, à Rússia, à Índia e à China, no sentido de chamar a atenção para as economias desses países, considerados emergentes, porque as respectivas economias têm alcançado tal nível de crescimento nos últimos anos que, em 2050, virão a ultrapassar o crescimento das economias hoje mais sólidas da sociedade internacional[2], desde que satisfaçam determinadas condições.
Os BRIC têm, efectivamente, em comum, o facto de serem países emergentes, sendo a ideia da Goldman Sachs dar-lhes por isso atenção, também numa tentativa de neles aplicar o american dream. O que levou o grupo norte-americano a entrar em rota de colisão com a política externa dos Estados Unidos.
Na realidade, após o derrube do muro de Berlim e subsequente transformações registadas no Leste europeu, emergiu, dos escombros da Ordem dos Pactos Militares, uma nova ordem internacional unipolar, dominada pela unilateralidade do domínio absoluto exercido pela política externa norte-americana. Ao nível económico, todavia, não tardaria que novos poderes surgissem impondo a partilha do domínio do mundo entre eles, a União Europeia e os EUA. Empresas como a Goldman Sachs encararam essa ordem internacional, até aos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001, como multipolar, indo por isso em busca de países emergentes onde pudessem investir de modo mais lucrativo. Para essas empresas, a sociedade internacional nada apresentava de unipolaridade, apenas o sendo para a Escola Realista das Relações Internacionais, vinculada à definição de superpotência como o poder que tem capacidade de actuar em qualquer teatro de operações, a qualquer momento, tanto económica, como ideológica, cultural e militarmente. Mas a sociedade internacional afirmava-se, para estas empresas, multipolar, sendo seu objectivo salvaguardar o Estado para que este não entrasse em colapso e, assim, serem evitadas novas guerras; razão pela qual partiram em busca de novos pólos de investimento, voltando-se então para as economias que começavam a apresentar grande crescimento económico, sendo certo que essas economias possuem grandes potencialidades, designadamente no que às populações numerosas e às extensões territoriais diz respeito. São países com uma massa crítica extraordinária, com populações que têm desenvolvido os mais variados sectores económicos, alcançando elevada formação, apresentando-se fortemente utilizadoras das tecnologias, em particular das tecnologias de informação, com destaque para o uso e abuso da Internet[3].
Com o 11 de Setembro de 2001, este estado de coisas alterou-se, não em função do islamismo ou do terrorismo, mas sim da (in)estabilidade económica. É evidente que os ataques terroristas ao coração do poder financeiro e militar dos EUA originaram a imprevisibilidade dos acontecimentos na ordem internacional pós-derrube do muro de Berlim, fazendo erigir uma nova ordem internacional. Todavia, a preocupação central desta segue sendo a estabilidade económica. O termo BRIC é, na verdade, lançado como alternativa de mercado em função, não só dos ataques terroristas, mas também, e sobretudo, das más políticas de Alan Greenspan.
Foi assim que a Goldman Sachs, que já vinha estudando os mercados emergentes desde a década de 1980, lançou o termo BRIC a 30 de Novembro de 2001[4], como resposta ao 11 de Setembro, com receio de um crash bolsista. Em 2003, lançaria a tese do Dreaming With the BRICs[5], já que, do ponto de vista de quem investe, o deadline de 2003 a 2050 confere segurança e confiança, particularmente relevantes na era de insegurança e pouco ganho que se seguiu aos ataques terroristas. Para Dominic Wilson e Roop Purushothaman, “the BRICs economies could become a much larger force in the world economy. We map out GDP growth, income per capita and currency movements in the BRICs economies until 2050”[6]. A partir da previsão assim elaborada, a Goldman Sachs investiu agressivamente nestes mercados emergentes. Em relatório de 2006[7], o grupo previu, mesmo, que o PIB do Brasil, de $ 4338 em 2000, seria, em 2050, de $ 26592, o que significa que investidores, em todo o mundo, investirão nestes mercados, sendo certo que a Goldman Sachs prevê, ainda, um crescimento económico do Brasil muito próximo ao da China, ao mesmo tempo que, menor na Índia, esse crescimento é ainda mais significativo na Rússia. As análises da Goldman Sachs mostram também uma estabilidade de crescimento para os BRIC na ordem dos 3,5% - número relativamente modesto, mas que apresenta grande segurança. Quando o crescimento do PIB é excessivamente elevado, é porque se trata de uma bolha inflacionada prestes a rebentar. Crescimentos do PIB mais modestos, mas todavia significativos, quando são constantes, demonstram sustentabilidade e maiores garantias de segurança. Trata-se, pois, de economias que crescem de forma sustentada que, mesmo que haja uma instabilidade política, a economia prossegue porque se encontra mais autónoma da política, sustentando a análise na fortíssima classe média que os BRIC vão tendo e apresentando recentemente. Comparando com o G7, as taxas de crescimento dos BRIC são mais modestas (mas não muito longe dos valores do G7), o que todavia representa grande estabilidade. E a estabilidade é o que mais interessa aos investidores.
Em 2005, a Goldman Sachs antevê uma crise mundial (a que efectivamente teria início no Verão de 2007), mas nada manifesta, de modo a evitar a aceleração da desestabilização. É neste sentido que o grupo passa a considerar e a aconselhar aos investidores a possibilidade de investir em outras economias em ascensão, os Next 11 (Bangladesh, Egipto, Indonésia, Irão, Coreia, México, Nigéria, Paquistão, Filipinas, Turquia e Vietname), como forma de diversificar os investimentos de modo a robustecer a capacidade das economias fazerem face à crise. A banca passa, então, a ter dois portfolios de investimento: os BRIC e os Next 11.
De facto, surgiram derivações interessantes dos BRIC, fazendo aumentar os pólos de poder e, por consequência, aumentar o número de actores importantes das relações internacionais, reforçando o mundo multipolar. Se a Goldman Sachs criara os BRIC, viria, pouco depois, a falar dos BRICS (resultado da junção da África do Sul aos BRIC); o mercado acrescentaria outros poderes económicos a esses cinco, com a junção do México aos BRIC, formando os BRICM e, ainda, com a junção, à África do Sul e ao México, dos dez Estados-membros da ASEAN, criando os BRICSAM.
A sociedade internacional afirmava-se como decididamente como multipolar. Entretanto, porém, a evolução célere dos BRIC do ponto de vista da utilização das tecnologias, designadamente das tecnologias de informação, leva-os a acelerar o processo mundial de criação dos sistemas de rede, preparando o caminho para a substituição da multipolaridade pela não-polaridade da sociedade internacional.
Na realidade, em função dessa evolução, o mundo começaria a romper com a multipolaridade; ou, o que é mais correcto, avançando tanto nessa multipolaridade que hoje a sociedade internacional conta com tão elevado número de actores relevantes, que é impossível identificá-los, o que sugere a não-polaridade de um mundo marcado por imensos e incontáveis pólos de acção[8].
Neste sentido, embora, à primeira vista, possa parecer que a sociedade internacional seja hoje multipolar, ela apresenta características bem distintas dessa multipolaridade: existem muitos mais centros de poder e grande parte deles são não estatais. “In contrast to multipolarity – which involves distinct poles or concentrations of power – a nonpolar international system is characterized by numerous centers with meaningful power”[9]. O mundo, hoje, não é dominado por um ou dois ou mesmo vários Estados, mas antes por dezenas, talvez centenas, de actores detendo e exercendo vários tipos de poder[10]. “Power is now found in many hands and in many places”[11].
A composição da actual sociedade internacional, global para Hedley Bull, apresenta centenas de actores com capacidade para intervir nas relações internacionais. Desde grandes potências (como os EUA), a organizações regionais (como a União Europeia e a ASEAN) e internacionais (como a ONU e a OMC), a organizações terroristas (como o Hamas e a Al-Qaeda), a organizações não-governamentais (como os Médicos sem Fronteira e o Greenpeace), a empresas multinacioanis (como a Nike a a MacDonalds) aos média com difusão à escala global (como a CNN e a Al Jazeera), a organizações religiosas, a partidos políticos, a cartéis da droga e ao próprio indivíduo. Há também estados, dentro dos Estados, como a Califórnia, que têm importância crescente, assim como cidades como Nova Iorque, São Paulo e Shangai. O mundo assiste, hoje, não mais à concentração de poder, mas à distribuição de poder. Às seis maiores potências mundiais juntam-se o Brasil, a Argentina, o Chile, o México e a Venezuela, na América Latina; a Nigéria e a África do Sul, na África; o Egipto, o Irão, Israel e a Arábia Saudita, no Médio Oriente; o Paquistão na Ásia do Sul; a Austrália, a Indonésia e a Coreia do Sul na Ásia do Leste e na Oceânia.
O aparecimento destes poderes, estatais e não-estatais, relativiza o poder e a influência da única superpotência restante após o fim da Ordem dos Pactos Militares, a grande vencedora da Guerra Fria. A China demonstrou ser o Estado mais capaz para influenciar o programa nuclear da Coreia do Norte, enquanto o poder de influência norte-americano sobre Teerão deve-se à participação de vários Estados-membros da União Europeia. Por outro lado, os poder dos EUA de influenciar Teerão diminui em função da relutância da China e da Rússia em impor sanções ao Irão. A China e a Rússia também diluíram os esforços internacionais para pressionar o governo do Sudão a acabar com a guerra em Darfur, enquanto o Paquistão, o Irão, a Coreia do Norte, a Venezuela e o Zimbabué têm também demonstrado grande capacidade para opor-se às iniciativas dos Estados Unidos. E mais: há hoje fundos de investimento em países como a China, o Kuwait, a Rússia, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos que funcionam como mecanismos para alargar o potencial económico destes países, embora se trate de investimento público para fins privados. Fundos esses que, em virtude dos altos lucros registados, estão a comprar o futebol inglês como forma de lazer (note-se os recentes casos do Manchester e as aproximações ao Newcastel).
Tudo isto tem vindo a relativizar o poder dos EUA nas relações internacionais, numa situação que se agravou em função da própria postura norte-americana assumida pela Administração de George W. Bush. Ao decidir agir por conta própria e recorrendo a reivindicações forjadas no caso do Iraque, W. Bush conseguiu lançar uma grande suspeição sobre as políticas norte-americanas e com isso tornou-se incapaz de influenciar uma série de parceiros. Também uma política económica errada acelerou este processo. Os enormes gastos no conflito no Médio Oriente[12], os cortes nas receitas provenientes dos impostos e a falta de compreensão relativamente à política energética, tiveram custos elevados no prestígio do então presidente dos EUA.
Estes erros, vale lembrar, não determinaram a engrenagem em direcção à não-polaridade. Simplesmente, aceleraram o processo. A própria globalização é um factor que tem levado a generalidade dos Estados a desenvolver-se e a ganhar capacidade suficiente para disputar a supremacia norte-americana, o que é, no fundo, um processo normal e inevitável, resultado da alta difusão da informação, que tem permitido que outros apareçam, com economias vibrantes assentes num contínuo progresso tecnológico, tal e qual os EUA são hoje. Fareed Zakaria refere-se a este processo como the rise of rest[13], na estruturação de um mundo não-polar que é, também, pós-americano[14]. Um mundo no qual o domínio norte-americano é posto à prova por uma série de novos actores.
Não significa isto a decadência dos EUA; mas tão somente a emergência de outros poderes. Afinal, os EUA continuam a gastar mais na pesquisa militar do que o resto do mundo todo, e fazem-no sem quebrar as contas públicas. Mesmo os gastos com a guerra no Iraque e no Afeganistão representam apenas 1% do PIB norte-americano[15]. “The United States will remain a vital, vibrant economy, at the forefront of the next revolutions in science, technology and industry »[16], até porque o país tem beneficiado massivamente das tendências impostas pela globalização. Para além de receber biliões de dólares em investimento, as suas multinacionais penetram tranquilamente nos diferentes países com enorme sucesso. Ademais, são os EUA a dominar as indústrias da nanotecnologia e da biotecnologia, comummente aceites com as indústrias do futuro. Com um elevado nível de qualificação, a população norte-americana é pujante e criativa, continuando os EUA a ser a mais importante fonte de ideias, em muito assente na extraordinária capacidade de absorver a imigração. É evidente que existem problemas: “the U.S. saving rates is zero; the current account deficit, the trade deficit and the budget deficit are high; the median income is flat; and commitments for entitlements are unsustainable”[17]. Estes são desafios que os EUA têm de enfrentar. Para tanto, devem preparar-se para realizar mudanças de fundo importantes, como a adopção de políticas económicas mais acertadas, já que os actuais problemas económicos “are not the product of deep inefficiencies within the U.S. economy, nor are they reflections of cultural decay. They are the consequences of specific government policies”[18]. Ademais, os progressos na sociedade norte-americana – designadamente em matéria de segurança social, reforma tributária e cuidados de saúde – requerem mais amplas coligações entre os dois maiores partidos políticos, requerem compromissos de ambos, no sentido da adopção de uma perspectiva de longo prazo.
Evidentemente, paralelamente a estas mudanças, os EUA têm de adaptar-se ao mundo não-polar pós-americano aceitando a emergência de outros países e, por conseguinte, aceitando a relativização da sua supremacia, o que implica uma alteração de estratégia e de atitude. Os EUA não estão em decadência; vivem tão somente num momento em que outros países ascendem em importância, seja pelo controlo das fontes energéticas, como a Rússia; seja pela captura de cérebros, como a União Europeia; seja pelo peso económico, como a China e, em menor escala, a Índia; seja pelo peso geo-económico, como o Brasil. Em lugar de insistir na manutenção da ordem internacional que têm construído durante os últimos sessenta anos, os EUA devem aceitar a nova realidade internacional, para que possam continuar a controlar a sociedade internacional, o que passa pela aceitação da emergência dos novos actores e de um mundo com grande diversidade de vozes e pontos de vista e pela cedência de espaço aos novos poderes. Se assim for, os EUA estarão colaborando na construção de uma sociedade internacional “in which the United States takes up less space, but it is one in which American ideas and ideals are overwhelmingly dominant”[19]. Na realidade, para Zakaria, “the United States has a window of oportunity to shape and master the changing global landscape, but only if it first recognizes that the post-american world is a reality – and embraces and celebrates that fact”[20].
Neste novo contexto internacional, em que são reconceptualizados o poder, a balança de poder e a hegemonia[21], o poder dos Estados não pode continuar a ser meramente medido pela tradicional visão realista que assenta na quantificação do território, da população, dos recursos económicos, da tecnologia e da capacidade militar e na análise da vontade política, da qualidade das elites governantes e do modelo constitucional. A par da avaliação destes factores de poder, que continuam a ser válidos para o desenvolvimento da capacidade de influenciar os demais e, por conseguinte, projectar poder[22], é necessário recorrer à análise de factores subjectivos que dependem muito mais da capacidade de influência indirecta sobre os outros, do que de uma projecção exclusiva de hard power. É importante, assim, ter em conta a habilidade de um corpo político influenciar indirectamente o comportamento ou interesses dos outros corpos políticos por meios culturais, ideológicos e através do prestígio, sem recurso à força ou à coacção. Porque assim influenciados, esses corpos políticos serão levados a crer que os seus objectivos e interesses, na arena internacional, serão convergentes em funcionalidade com o corpo que assim os influencia, o que os levará a cooperar com o primeiro[23], numa síntese entre os pressupostos realistas e os institucionais neoliberais em torno da interdependência complexa de Robert Keohane e Joseph Nye[24]. Daqui advém a força do soft power[25] para o entendimento da actual sociedade internacional, sendo certo que as potências apenas o serão se conjugarem o soft e o hard power. O que significa que, contemporaneamente, “não é possível compreender as relações internacionais nos termos tradicionais da polaridade [seja multi seja uni], porque a distribuição do poder deve ser analisada em um tabuleiro tridimensional, no qual, no tabuleiro superior, estaria o poderio militar, em que os EUA são claramente hegemónicos; no tabuleiro do meio, o económico, o poderio seria multipolar, pois, juntando os EUA, a Europa e o Japão [acrescentam-se os BRIC] (…) o tabuleiro de baixo é o reino das relações transnacionais, que transpõem as fronteiras nacionais e escapam aos controlos governamentais”[26].
Neste complexo jogo tridimensional, os actores estão interconectados e há transferência de poder de um para outro, de modo que o Estado que jogar apenas num dos três tabuleiros não compreenderá a influência e o poder das outras duas dimensões, tendo por isso dificuldade em afirmar-se como actor influente das relações internacionais. Esta realidade aponta, claramente, para o mundo não polar de Haass, especialmente em virtude da dinâmica do terceiro tabuleiro. O próprio Nye, em 2002, não deixa clara, nem a dinâmica deste terceiro tabuleiro nem a forma como ele se relaciona com os demais, sendo, por conseguinte, necessário que o século XXI venha explorar a dinâmica do terceiro tabuleiro, especialmente as multinacionais e as pessoas, em relação à dinâmica económica em nível estatal (segundo tabuleiro) e, mesmo, em relação à dinâmica do poderio militar (primeiro tabuleiro)[27].
É esta a sociedade internacional tridimensional em que o Brasil se insere e actua. É esta a sociedade internacional tridimensional que o Brasil, pelo poder geo-económico que detém, tem ajudado a estruturar. É esta a sociedade internacional tridimensional que o Brasil, pelo poder geo-económico que detém, tem influenciado.
Nesta sociedade internacional tridimensional não-polar e pós-americana, a política externa brasileira, desde 1963 assente na tese, formulada pelo então ministro das Relações Exteriores Araújo de Castro, dos três Ds (Desenvolvimento, Descolonização, Desarmamento) tem tentado conformar a ordem internacional à filosofia política de equalizar os benefícios, nas relações internacionais, entre os países ricos e os emergentes ou, por outras palavras, obter a reciprocidade nas relações internacionais, na tentativa de ultrapassar aquilo que Fernando Henrique Cardoso, quando se tornou céptico quanto à sociedade internacional conformada ao neoliberalismo, chamou de globalização assimétrica. Apostado numa inserção internacional logística, que, mantendo a abertura económica, reintroduz a intervenção estatal sempre que necessária, associando o liberalismo ao desenvolvimentismo, fundindo a doutrina clássica do capitalismo com o estruturalismo latino-americano, o Brasil procura, neste sentido, recuperar a autonomia decisória sem deixar de actuar no sistema internacional vigente, nele procurando superar as assimetrias entre países desenvolvidos e emergentes[28]. Além disso, a política externa brasileira, mantendo a tendência da diversificação de parceiros, segue tentando contrapor-se à acção externa dos EUA que, durante a Administração de George W. Bush, deprimiu o multilateralismo na tentativa de manter as vantagens unilaterais das estruturas hegemónicas do capitalismo ocidental.
Neste sentido, a diplomacia de Lula tem procurado contribuir para o reforço do multilateralismo, actuando em negociações comerciais que se desenrolam em três sectores do multilateralismo: no seio da OMC, no âmbito da edificação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e no quadro do estabelecimento de uma zona de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Tem contribuído, também, para o reforço do multilateralismo em outras áreas da esfera política e geopolítica, designadamente exigindo uma voz mais audível no seio do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, estando disposto a pagar uma quota mais alta ao FMI para poder ampliar o seu poder de decisão no seio desta instituição internacional; a reforma das Nações Unidas e a candidatura brasileira a um assento permanente no Conselho de Segurança, assim como as diligências mais recentes para entrar para a Organização dos Países Produtores e Exportadores de Petróleo (OPEP), sendo de considerar, ainda, a participação do Brasil na liderança da Força de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (com 1 200 homens).
Tem sido, contudo, difícil obter a reciprocidade real entre países capitalistas e emergentes, o que tem levado o Brasil a voltar-se, cada vez mais, para outros espaços de actuação.
Desde logo, o Brasil volta-se para a participação activa no âmbito do multilateralismo regional expresso no sistema interamericano institucionalmente suportado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e pelo Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), ainda que este vector hemisférico ocupe uma importância secundária na actual política externa brasileira que, em termos regionais, prefere valorizar o fortalecimento da integração sul-americana, contexto no qual ganham relevo as relações em eixo[29] com a Argentina e, ainda, o Chile, a Bolívia e a Venezuela. De igual modo, a política externa brasileira mantém relações crescentemente significativas com a África e o Médio Oriente, tentando ainda manter o trato cordial com os EUA – conforme aconselha a prudência do realismo e pragmatismo da diplomacia brasileira.
Ademais, reflectindo sobre os vectores económico, social, político e agrícola (sendo o Brasil, de todos os BRIC, o maior mercado agrícola), o Brasil tem, através de sistemas de rede montados com as universidades, as empresas e os centros de estudo, estruturado pontos de contacto e ligações com os restantes países emergentes. O Brasil congregou a Índia e a China, já pensando nas potencialidades dos minérios; congregou a África do Sul, em função da dinâmica económica sul-africana e da sua rede de influências; e tem-se ligado aos melhores académicos russos, indianos e chineses, para além de ter criado a Secretaria de Acções Especiais de Longo Prazo – englobando o Núcleo de Assuntos Estratégicos (NAE) e o Instituto de Pesquisa Económica Aplicada (Ipea) – à frente da qual está Roberto Mangabeira Unger, conhecido professor de Direito na Universidade de Harvard, que defende formas alternativas de globalização – designadamente a reorientação do regime internacional do comércio e a reorganização das instituições multilaterais do sistema Bretton Woods – e o entendimento do Brasil com as potências emergentes (China, Rússia e Índia) o qual permitirá que, a pouco e pouco, se transforme a natureza da hegemonia norte-americana. Ideias que vão no sentido de criar uma forma de globalização mais propícia ao pluralismo. Mangabeira Unger sustenta que a energia para lutar por essa reconstrução do regime global tem de vir da tentativa de reorientar os projetos nacionais, pelo que, somente quando se tenta desenvolver um projeto nacional alternativo ao projecto neoliberal se torna possível levar adiante a ideia de mudar as regras do actual sistema global.
Acima de tudo, a dificuldade em obter a reciprocidade nas relações internacionais tem justificado a aposta brasileira na aproximação aos países emergentes consubstanciada nas coligações anti-hegemónicas que têm nascido sob sua liderança, desde a reunião de Cancun, em 2003, no âmbito da Ronda de Doha da OMC. Desde logo, ressalta o G20, grupo de países composto pelos de maior peso da América do Sul, da África e da Ásia, liderado pelo Brasil. Igualmente liderado pela diplomacia brasileira surge, também desde 2003, a articulação com a Índia e a África do Sul no seio G3-Ibas; e a articulação com o Japão, a Alemanha e a Índia no âmbito do G4; enquanto a Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA) foi instituída em 2005, prelúdio do que, no primeiro trimestre de 2008, viria a ser a União Sul-Americana de Nações (UNASUL), que, pretendendo desenvolver um plano energético e um banco de desenvolvimento, para promover a integração regional e garantir uma maior presença internacional dos seus membros, criou, a 10 de Março de 2009, na capital chilena, o Conselho de Defesa – organismo de defesa comum destinado a promover a concertação no plano militar e prevenir crises regionais. Composto pelos ministros da Defesa das doze repúblicas que fazem parte da UNASUL (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela), o Conselho terá também por função supervisionar as despesas militares de forma transparente, até porque essas despesas aumentaram 25% em 2008, atingindo os $ 50 mil milhões[30]. Daqui advém o papel do Brasil como âncora da América do Sul e como actor global da sociedade internacional. A sua capacidade de influenciar o comércio internacional patenteia-se por meio do G20[31]; a sua capacidade para influir sobre a segurança internacional torna-se evidente no G4[32]; a sua capacidade de fomentar a cooperação Sul-Sul entre os países emergentes surge evidente no G3-Ibas[33], a associação das três maiores democracias do Sul, destinada a promover a cooperação e o desenvolvimento. Ademais, o Brasil tem defendido o alargamento do G8 de modo a inclui-lo a ele e bem ainda a Rússia, a China, a Índia e o México.
Neste sentido, é evidente o interesse brasileiro em potenciar a economia e o investimento nos restantes BRIC, até porque a globalização dos mercados, ao transformar o mundo numa pequena aldeia global, determina a rápida repercussão dos fenómenos. Desta forma, a capitalização da economia e do investimento na Rússia, na Índia e na China, por parte do Brasil, terá, certamente, efeitos benéficos para a economia brasileira, em pleno momento de expansão, pese embora o agravamento, nos últimos meses, da crise financeira despoletada, em meados de 2007, nos EUA, a propósito do subprime. Os fundamentos da economia brasileira têm-se apresentado sólidos para enfrentar esses distúrbios[34], até pelo aparecimento de um fenómeno social novo: o nascimento de uma classe média oriunda das massas de baixa renda, responsável pelo consumo interno do país, assim contribuindo para o aquecimento global da economia brasileira[35]. Na sexta mensagem anual encaminhada, a 6 de Fevereiro de 2008, ao Congresso Nacional, por ocasião do início do ano legislativo, quando a Câmara e o Senado retomam oficialmente as actividades, após as férias de Verão, o presidente Lula, reconhecendo todavia a existência, no cenário internacional, de riscos para o crescimento da economia brasileira, avaliou que o impacto desse cenário sobre o país seria limitado, em virtude da “demanda doméstica robusta”[36] e da “solidez das contas externas”[37], tendo as Nações Unidas, em 2007, incluído o Brasil, pela primeira vez, no grupo de países com alto índice de desenvolvimento humano. O mesmo Brasil que, segundo informações oficiais de Fevereiro de 2008, torna-se hoje, pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial[38], credor internacional, em virtude do valor das suas reservas ser superior ao volume da dívida externa. O governo brasileiro espera que o crescimento do PIB do país, para 2009, se situe entre os 3,7% e os 3,8%[39] - um nível inferior ao esperado para os restantes BRIC, mais ainda assim bastante significativo para um país em desenvolvimento. A formação bruta de capital, no Brasil, aumentou expressivamente, os investimentos directos estrangeiros entraram em grande volume[40] e as reservas internacionais do Brasil situaram-se, em Dezembro de 2008, em $ 206,8 mil milhões[41], nível nunca antes alcançado pelo país. Ademais, o Brasil melhorou a sua capacidade de suportar os choques externos e o governo brasileiro prevê, mesmo, que o país, em até dez anos, assuma a liderança mundial na exportação de etanol e soja, superando inclusive os EUA no ranking do comércio internacional destes produtos, reforce a sua liderança na venda de açúcar e registe um salto nas exportações de milho[42]. O Brasil ultrapassou já os EUA em matéria de produção de ferro e café, tornando-se o maior produtor mundial destes bens, sendo ainda o maior produtor do mundo em biocombustíveis, sumo de laranja concentrado, carne de vaca e carne de aves[43]. O Brasil, uma das maiores democracias do mundo, largamente conhecido como o país do futuro, nunca alcançava esse futuro, em virtude das crises económicas e políticas. Agora, esta situação tem-se alterado. Galardoado como investment grade status pela Agência Financeira Standard & Poor[44], em Maio de 2008, o Brasil assume-se como um país sério, que tem adoptado políticas sérias, que cuida das finanças com seriedade, merecendo, por conseguinte, a confiança internacional, como Lula afirmaria após o anúncio da Standard & Poor[45]. As descobertas de petróleo que têm sido feitas pela Petrobrás contribuem para esta situação, podendo elevar o Brasil ao estatuto de grande produtor de petróleo. De acordo com o prestigiado jornal britânico The Guardian, «South America`s sleeping giant is finally waking up»[46].
O receio inicial de que a ascensão de um torneiro-mecânico e líder sindical à Presidência do Brasil viesse conduzir o país a uma direcção socialista, sentido durante toda a campanha de 2002 – tendo inclusive causado a queda do Real e enfraquecido de algum modo a economia brasileira – desapareceu assim que, uma vez no poder, Lula adoptou políticas económicas liberais – aprofundando inclusive a orientação neoliberal do antecessor Fernando Henrique Cardoso – o que rapidamente restaurou a confiança internacional no Brasil e a credibilidade do país, levando-o a um crescimento económico espectacular.
Esta evolução positiva, assente num programa de desenvolvimento infraestrutural e de um novo modelo energético (através da diversificação da matriz energética), o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), tem sido seguida do aumento das verbas para os programas sociais, que não são apenas programas de distribuição da renda, antes estão vocacionados para a educação, tanto a nível infantil, médio/juvenil, quanto superior, com base na ideia de colocar os jovens, sobretudo os de muito baixa renda, no sistema educacional. É evidente que estas políticas sociais por si só são insuficientes, até porque o espectro da inflação tem toldado a política, quer dos governantes, quer do sector privado empresarial. Pela primeira vez, no início de 2008, o governo manifestou preocupação com a forte expansão da procura nos últimos meses, sendo certo que o pacote de medidas económicas destinadas a compensar a perda de receitas resultantes do fim da Contribuição Provisória Sobre Movimentação Financeira (CPMF) poderia vir a ser benéfico para travar a inflação. Isto porque, para compensar o fim da CPMF, o pacote previa o aumento do Imposto Sobre Operações Financeiras (IOF) e da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL), que levaria ao esfriamento do ritmo de crescimento do consumo, já que o governo desejava que a expansão do crédito continuasse. Por outro lado, é necessário fazer face às vulnerabilidades comuns a todos os BRIC. No caso específico do Brasil, a excessiva burocracia é ainda um empecilho ao desenvolvimento, assim como a deficiente infraestrutura. É evidente que o crescimento do PIB tem sido utilizado para suprir estas necessidades, com pesados investimentos no sector das infraestruturas, mas muito há ainda por fazer, ainda que, depois, praticamente nada sobre para investir nas forças militares – o que também deveria ser feito por um Estado que tem ambições de potência de nível mundial. Por outro lado, o êxito da economia do Brasil, assim como de todos os BRIC, está demasiado dependente do sistema internacional, sendo ainda certa a falta de vontade em promover a alteração da ordem que lhe(s) serve(m) os interesses nacionais. Os próprios problemas relativos à energia, ao ambiente e à tecnologia demonstram que o Brasil não tem, ainda, desenvolvido todos os esforços necessários nessas matérias. Embora muito venha sendo feito, de há uns anos a esta parte, a verdade é que muito tem, ainda, de ser feito, para que se evitem as constantes crises energéticas, para que se alcance o desenvolvimento ambientalmente sustentável e para que o Brasil consiga, efectivamente, alcançar o patamar tecnológico que lhesconfira a independência relativamente aos países ricos. Dependência que ainda possui, tanto em matéria tecnológica, quanto ambiental, quanto, mesmo, energética (porque não chega ter as fontes de energia; é necessário ter, também, a tecnologia que permita trabalhar essas fontes).
Perante estas vulnerabilidades, o Professor Sebastián Edwards, antigo responsável pelo Departamento de Economia para a América Latina do Banco Mundial, actual professor de Economia da UCLA, a recente crise financeira tem demonstrado que a ideia de que o Brasil e todos os emergentes se tornam rapidamente mais fortes que as economias avançadas é falsa, argumentando que a maioria desses países são ainda débeis e têm sido severamente afectados pela recessão que tem atingido os países avançados; situação que será particularmente grave na América Latina[47]. Segundo o Professor Edwards, o Brasil, a par do México, têm sido os emergentes mais afectados pela crise financeira, com a cotação das empresas a cair drasticamente em torno de 50%, tendo os Estados Unidos tido que intervir com a concessão de um crédito de mais de $ 60 biliões[48]. Para Edwards, o Brasil será a questão central, por ser o gigante latino-americano. Durante décadas, o Brasil foi considerado o poder económico do futuro, com previsões de crescimento similares às da China e da Índia, vindo a crise financeira dos dias de hoje demonstrar a fragilidade da economia do país do futuro, um futuro que nunca chegava e que continuará não chegando. Justifica esta ideia alegando a debilidade das bases do recente crescimento económico do Brasil, não obstante ter o presidente Lula fugido da tentação populista de Hugo Chávez e controlado a inflação. O problema é que estas medidas não são suficientes, argumenta Sebastián Edwads, para quem “agility, dynamism, productivity and economic policies to promote efficiency and enterprise are required”[49]. É ainda necessário, de acordo com este ponto de vista, que o Brasil leve a bom porto as necessárias reformas para sustentar o boom de produtividade, deixe de ser um país burocrático, com um sistema educacional deficiente, elevados impostos, infraestrutura medíocre e altíssimo índice de corrupção[50].
A actual intensidade dos contactos internacionais do Brasil com as principais potências mundiais endereça a questão em outro sentido. Os líderes dos principais países da sociedade internacional – como Barack Obama, Nicolas Sarkozy e Gordon Brown – têm-se aproximado do Brasil, nos últimos meses, de forma muito intensa, o que sugere que começam a olhar para o gigante sul-americano de outro modo e que lhe estão a dar uma credibilidade e uma importância que desmentem o pessimismo de Sebastián Edwards. Tudo indica que, no actual cenário internacional, o Brasil venha a deixar de ocupar uma posição de liderança regional para tornar-se um verdadeiro global player.
Efectivamente, em Dezembro de 2008, Sarkozy encontrou-se com Lula em Brasília, altura em que foram assinados diversos acordos de cooperação, nomeadamente na área da defesa; e em que os dois países firmaram uma parceria estratégica, sendo de salientar o acordo expresso de ambos na ampliação do G8 e na reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, com a concessão de um acento permanente ao Brasil. No final de Fevereiro de 2009, Lula enviou a Sarkozy, através do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, a proposta de uma aliança para estimular a reforma das instituições internacionais, com que ambos concordam. Também na última semana de Fevereiro, Celso Amorim encontrou-se com a secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton, em Washington, não só para preparar a visita seguinte de Lula à capital norte-americana, como também para discutir temas globais, designadamente a crise mundial, a cimeira do G20, a retoma da Ronda de Doha da OMC, a participação dos dois países na Missão de estabilização das Nações Unidas e a crise israelo-árabe.
A 2 de Março, Celso Amorim representou o Brasil na Conferência Internacional sobre Gaza, que decorreu no Egipto, tendo anunciado, no fórum da Conferência de Doadores em Apoio à Economia Palestiniana para a Reconstrução de Gaza, a doação de € 7,9 milhões[51] para ajudar a reconstruir a região.
Dois dias depois (4 de Março), Amorim esteve na III Reunião dos Ministros das Relações Exteriores da América do Sul e dos Países Árabes (ASPA), para preparar a II Cimeira de Chefes de Estado das duas regiões que decorrerá em Doha, a 31 de Março.
Logo a 14 de Março seria vez de Barack Obama. Deslocando-se a Washington, o presidente Lula encontrou-se com o homólogo norte-americano para debater as relações bilaterais, tendo o encontro sido marcado, todavia, pela discussão em torno da crise económica mundial.
A 26 de Março, Lula recebeu, em Brasília, o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, para debater a crise, especialmente em função da proximidade da Cimeira do G20 – que terá lugar em Londres, no dia 2 de Abril, para discutir uma nova arquitectura financeira. Os temas bilaterais foram também abordados, até porque o fluxo comercial entre os dois países aumentou, no ano passado, 20,7%[52], sendo o Brasil o país sul-americano que mais recebe investimentos britânicos (cerca de € 508 milhões em 2008)[53].
Novo encontro entre Lula e Sarkozy está entretanto já agendado para o dia 1 de Abril, em Paris, com o objectivo de coordenar posições relativamente à crise económico-financeira internacional.
Este frenesim diplomático sinaliza claramente que a sociedade internacional, com especial relevância para os mais importantes países que a compõem, estão a abrir caminho para a participação mais activa do Brasil na construção da nova ordem mundial. O que demonstra a importância que os mesmos reconhecem ao Brasil como global player, no caminho do abandono da sua influência estritamente regional.
A verdade, porém, é que, se o Brasil pretende assumir-se como uma potência que ultrapassa os limites regionais, deverá apostar em todos os vértices do poder. Não chega ter peso geo-económico, uma economia pujante, assente numa população numerosa e cada vez mais bem formada, um soft power bem manejado, uma influência política cada vez mais evidente. É necessário ter umas Forças Armadas que estejam à altura dos desafios que se colocam às novas potências. Não obstante ter deixado de ser o quesito central na atribuição do qualificativo de potência, o poder militar é um dos tabuleiros da tridimensionalidade das actuais relações internacionais. E, neste, os EUA jogam sozinhos e lideram sozinhos.
Facto é que o orçamento brasileiro destinado às Forças Armadas em 2007 (2,6% do PIB) foi de cerca de metade do que lhe havia sido destinado em 1995 (4,9% do PIB)[54]. Na Força Aérea, 88% dos aviões têm mais de quinze anos e apenas 37% estão aptos a combater, enquanto na Marinha, dos vinte e um navios de guerra existentes, somente dez estão operacionais, o mesmo sucedendo a dois dos cinco submarinos[55]. No Exército, a situação é ainda mais dramática: as nove baterias antiaéreas que o país dispõe estão fora de combate, enquanto os tanques M 11 são do tempo da guerra da Coreia (1951-53), inúteis, pois, numa guerra moderna[56].
Ademais, o Brasil tem, nos últimos anos, perdido a liderança, entre os Sul-Americanos, em matéria de investimento nas Forças Armadas. Em 2005/2006, o país que mais investia nas Forças Armadas era o Equador (com 3,7% do PIB), seguido pelo Chile (3,5% do PIB), pela Colômbia (3,3% do PIB) e pela Bolívia (2,2% do PIB). O Brasil só aparecia em quinto lugar, com 1,8% do PIB a ser investido em equipamento militar, à frente apenas da Venezuela (1,7% do PIB) e da Argentina (1,1% do PIB)[57]. Ainda assim, o Brasil consegue manter a liderança militar na América do Sul, com 630 pontos[58] em 2006/2007. Bastante à frente do segundo colocado, o Peru (com 449 pontos), o Brasil tem vindo, todavia, a perder pontos, já que em 2004/2005 somava 653 pontos (23 pontos a mais que em 2006/2007). Tal como o Brasil, também a Argentina desceu de 419 para 402 pontos, a Colômbia de 314 para 303 pontos e o Equador de 254 para 244 pontos. Peru, Chile e Venezuela aumentaram os pontos de 2004/2005 para 2006/2007, sendo particularmente relevante o aumento de 34 pontos alcançado pela Venezuela, que passou de 282 para 316 pontos[59].
Com 290 000 homens, o Brasil é hoje o décimo quinto maior efectivo militar do mundo em termos absolutos, perdendo apenas para os EUA, com 1,4 milhão de homens. Em termos relativos[60], porém, o Brasil, com 1 650 homens por cada milhão de habitantes, surge atrás do Chile (o primeiro colocado, com 5 500 homens por cada milhão de habitantes), dos EUA, de Cuba, da Colômbia, da Venezuela, do México e da Argentina[61].
Por muito que custe aos dirigentes brasileiros actuais, ainda muito próximos da vivência ao tempo da ditadura militar (1964-1985) – cujo fim trouxe o total desinteresse pelas questões militares, então secundarizadas na vida pública do país, ainda hoje consideradas politicamente incorrectas – a verdade é que as elites governantes brasileiras e a sociedade civil brasileira terão de resolver consigo próprias o tabu em que se tornaram as questões militares. Pois se é certo que o poder militar é hoje apenas um dos tabuleiros das relações internacionais, não é menos certo que ele continua a ser um dos aspectos essenciais que ditam a atribuição do qualificativo de potência mundial. Se o Brasil ambiciona esse qualificativo, não poderá limitar-se a jogar nos dois outros tabuleiros e deixar isolados os EUA no primeiro de todos. Terá de apostar numa actuação tripla, porque tridimensional é hoje a sociedade internacional.
[1] Cfr. O`NEILL, Jim; Building Better Global Economic Brics, Global Economics Paper nº 66, 30 de Novembro de 2001. Também Steffano Pelle fala dos BRIC, assim como outros economistas da Goldman Sachs, no seguimento da tese lançada por O`Neill.
[2] Cfr. Idem.
[3] Para se ter uma noção das percentagens relativas de utilizadores da Internet pelo mundo, vide www.internetworldstats.com/stats4.htm#europe.
[4] Cfr. O`Neill, Jim; op. Cit..
[5] Cfr. WILSON, Dominic e PURUSHOTHAMAN, Roop; Dreaming with BRICs: The Path to 2050, Global Economics Paper nº 99, 1 de Outubro de 2003.
[6] Cfr. Idem, pp. 1.
[7] Cfr. COOPER, Andrew F., ANTKIEWICZ, Agata e SHAW, Timothy M.; Economic Size Trumps All Else? Lessons from BRICSAM, Building Ideas for Global Change, working papaer nº 12, Dezembro de 2006.
[8] Cfr. HAASS, Richard; The Age of Nonpolarity – What Will Follow U.S. Dominance?, Foreign Affairs, Maio/Junho de 2008. Vide também: HAASS, Richard; Ask the Expert: What Comes After Unipolarity?, Financial Times, Abril de 2008; na Era Não-Polar, os EUA Não Podem Mais Ser Sozinhos, entrevista de Sérgio Dávila a Richard Haass para a Folha de São Paulo de 12 de Maio de 2008.
[9] Cfr. HAASS, Richard; The Age of Nonpolarity – What Will Follow U.S. Dominance?, Foreign Affairs, Maio/Junho de 2008.
[10] Cfr. Idem, ibidem.
[11] Cfr. Idem, ibidem.
[12] Estes custos foram de facto elevado, mas nunca romperam com as finanças norte-americanas. Segundo Farred Zakaria, os EUA têm gasto, por ano, cerca de $ 125 biliões com a guerra no Iraque e no Afeganistão, o que representa apenas 1% do PIB norte-americano. Cfr. ZAKARIA, farred; O Mundo Pós-Americano, 1ª edição, Editora Gradiva, Lisboa, Setembro de 2008, pp. 163.
[13] Cfr. ZAKARIA, Fareed; The Future of American Power – How America Can Survive the Rise of the Rest, Foreign Affairs, Maio/Junho de 2008.
[14] Cfr. Idem, ibidem.
[15] Cfr. Idem.
[16] Cfr. Idem.
[17] Cfr. Idem.
[18] Cfr. Idem.
[19] Cfr. Idem.
[20] Cfr. Idem.
[21] Cfr. NYE, Joseph; The Changing Nature of World Power, Political Science Quarterly, vol. 105, nº 2, Verão de 1990, pp. 177-192.
[22] Aqui, poder é entendido como a capacidade de uma unidade política influenciar as acções das demais de forma previsível, isto é, constranger os demais a comportamentos que lhe tragam o efeito pré-determinado pretendido; ou, segundo a Doutrina Estratégica Brasileira, a expressão integrada dos meios de toda a ordem de que a unidade política dispõe, accionados pela vontade nacional, no sentido de alcançar e manter, interna e externamente, os objectivos definidos com base no interesse nacional. Para o cientista político Robert Dahl, o poder é a habilidade de constranger os outros a fazer o que estes, de outro modo, não fariam (Cfr. DAHL, Robert; Who Governs? Democracy and Power in na American City, Yale University Press, 1ª edição, Yale, 1961); o que aponta para uma conceptualização behavioralista da medição do poder, em termos de alterar comportamentos, o que implica conhecer as preferências desses sujeitos – tarefa extraordinariamente difícil (Cfr. NYE, Joseph; The Changing Nature of World Power, Political Science Quarterly, vol. 105, nº 2, Verão de 1990, pp. 177-192, pp. 178).
[23] Cfr. NYE, Joseph; Soft Power: The Means to Success in World Politics,editora Public Affairs, 1ª edição, EUA, Março de 2004.
[24] Cfr. KEOHANE, Robert e NYE, Joseph; Power and Interdependence, Library of Congress Cataloging – in Publication Data, Longman Editions, 3ª edição, Nova Iorque, 2001.
[25] Cfr. NYE, Joseph; The Changing Nature of World Power, Political Science Quarterly, vol. 105, nº 2, Verão de 1990, pp. 177-192. Vide ainda: NYE, Joseph; Soft Power: The Means to Success in World Politics,editora Public Affairs, 1ª edição, EUA, Março de 2004. NYE, Joseph; The Paradoxo of American Power, Oxford University Press, 1ª edição, EUA, Maio de 2003. NYE, Joseph; The Decline of America`s Soft Power, Foreign Affairs, Maio-Junho de 2004. GUZZINI, Stefano; Structural Power: The Limits of Neorealist Power Analysis, International Organization, Vol. 47, nº 3, Verão de 1993, pp. 443-478. DAHL, Robert; Who Governs? Democracy and Power in na American City, Yale University Press, 1ª edição, Yale, 1961. STRANGE, Susan; States and Markets, Basil Blackwell editora, Nova Iorque, 1988. KEOHANE, Robert e NYE, Joseph; Power and Interdependence, Library of Congress Cataloging – in Publication Data, Longman Editions, 3ª edição, Nova Iorque, 2001. SARFATI, Gilberto; O Terceiro Xadrez: Como as Empresas Multinacionais Negociam nas Relações Econômicas Internacionais, tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de Ciências Políticas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob orientação da Prof. Doutora Elizabeth Balbachevsky, São Paulo, 2006.
[26] Cfr. SARFATI, Gilberto; O Terceiro Xadrez: Como as Empresas Multinacionais Negociam nas Relações Econômicas Internacionais, tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de Ciências Políticas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob orientação da Prof. Doutora Elizabeth Balbachevsky, São Paulo, 2006, documento não publicado disponível no Banco de Teses da Universidade de São Paulo, pp. 53-54.
[27] Cfr. Idem, ibidem.
[28] Cfr. CERVO, Amado Luiz; Inserção Internacional – Formação dos Conceitos Brasileiros, Editora Saraiva, 1ª edição, São Paulo, 2008, pp. 85.
[29] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; As Relações em Eixo Franco-Alemãs e as Relações em Eixo Argentino-Brasileiras – Génese dos Processos de Integração, ISCSP/UTL, 1ª edição, Lisboa, Julho de 2007.
[30] Cfr. Mário Miranda, Agência Lusa, de Lisboa, 10 de Março de 2009.
[31] O G20 reuniu-se em Washington, a 8 de Novembro de 2008, tendo o presidente Lula exigido que ao Brasil seja concedido um papel mais significativo nas questões mundiais.
[32] Cfr. CERVO, Amado Luiz; op. Cit., pp. 108.
[33] Cfr. Idem, ibidem.
[34] A 11 de Março de 2009, o director executivo do FMI, Paulo Nogueira Batista, que representa o Brasil e outros países sul-americanos no FMI, afirmou perante o presidente Lula que «o Brasil está bem, apesar dos efeitos da crise». Cfr. Mário Miranda, Agência Lusa, de Lisboa, 11 de Março de 2009.
[35] Segundo o presidente Lula, esta classe média é já maioria, representando 52% de toda a sociedade brasileira. Cfr. LULA DA SILVA; Colocar B em BRIC, O Mundo em 2009, The Economist, pp. 58.
[36] Cfr. LULA DA SILVA, Mensagem encaminhada ao Congresso Nacional, 6 de Fevereiro de 2008.
[37] Cfr. Idem.
[38] No final da Segunda Guerra Mundial, houve um curto período em que o Brasil também viveu o papel de credor internacional. Durante o conflito, o país havia acumulado um grande saldo externo, que o governo Vargas pretendia utilizar como recurso para a recuperação tecnológica da indústria. Entretanto, porém, em apenas dois anos (1946 e 1947), a política económica liberal do presidente Eurico Gaspar Dutra, de liberdade cambial e abertura do mercado nacional, gastou aquelas reservas com a importação livre de supérfluos, fazendo regredir a situação creditícia que o Brasil teve por um curto espaço de tempo. Hoje, a dívida externa volta a ser inferior às reservas nacionais, como não sucedia no país desde o fim do Segundo Grande Conflito Mundial. Mas a situação actual tem também uma forte fragilidade, em razão do crescimento da dívida interna, remunerada a juros extremamente elevados, e do papel do investimento estrangeiro, que se beneficia daqueles juros, na formação das reservas. Esta situação origina uma grande emissão de títulos federais para ''esterilizar'' o meio circulante dos Reais constantemente emitidos para fazer o câmbio. Os títulos assim emitidos a juros altos são comprados pelos aplicadores, sendo a diferença custeada pela emissão de mais títulos e pela maior necessidade de superavite primário no orçamento público. Assim, enquanto é criado património financeiro privado, a dívida pública interna vai crescendo, decorrente de uma política monetária muito restritiva, que não permite que os Reais assim gerados circulem na economia financiando a produção e aumentando o consumo. Em resumo, se as taxas de juros não fossem tão altas e a política monetária mais expansiva, a atracção do ganho fácil não traria tantos Dólares ao Brasil, mas haveria mais Reais em circulação e menos dívida pública a sufocar o Estado brasileiro. A política económica, que ajudou a gerar a grande reserva externa, é, assim, também, a responsável pela própria fragilidade. Na verdade, no passado, a confortável situação de credor internacional durou, para o Brasil, apenas dois anos. Quantos irá durar a situação actual?
[39] Em 2007, a previsão da Administração Lula era de um crescimento do PIB de 5%. No final de Agosto de 2008, esse valor baixou para 4,5%, tendo o governo actualizado as previsões, no final de Novembro de 2008, para cerca de 3,7% e 3,8%, pela voz do ministro Paulo Bento, do Planejamento.
[40] A 26 de Janeiro de 2009, o Banco Central do Brasil informou que, em 2008, os investimentos directos estrangeiros (IDE) atingiram o patamar recorde de $ 45 mil milhões, o máximo alcançado desde 1947
[41] Segundo dados do Banco Central do Brasil de Janeiro de 2009.
[42] O boom das commodities, designadamente de soja, é particularmente relevante no estado do Mato Grosso, que se transformou na vanguarda da marcha brasileira em direcção a um novo lugar na sociedade internacional global.
[43] Cfr. BRIDGES, Tyler; Brazil no Longer Longo n Potential and Short on Performance, in Miami Herald, 12 de Novembro de 2008.
[44] Cfr. The Country of the Future Finally Arrives, in secção financeira do The Guardian, 10 de Maio de 2008, pp. 41.
[45] Afirmação de Lula, in idem, ibidem.
[46] Cfr. Idem, ibidem.
[47] Cfr. EDWARDS, Sebastián; The Financial Hurricane Hits Latin America, Project Syndicate – An Association of Newspapers Around the World, in www.project-syndicate.org, 2008.
[48] Cfr. Idem, ibidem.
[49] Cfr. Idem, ibidem.
[50] Cfr. Idem, ibidem.
[51] Cfr. Carla Mendes, Agência Lusa, de Brasília, 3 de Março de 2009.
[52] Cfr. Carla Mendes, Agência Lusa, de Brasília, 24 de Março de 2009.
[53] Cfr. Idem.
[54] Segundo dados do Centro de Comunicação do Exército brasileiro em Março de 2009.
[55] Cfr. Idem.
[56] Cfr. Idem.
[57] Segundo dados da Military Power Review.
[58] A Military Power Review atribui pontos em função da quantidade e qualidade dos equipamentos e em função do tamanho do contingente militar de cada país.
[59] Segundo dados da Military Power Review.
[60] Em termos absolutos são contados os efectivos existentes em termos numéricos apenas. Em termos relativos essa contagem é feita com relação à população do país. Assim, em termos relativos conta-se o número de militares existentes por cada milhão de habitantes do país.
[61] Segundo dados do Centro de Comunicação do Exército brasileiro em Março de 2009.
Quase duas décadas volvidas desde o derrube do muro de Berlim – e subsequentes transformações registadas no Leste do Velho Continente – o mundo continua a alterar-se velozmente. As relações internacionais adquirem um significado especial, diferente do quadro realista que desde a Segunda Guerra Mundial havia marcado a evolução da ordem mundial e do seu sistema internacional. Não é certo que o sistema dito westphaliano tenha desmoronado, tampouco que o Estado esteja prestes a desaparecer como actor das relações internacionais. O que tem ocorrido é uma transformação profunda daquele sistema, bem como do sentido que pode hoje atribuir-se ao Estado. A clássica potência territorial e político-militar vê alterarem-se as funções, outrora especificamente consideradas prerrogativas exclusivas da sua soberania. As funções de regulação económica são, em parte, transferidas para organizações internacionais, para espaços regionais organizados e, até mesmo, para actores privados, o que ocorre mesmo em relação ao poder régio de emitir moeda, que os Estados da União Europeia já foram levados a não mais assumir. As funções sociais e culturais ultrapassam também as fronteiras nacionais, porque os problemas são globais e é globalmente que têm de ser solucionados. As organizações humanitárias e ecológicas, os movimentos sociais transfronteiriços, as organizações não governamentais de um modo geral proliferam para fazer-nos lembrar disso. As funções protectoras dos Estados estão também em mutação. A falência dos modelos europeus do Welfare State estão aí para o demonstrar. Até mesmo a era da monopolização da guerra pelos Estados chega ao fim, com a relação entre violência e política totalmente alterada. Os movimentos terroristas o comprovam. É evidente que o Estado continua a existir, continua com a função de assegurar a competitividade das suas empresas e, de forma mais ortodoxa, vê imporem-se novas funções macroeconómicas, como a acção anti-inflacionária, a gestão das finanças públicas, o respeito pelos grandes equilíbrios; enfim, permanece, mas com funções diferentes, muitas delas ainda não interiorizadas. Os aparelhos de Estado estão ainda despreparados para a nova realidade e a relativização do princípio territorial, que multiplica os espaços nos quais as aspirações e as opções políticas podem ocorrer, ainda não é tranquilamente vista como dado adquirido. É complexa a relação entre as reivindicações identitárias e o território, já que, de um lado, a multiplicação dos espaços criados pela mundialização fragiliza a relação Estado-cidadão e, por outro, as reivindicações nacionalistas proliferam, obrigando à consolidação de espaços políticos no interior de uma entidade territorial que carece de novas estruturas.
Na realidade, após a era unipolar (com os EUA como potência única), que sucedeu à era bipolar (quando ainda existia a URSS), o mundo tornou-se multipolar, quando novos poderes, essencialmente económicos, surgiram para dominar o mundo juntamente com os EUA e a União Europeia. São eles o Brasil, a Rússia, a Índia e a China, num primeiro momento, logo seguidos pelo México e pela África do Sul, depois por mais uma dezena de outros países ditos emergentes.
Estes novos poderes têm em comum, realmente, o facto de serem emergentes, o que terá motivado a criação do acrónimo BRIC.
Fala-se muito, hoje em dia, especialmente na comunicação social brasileira, relativamente na chinesa e na indiana, e praticamente nada na russa, dos BRIC. Acrónimo lançado por Jim O`Neill, economista do grupo norte-americano Goldman Sachs, em 2001[1], BRIC refere-se, sugestivamente, ao Brasil, à Rússia, à Índia e à China, no sentido de chamar a atenção para as economias desses países, considerados emergentes, porque as respectivas economias têm alcançado tal nível de crescimento nos últimos anos que, em 2050, virão a ultrapassar o crescimento das economias hoje mais sólidas da sociedade internacional[2], desde que satisfaçam determinadas condições.
Os BRIC têm, efectivamente, em comum, o facto de serem países emergentes, sendo a ideia da Goldman Sachs dar-lhes por isso atenção, também numa tentativa de neles aplicar o american dream. O que levou o grupo norte-americano a entrar em rota de colisão com a política externa dos Estados Unidos.
Na realidade, após o derrube do muro de Berlim e subsequente transformações registadas no Leste europeu, emergiu, dos escombros da Ordem dos Pactos Militares, uma nova ordem internacional unipolar, dominada pela unilateralidade do domínio absoluto exercido pela política externa norte-americana. Ao nível económico, todavia, não tardaria que novos poderes surgissem impondo a partilha do domínio do mundo entre eles, a União Europeia e os EUA. Empresas como a Goldman Sachs encararam essa ordem internacional, até aos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001, como multipolar, indo por isso em busca de países emergentes onde pudessem investir de modo mais lucrativo. Para essas empresas, a sociedade internacional nada apresentava de unipolaridade, apenas o sendo para a Escola Realista das Relações Internacionais, vinculada à definição de superpotência como o poder que tem capacidade de actuar em qualquer teatro de operações, a qualquer momento, tanto económica, como ideológica, cultural e militarmente. Mas a sociedade internacional afirmava-se, para estas empresas, multipolar, sendo seu objectivo salvaguardar o Estado para que este não entrasse em colapso e, assim, serem evitadas novas guerras; razão pela qual partiram em busca de novos pólos de investimento, voltando-se então para as economias que começavam a apresentar grande crescimento económico, sendo certo que essas economias possuem grandes potencialidades, designadamente no que às populações numerosas e às extensões territoriais diz respeito. São países com uma massa crítica extraordinária, com populações que têm desenvolvido os mais variados sectores económicos, alcançando elevada formação, apresentando-se fortemente utilizadoras das tecnologias, em particular das tecnologias de informação, com destaque para o uso e abuso da Internet[3].
Com o 11 de Setembro de 2001, este estado de coisas alterou-se, não em função do islamismo ou do terrorismo, mas sim da (in)estabilidade económica. É evidente que os ataques terroristas ao coração do poder financeiro e militar dos EUA originaram a imprevisibilidade dos acontecimentos na ordem internacional pós-derrube do muro de Berlim, fazendo erigir uma nova ordem internacional. Todavia, a preocupação central desta segue sendo a estabilidade económica. O termo BRIC é, na verdade, lançado como alternativa de mercado em função, não só dos ataques terroristas, mas também, e sobretudo, das más políticas de Alan Greenspan.
Foi assim que a Goldman Sachs, que já vinha estudando os mercados emergentes desde a década de 1980, lançou o termo BRIC a 30 de Novembro de 2001[4], como resposta ao 11 de Setembro, com receio de um crash bolsista. Em 2003, lançaria a tese do Dreaming With the BRICs[5], já que, do ponto de vista de quem investe, o deadline de 2003 a 2050 confere segurança e confiança, particularmente relevantes na era de insegurança e pouco ganho que se seguiu aos ataques terroristas. Para Dominic Wilson e Roop Purushothaman, “the BRICs economies could become a much larger force in the world economy. We map out GDP growth, income per capita and currency movements in the BRICs economies until 2050”[6]. A partir da previsão assim elaborada, a Goldman Sachs investiu agressivamente nestes mercados emergentes. Em relatório de 2006[7], o grupo previu, mesmo, que o PIB do Brasil, de $ 4338 em 2000, seria, em 2050, de $ 26592, o que significa que investidores, em todo o mundo, investirão nestes mercados, sendo certo que a Goldman Sachs prevê, ainda, um crescimento económico do Brasil muito próximo ao da China, ao mesmo tempo que, menor na Índia, esse crescimento é ainda mais significativo na Rússia. As análises da Goldman Sachs mostram também uma estabilidade de crescimento para os BRIC na ordem dos 3,5% - número relativamente modesto, mas que apresenta grande segurança. Quando o crescimento do PIB é excessivamente elevado, é porque se trata de uma bolha inflacionada prestes a rebentar. Crescimentos do PIB mais modestos, mas todavia significativos, quando são constantes, demonstram sustentabilidade e maiores garantias de segurança. Trata-se, pois, de economias que crescem de forma sustentada que, mesmo que haja uma instabilidade política, a economia prossegue porque se encontra mais autónoma da política, sustentando a análise na fortíssima classe média que os BRIC vão tendo e apresentando recentemente. Comparando com o G7, as taxas de crescimento dos BRIC são mais modestas (mas não muito longe dos valores do G7), o que todavia representa grande estabilidade. E a estabilidade é o que mais interessa aos investidores.
Em 2005, a Goldman Sachs antevê uma crise mundial (a que efectivamente teria início no Verão de 2007), mas nada manifesta, de modo a evitar a aceleração da desestabilização. É neste sentido que o grupo passa a considerar e a aconselhar aos investidores a possibilidade de investir em outras economias em ascensão, os Next 11 (Bangladesh, Egipto, Indonésia, Irão, Coreia, México, Nigéria, Paquistão, Filipinas, Turquia e Vietname), como forma de diversificar os investimentos de modo a robustecer a capacidade das economias fazerem face à crise. A banca passa, então, a ter dois portfolios de investimento: os BRIC e os Next 11.
De facto, surgiram derivações interessantes dos BRIC, fazendo aumentar os pólos de poder e, por consequência, aumentar o número de actores importantes das relações internacionais, reforçando o mundo multipolar. Se a Goldman Sachs criara os BRIC, viria, pouco depois, a falar dos BRICS (resultado da junção da África do Sul aos BRIC); o mercado acrescentaria outros poderes económicos a esses cinco, com a junção do México aos BRIC, formando os BRICM e, ainda, com a junção, à África do Sul e ao México, dos dez Estados-membros da ASEAN, criando os BRICSAM.
A sociedade internacional afirmava-se como decididamente como multipolar. Entretanto, porém, a evolução célere dos BRIC do ponto de vista da utilização das tecnologias, designadamente das tecnologias de informação, leva-os a acelerar o processo mundial de criação dos sistemas de rede, preparando o caminho para a substituição da multipolaridade pela não-polaridade da sociedade internacional.
Na realidade, em função dessa evolução, o mundo começaria a romper com a multipolaridade; ou, o que é mais correcto, avançando tanto nessa multipolaridade que hoje a sociedade internacional conta com tão elevado número de actores relevantes, que é impossível identificá-los, o que sugere a não-polaridade de um mundo marcado por imensos e incontáveis pólos de acção[8].
Neste sentido, embora, à primeira vista, possa parecer que a sociedade internacional seja hoje multipolar, ela apresenta características bem distintas dessa multipolaridade: existem muitos mais centros de poder e grande parte deles são não estatais. “In contrast to multipolarity – which involves distinct poles or concentrations of power – a nonpolar international system is characterized by numerous centers with meaningful power”[9]. O mundo, hoje, não é dominado por um ou dois ou mesmo vários Estados, mas antes por dezenas, talvez centenas, de actores detendo e exercendo vários tipos de poder[10]. “Power is now found in many hands and in many places”[11].
A composição da actual sociedade internacional, global para Hedley Bull, apresenta centenas de actores com capacidade para intervir nas relações internacionais. Desde grandes potências (como os EUA), a organizações regionais (como a União Europeia e a ASEAN) e internacionais (como a ONU e a OMC), a organizações terroristas (como o Hamas e a Al-Qaeda), a organizações não-governamentais (como os Médicos sem Fronteira e o Greenpeace), a empresas multinacioanis (como a Nike a a MacDonalds) aos média com difusão à escala global (como a CNN e a Al Jazeera), a organizações religiosas, a partidos políticos, a cartéis da droga e ao próprio indivíduo. Há também estados, dentro dos Estados, como a Califórnia, que têm importância crescente, assim como cidades como Nova Iorque, São Paulo e Shangai. O mundo assiste, hoje, não mais à concentração de poder, mas à distribuição de poder. Às seis maiores potências mundiais juntam-se o Brasil, a Argentina, o Chile, o México e a Venezuela, na América Latina; a Nigéria e a África do Sul, na África; o Egipto, o Irão, Israel e a Arábia Saudita, no Médio Oriente; o Paquistão na Ásia do Sul; a Austrália, a Indonésia e a Coreia do Sul na Ásia do Leste e na Oceânia.
O aparecimento destes poderes, estatais e não-estatais, relativiza o poder e a influência da única superpotência restante após o fim da Ordem dos Pactos Militares, a grande vencedora da Guerra Fria. A China demonstrou ser o Estado mais capaz para influenciar o programa nuclear da Coreia do Norte, enquanto o poder de influência norte-americano sobre Teerão deve-se à participação de vários Estados-membros da União Europeia. Por outro lado, os poder dos EUA de influenciar Teerão diminui em função da relutância da China e da Rússia em impor sanções ao Irão. A China e a Rússia também diluíram os esforços internacionais para pressionar o governo do Sudão a acabar com a guerra em Darfur, enquanto o Paquistão, o Irão, a Coreia do Norte, a Venezuela e o Zimbabué têm também demonstrado grande capacidade para opor-se às iniciativas dos Estados Unidos. E mais: há hoje fundos de investimento em países como a China, o Kuwait, a Rússia, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos que funcionam como mecanismos para alargar o potencial económico destes países, embora se trate de investimento público para fins privados. Fundos esses que, em virtude dos altos lucros registados, estão a comprar o futebol inglês como forma de lazer (note-se os recentes casos do Manchester e as aproximações ao Newcastel).
Tudo isto tem vindo a relativizar o poder dos EUA nas relações internacionais, numa situação que se agravou em função da própria postura norte-americana assumida pela Administração de George W. Bush. Ao decidir agir por conta própria e recorrendo a reivindicações forjadas no caso do Iraque, W. Bush conseguiu lançar uma grande suspeição sobre as políticas norte-americanas e com isso tornou-se incapaz de influenciar uma série de parceiros. Também uma política económica errada acelerou este processo. Os enormes gastos no conflito no Médio Oriente[12], os cortes nas receitas provenientes dos impostos e a falta de compreensão relativamente à política energética, tiveram custos elevados no prestígio do então presidente dos EUA.
Estes erros, vale lembrar, não determinaram a engrenagem em direcção à não-polaridade. Simplesmente, aceleraram o processo. A própria globalização é um factor que tem levado a generalidade dos Estados a desenvolver-se e a ganhar capacidade suficiente para disputar a supremacia norte-americana, o que é, no fundo, um processo normal e inevitável, resultado da alta difusão da informação, que tem permitido que outros apareçam, com economias vibrantes assentes num contínuo progresso tecnológico, tal e qual os EUA são hoje. Fareed Zakaria refere-se a este processo como the rise of rest[13], na estruturação de um mundo não-polar que é, também, pós-americano[14]. Um mundo no qual o domínio norte-americano é posto à prova por uma série de novos actores.
Não significa isto a decadência dos EUA; mas tão somente a emergência de outros poderes. Afinal, os EUA continuam a gastar mais na pesquisa militar do que o resto do mundo todo, e fazem-no sem quebrar as contas públicas. Mesmo os gastos com a guerra no Iraque e no Afeganistão representam apenas 1% do PIB norte-americano[15]. “The United States will remain a vital, vibrant economy, at the forefront of the next revolutions in science, technology and industry »[16], até porque o país tem beneficiado massivamente das tendências impostas pela globalização. Para além de receber biliões de dólares em investimento, as suas multinacionais penetram tranquilamente nos diferentes países com enorme sucesso. Ademais, são os EUA a dominar as indústrias da nanotecnologia e da biotecnologia, comummente aceites com as indústrias do futuro. Com um elevado nível de qualificação, a população norte-americana é pujante e criativa, continuando os EUA a ser a mais importante fonte de ideias, em muito assente na extraordinária capacidade de absorver a imigração. É evidente que existem problemas: “the U.S. saving rates is zero; the current account deficit, the trade deficit and the budget deficit are high; the median income is flat; and commitments for entitlements are unsustainable”[17]. Estes são desafios que os EUA têm de enfrentar. Para tanto, devem preparar-se para realizar mudanças de fundo importantes, como a adopção de políticas económicas mais acertadas, já que os actuais problemas económicos “are not the product of deep inefficiencies within the U.S. economy, nor are they reflections of cultural decay. They are the consequences of specific government policies”[18]. Ademais, os progressos na sociedade norte-americana – designadamente em matéria de segurança social, reforma tributária e cuidados de saúde – requerem mais amplas coligações entre os dois maiores partidos políticos, requerem compromissos de ambos, no sentido da adopção de uma perspectiva de longo prazo.
Evidentemente, paralelamente a estas mudanças, os EUA têm de adaptar-se ao mundo não-polar pós-americano aceitando a emergência de outros países e, por conseguinte, aceitando a relativização da sua supremacia, o que implica uma alteração de estratégia e de atitude. Os EUA não estão em decadência; vivem tão somente num momento em que outros países ascendem em importância, seja pelo controlo das fontes energéticas, como a Rússia; seja pela captura de cérebros, como a União Europeia; seja pelo peso económico, como a China e, em menor escala, a Índia; seja pelo peso geo-económico, como o Brasil. Em lugar de insistir na manutenção da ordem internacional que têm construído durante os últimos sessenta anos, os EUA devem aceitar a nova realidade internacional, para que possam continuar a controlar a sociedade internacional, o que passa pela aceitação da emergência dos novos actores e de um mundo com grande diversidade de vozes e pontos de vista e pela cedência de espaço aos novos poderes. Se assim for, os EUA estarão colaborando na construção de uma sociedade internacional “in which the United States takes up less space, but it is one in which American ideas and ideals are overwhelmingly dominant”[19]. Na realidade, para Zakaria, “the United States has a window of oportunity to shape and master the changing global landscape, but only if it first recognizes that the post-american world is a reality – and embraces and celebrates that fact”[20].
Neste novo contexto internacional, em que são reconceptualizados o poder, a balança de poder e a hegemonia[21], o poder dos Estados não pode continuar a ser meramente medido pela tradicional visão realista que assenta na quantificação do território, da população, dos recursos económicos, da tecnologia e da capacidade militar e na análise da vontade política, da qualidade das elites governantes e do modelo constitucional. A par da avaliação destes factores de poder, que continuam a ser válidos para o desenvolvimento da capacidade de influenciar os demais e, por conseguinte, projectar poder[22], é necessário recorrer à análise de factores subjectivos que dependem muito mais da capacidade de influência indirecta sobre os outros, do que de uma projecção exclusiva de hard power. É importante, assim, ter em conta a habilidade de um corpo político influenciar indirectamente o comportamento ou interesses dos outros corpos políticos por meios culturais, ideológicos e através do prestígio, sem recurso à força ou à coacção. Porque assim influenciados, esses corpos políticos serão levados a crer que os seus objectivos e interesses, na arena internacional, serão convergentes em funcionalidade com o corpo que assim os influencia, o que os levará a cooperar com o primeiro[23], numa síntese entre os pressupostos realistas e os institucionais neoliberais em torno da interdependência complexa de Robert Keohane e Joseph Nye[24]. Daqui advém a força do soft power[25] para o entendimento da actual sociedade internacional, sendo certo que as potências apenas o serão se conjugarem o soft e o hard power. O que significa que, contemporaneamente, “não é possível compreender as relações internacionais nos termos tradicionais da polaridade [seja multi seja uni], porque a distribuição do poder deve ser analisada em um tabuleiro tridimensional, no qual, no tabuleiro superior, estaria o poderio militar, em que os EUA são claramente hegemónicos; no tabuleiro do meio, o económico, o poderio seria multipolar, pois, juntando os EUA, a Europa e o Japão [acrescentam-se os BRIC] (…) o tabuleiro de baixo é o reino das relações transnacionais, que transpõem as fronteiras nacionais e escapam aos controlos governamentais”[26].
Neste complexo jogo tridimensional, os actores estão interconectados e há transferência de poder de um para outro, de modo que o Estado que jogar apenas num dos três tabuleiros não compreenderá a influência e o poder das outras duas dimensões, tendo por isso dificuldade em afirmar-se como actor influente das relações internacionais. Esta realidade aponta, claramente, para o mundo não polar de Haass, especialmente em virtude da dinâmica do terceiro tabuleiro. O próprio Nye, em 2002, não deixa clara, nem a dinâmica deste terceiro tabuleiro nem a forma como ele se relaciona com os demais, sendo, por conseguinte, necessário que o século XXI venha explorar a dinâmica do terceiro tabuleiro, especialmente as multinacionais e as pessoas, em relação à dinâmica económica em nível estatal (segundo tabuleiro) e, mesmo, em relação à dinâmica do poderio militar (primeiro tabuleiro)[27].
É esta a sociedade internacional tridimensional em que o Brasil se insere e actua. É esta a sociedade internacional tridimensional que o Brasil, pelo poder geo-económico que detém, tem ajudado a estruturar. É esta a sociedade internacional tridimensional que o Brasil, pelo poder geo-económico que detém, tem influenciado.
Nesta sociedade internacional tridimensional não-polar e pós-americana, a política externa brasileira, desde 1963 assente na tese, formulada pelo então ministro das Relações Exteriores Araújo de Castro, dos três Ds (Desenvolvimento, Descolonização, Desarmamento) tem tentado conformar a ordem internacional à filosofia política de equalizar os benefícios, nas relações internacionais, entre os países ricos e os emergentes ou, por outras palavras, obter a reciprocidade nas relações internacionais, na tentativa de ultrapassar aquilo que Fernando Henrique Cardoso, quando se tornou céptico quanto à sociedade internacional conformada ao neoliberalismo, chamou de globalização assimétrica. Apostado numa inserção internacional logística, que, mantendo a abertura económica, reintroduz a intervenção estatal sempre que necessária, associando o liberalismo ao desenvolvimentismo, fundindo a doutrina clássica do capitalismo com o estruturalismo latino-americano, o Brasil procura, neste sentido, recuperar a autonomia decisória sem deixar de actuar no sistema internacional vigente, nele procurando superar as assimetrias entre países desenvolvidos e emergentes[28]. Além disso, a política externa brasileira, mantendo a tendência da diversificação de parceiros, segue tentando contrapor-se à acção externa dos EUA que, durante a Administração de George W. Bush, deprimiu o multilateralismo na tentativa de manter as vantagens unilaterais das estruturas hegemónicas do capitalismo ocidental.
Neste sentido, a diplomacia de Lula tem procurado contribuir para o reforço do multilateralismo, actuando em negociações comerciais que se desenrolam em três sectores do multilateralismo: no seio da OMC, no âmbito da edificação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e no quadro do estabelecimento de uma zona de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Tem contribuído, também, para o reforço do multilateralismo em outras áreas da esfera política e geopolítica, designadamente exigindo uma voz mais audível no seio do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, estando disposto a pagar uma quota mais alta ao FMI para poder ampliar o seu poder de decisão no seio desta instituição internacional; a reforma das Nações Unidas e a candidatura brasileira a um assento permanente no Conselho de Segurança, assim como as diligências mais recentes para entrar para a Organização dos Países Produtores e Exportadores de Petróleo (OPEP), sendo de considerar, ainda, a participação do Brasil na liderança da Força de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (com 1 200 homens).
Tem sido, contudo, difícil obter a reciprocidade real entre países capitalistas e emergentes, o que tem levado o Brasil a voltar-se, cada vez mais, para outros espaços de actuação.
Desde logo, o Brasil volta-se para a participação activa no âmbito do multilateralismo regional expresso no sistema interamericano institucionalmente suportado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e pelo Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), ainda que este vector hemisférico ocupe uma importância secundária na actual política externa brasileira que, em termos regionais, prefere valorizar o fortalecimento da integração sul-americana, contexto no qual ganham relevo as relações em eixo[29] com a Argentina e, ainda, o Chile, a Bolívia e a Venezuela. De igual modo, a política externa brasileira mantém relações crescentemente significativas com a África e o Médio Oriente, tentando ainda manter o trato cordial com os EUA – conforme aconselha a prudência do realismo e pragmatismo da diplomacia brasileira.
Ademais, reflectindo sobre os vectores económico, social, político e agrícola (sendo o Brasil, de todos os BRIC, o maior mercado agrícola), o Brasil tem, através de sistemas de rede montados com as universidades, as empresas e os centros de estudo, estruturado pontos de contacto e ligações com os restantes países emergentes. O Brasil congregou a Índia e a China, já pensando nas potencialidades dos minérios; congregou a África do Sul, em função da dinâmica económica sul-africana e da sua rede de influências; e tem-se ligado aos melhores académicos russos, indianos e chineses, para além de ter criado a Secretaria de Acções Especiais de Longo Prazo – englobando o Núcleo de Assuntos Estratégicos (NAE) e o Instituto de Pesquisa Económica Aplicada (Ipea) – à frente da qual está Roberto Mangabeira Unger, conhecido professor de Direito na Universidade de Harvard, que defende formas alternativas de globalização – designadamente a reorientação do regime internacional do comércio e a reorganização das instituições multilaterais do sistema Bretton Woods – e o entendimento do Brasil com as potências emergentes (China, Rússia e Índia) o qual permitirá que, a pouco e pouco, se transforme a natureza da hegemonia norte-americana. Ideias que vão no sentido de criar uma forma de globalização mais propícia ao pluralismo. Mangabeira Unger sustenta que a energia para lutar por essa reconstrução do regime global tem de vir da tentativa de reorientar os projetos nacionais, pelo que, somente quando se tenta desenvolver um projeto nacional alternativo ao projecto neoliberal se torna possível levar adiante a ideia de mudar as regras do actual sistema global.
Acima de tudo, a dificuldade em obter a reciprocidade nas relações internacionais tem justificado a aposta brasileira na aproximação aos países emergentes consubstanciada nas coligações anti-hegemónicas que têm nascido sob sua liderança, desde a reunião de Cancun, em 2003, no âmbito da Ronda de Doha da OMC. Desde logo, ressalta o G20, grupo de países composto pelos de maior peso da América do Sul, da África e da Ásia, liderado pelo Brasil. Igualmente liderado pela diplomacia brasileira surge, também desde 2003, a articulação com a Índia e a África do Sul no seio G3-Ibas; e a articulação com o Japão, a Alemanha e a Índia no âmbito do G4; enquanto a Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA) foi instituída em 2005, prelúdio do que, no primeiro trimestre de 2008, viria a ser a União Sul-Americana de Nações (UNASUL), que, pretendendo desenvolver um plano energético e um banco de desenvolvimento, para promover a integração regional e garantir uma maior presença internacional dos seus membros, criou, a 10 de Março de 2009, na capital chilena, o Conselho de Defesa – organismo de defesa comum destinado a promover a concertação no plano militar e prevenir crises regionais. Composto pelos ministros da Defesa das doze repúblicas que fazem parte da UNASUL (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela), o Conselho terá também por função supervisionar as despesas militares de forma transparente, até porque essas despesas aumentaram 25% em 2008, atingindo os $ 50 mil milhões[30]. Daqui advém o papel do Brasil como âncora da América do Sul e como actor global da sociedade internacional. A sua capacidade de influenciar o comércio internacional patenteia-se por meio do G20[31]; a sua capacidade para influir sobre a segurança internacional torna-se evidente no G4[32]; a sua capacidade de fomentar a cooperação Sul-Sul entre os países emergentes surge evidente no G3-Ibas[33], a associação das três maiores democracias do Sul, destinada a promover a cooperação e o desenvolvimento. Ademais, o Brasil tem defendido o alargamento do G8 de modo a inclui-lo a ele e bem ainda a Rússia, a China, a Índia e o México.
Neste sentido, é evidente o interesse brasileiro em potenciar a economia e o investimento nos restantes BRIC, até porque a globalização dos mercados, ao transformar o mundo numa pequena aldeia global, determina a rápida repercussão dos fenómenos. Desta forma, a capitalização da economia e do investimento na Rússia, na Índia e na China, por parte do Brasil, terá, certamente, efeitos benéficos para a economia brasileira, em pleno momento de expansão, pese embora o agravamento, nos últimos meses, da crise financeira despoletada, em meados de 2007, nos EUA, a propósito do subprime. Os fundamentos da economia brasileira têm-se apresentado sólidos para enfrentar esses distúrbios[34], até pelo aparecimento de um fenómeno social novo: o nascimento de uma classe média oriunda das massas de baixa renda, responsável pelo consumo interno do país, assim contribuindo para o aquecimento global da economia brasileira[35]. Na sexta mensagem anual encaminhada, a 6 de Fevereiro de 2008, ao Congresso Nacional, por ocasião do início do ano legislativo, quando a Câmara e o Senado retomam oficialmente as actividades, após as férias de Verão, o presidente Lula, reconhecendo todavia a existência, no cenário internacional, de riscos para o crescimento da economia brasileira, avaliou que o impacto desse cenário sobre o país seria limitado, em virtude da “demanda doméstica robusta”[36] e da “solidez das contas externas”[37], tendo as Nações Unidas, em 2007, incluído o Brasil, pela primeira vez, no grupo de países com alto índice de desenvolvimento humano. O mesmo Brasil que, segundo informações oficiais de Fevereiro de 2008, torna-se hoje, pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial[38], credor internacional, em virtude do valor das suas reservas ser superior ao volume da dívida externa. O governo brasileiro espera que o crescimento do PIB do país, para 2009, se situe entre os 3,7% e os 3,8%[39] - um nível inferior ao esperado para os restantes BRIC, mais ainda assim bastante significativo para um país em desenvolvimento. A formação bruta de capital, no Brasil, aumentou expressivamente, os investimentos directos estrangeiros entraram em grande volume[40] e as reservas internacionais do Brasil situaram-se, em Dezembro de 2008, em $ 206,8 mil milhões[41], nível nunca antes alcançado pelo país. Ademais, o Brasil melhorou a sua capacidade de suportar os choques externos e o governo brasileiro prevê, mesmo, que o país, em até dez anos, assuma a liderança mundial na exportação de etanol e soja, superando inclusive os EUA no ranking do comércio internacional destes produtos, reforce a sua liderança na venda de açúcar e registe um salto nas exportações de milho[42]. O Brasil ultrapassou já os EUA em matéria de produção de ferro e café, tornando-se o maior produtor mundial destes bens, sendo ainda o maior produtor do mundo em biocombustíveis, sumo de laranja concentrado, carne de vaca e carne de aves[43]. O Brasil, uma das maiores democracias do mundo, largamente conhecido como o país do futuro, nunca alcançava esse futuro, em virtude das crises económicas e políticas. Agora, esta situação tem-se alterado. Galardoado como investment grade status pela Agência Financeira Standard & Poor[44], em Maio de 2008, o Brasil assume-se como um país sério, que tem adoptado políticas sérias, que cuida das finanças com seriedade, merecendo, por conseguinte, a confiança internacional, como Lula afirmaria após o anúncio da Standard & Poor[45]. As descobertas de petróleo que têm sido feitas pela Petrobrás contribuem para esta situação, podendo elevar o Brasil ao estatuto de grande produtor de petróleo. De acordo com o prestigiado jornal britânico The Guardian, «South America`s sleeping giant is finally waking up»[46].
O receio inicial de que a ascensão de um torneiro-mecânico e líder sindical à Presidência do Brasil viesse conduzir o país a uma direcção socialista, sentido durante toda a campanha de 2002 – tendo inclusive causado a queda do Real e enfraquecido de algum modo a economia brasileira – desapareceu assim que, uma vez no poder, Lula adoptou políticas económicas liberais – aprofundando inclusive a orientação neoliberal do antecessor Fernando Henrique Cardoso – o que rapidamente restaurou a confiança internacional no Brasil e a credibilidade do país, levando-o a um crescimento económico espectacular.
Esta evolução positiva, assente num programa de desenvolvimento infraestrutural e de um novo modelo energético (através da diversificação da matriz energética), o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), tem sido seguida do aumento das verbas para os programas sociais, que não são apenas programas de distribuição da renda, antes estão vocacionados para a educação, tanto a nível infantil, médio/juvenil, quanto superior, com base na ideia de colocar os jovens, sobretudo os de muito baixa renda, no sistema educacional. É evidente que estas políticas sociais por si só são insuficientes, até porque o espectro da inflação tem toldado a política, quer dos governantes, quer do sector privado empresarial. Pela primeira vez, no início de 2008, o governo manifestou preocupação com a forte expansão da procura nos últimos meses, sendo certo que o pacote de medidas económicas destinadas a compensar a perda de receitas resultantes do fim da Contribuição Provisória Sobre Movimentação Financeira (CPMF) poderia vir a ser benéfico para travar a inflação. Isto porque, para compensar o fim da CPMF, o pacote previa o aumento do Imposto Sobre Operações Financeiras (IOF) e da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL), que levaria ao esfriamento do ritmo de crescimento do consumo, já que o governo desejava que a expansão do crédito continuasse. Por outro lado, é necessário fazer face às vulnerabilidades comuns a todos os BRIC. No caso específico do Brasil, a excessiva burocracia é ainda um empecilho ao desenvolvimento, assim como a deficiente infraestrutura. É evidente que o crescimento do PIB tem sido utilizado para suprir estas necessidades, com pesados investimentos no sector das infraestruturas, mas muito há ainda por fazer, ainda que, depois, praticamente nada sobre para investir nas forças militares – o que também deveria ser feito por um Estado que tem ambições de potência de nível mundial. Por outro lado, o êxito da economia do Brasil, assim como de todos os BRIC, está demasiado dependente do sistema internacional, sendo ainda certa a falta de vontade em promover a alteração da ordem que lhe(s) serve(m) os interesses nacionais. Os próprios problemas relativos à energia, ao ambiente e à tecnologia demonstram que o Brasil não tem, ainda, desenvolvido todos os esforços necessários nessas matérias. Embora muito venha sendo feito, de há uns anos a esta parte, a verdade é que muito tem, ainda, de ser feito, para que se evitem as constantes crises energéticas, para que se alcance o desenvolvimento ambientalmente sustentável e para que o Brasil consiga, efectivamente, alcançar o patamar tecnológico que lhesconfira a independência relativamente aos países ricos. Dependência que ainda possui, tanto em matéria tecnológica, quanto ambiental, quanto, mesmo, energética (porque não chega ter as fontes de energia; é necessário ter, também, a tecnologia que permita trabalhar essas fontes).
Perante estas vulnerabilidades, o Professor Sebastián Edwards, antigo responsável pelo Departamento de Economia para a América Latina do Banco Mundial, actual professor de Economia da UCLA, a recente crise financeira tem demonstrado que a ideia de que o Brasil e todos os emergentes se tornam rapidamente mais fortes que as economias avançadas é falsa, argumentando que a maioria desses países são ainda débeis e têm sido severamente afectados pela recessão que tem atingido os países avançados; situação que será particularmente grave na América Latina[47]. Segundo o Professor Edwards, o Brasil, a par do México, têm sido os emergentes mais afectados pela crise financeira, com a cotação das empresas a cair drasticamente em torno de 50%, tendo os Estados Unidos tido que intervir com a concessão de um crédito de mais de $ 60 biliões[48]. Para Edwards, o Brasil será a questão central, por ser o gigante latino-americano. Durante décadas, o Brasil foi considerado o poder económico do futuro, com previsões de crescimento similares às da China e da Índia, vindo a crise financeira dos dias de hoje demonstrar a fragilidade da economia do país do futuro, um futuro que nunca chegava e que continuará não chegando. Justifica esta ideia alegando a debilidade das bases do recente crescimento económico do Brasil, não obstante ter o presidente Lula fugido da tentação populista de Hugo Chávez e controlado a inflação. O problema é que estas medidas não são suficientes, argumenta Sebastián Edwads, para quem “agility, dynamism, productivity and economic policies to promote efficiency and enterprise are required”[49]. É ainda necessário, de acordo com este ponto de vista, que o Brasil leve a bom porto as necessárias reformas para sustentar o boom de produtividade, deixe de ser um país burocrático, com um sistema educacional deficiente, elevados impostos, infraestrutura medíocre e altíssimo índice de corrupção[50].
A actual intensidade dos contactos internacionais do Brasil com as principais potências mundiais endereça a questão em outro sentido. Os líderes dos principais países da sociedade internacional – como Barack Obama, Nicolas Sarkozy e Gordon Brown – têm-se aproximado do Brasil, nos últimos meses, de forma muito intensa, o que sugere que começam a olhar para o gigante sul-americano de outro modo e que lhe estão a dar uma credibilidade e uma importância que desmentem o pessimismo de Sebastián Edwards. Tudo indica que, no actual cenário internacional, o Brasil venha a deixar de ocupar uma posição de liderança regional para tornar-se um verdadeiro global player.
Efectivamente, em Dezembro de 2008, Sarkozy encontrou-se com Lula em Brasília, altura em que foram assinados diversos acordos de cooperação, nomeadamente na área da defesa; e em que os dois países firmaram uma parceria estratégica, sendo de salientar o acordo expresso de ambos na ampliação do G8 e na reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, com a concessão de um acento permanente ao Brasil. No final de Fevereiro de 2009, Lula enviou a Sarkozy, através do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, a proposta de uma aliança para estimular a reforma das instituições internacionais, com que ambos concordam. Também na última semana de Fevereiro, Celso Amorim encontrou-se com a secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton, em Washington, não só para preparar a visita seguinte de Lula à capital norte-americana, como também para discutir temas globais, designadamente a crise mundial, a cimeira do G20, a retoma da Ronda de Doha da OMC, a participação dos dois países na Missão de estabilização das Nações Unidas e a crise israelo-árabe.
A 2 de Março, Celso Amorim representou o Brasil na Conferência Internacional sobre Gaza, que decorreu no Egipto, tendo anunciado, no fórum da Conferência de Doadores em Apoio à Economia Palestiniana para a Reconstrução de Gaza, a doação de € 7,9 milhões[51] para ajudar a reconstruir a região.
Dois dias depois (4 de Março), Amorim esteve na III Reunião dos Ministros das Relações Exteriores da América do Sul e dos Países Árabes (ASPA), para preparar a II Cimeira de Chefes de Estado das duas regiões que decorrerá em Doha, a 31 de Março.
Logo a 14 de Março seria vez de Barack Obama. Deslocando-se a Washington, o presidente Lula encontrou-se com o homólogo norte-americano para debater as relações bilaterais, tendo o encontro sido marcado, todavia, pela discussão em torno da crise económica mundial.
A 26 de Março, Lula recebeu, em Brasília, o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, para debater a crise, especialmente em função da proximidade da Cimeira do G20 – que terá lugar em Londres, no dia 2 de Abril, para discutir uma nova arquitectura financeira. Os temas bilaterais foram também abordados, até porque o fluxo comercial entre os dois países aumentou, no ano passado, 20,7%[52], sendo o Brasil o país sul-americano que mais recebe investimentos britânicos (cerca de € 508 milhões em 2008)[53].
Novo encontro entre Lula e Sarkozy está entretanto já agendado para o dia 1 de Abril, em Paris, com o objectivo de coordenar posições relativamente à crise económico-financeira internacional.
Este frenesim diplomático sinaliza claramente que a sociedade internacional, com especial relevância para os mais importantes países que a compõem, estão a abrir caminho para a participação mais activa do Brasil na construção da nova ordem mundial. O que demonstra a importância que os mesmos reconhecem ao Brasil como global player, no caminho do abandono da sua influência estritamente regional.
A verdade, porém, é que, se o Brasil pretende assumir-se como uma potência que ultrapassa os limites regionais, deverá apostar em todos os vértices do poder. Não chega ter peso geo-económico, uma economia pujante, assente numa população numerosa e cada vez mais bem formada, um soft power bem manejado, uma influência política cada vez mais evidente. É necessário ter umas Forças Armadas que estejam à altura dos desafios que se colocam às novas potências. Não obstante ter deixado de ser o quesito central na atribuição do qualificativo de potência, o poder militar é um dos tabuleiros da tridimensionalidade das actuais relações internacionais. E, neste, os EUA jogam sozinhos e lideram sozinhos.
Facto é que o orçamento brasileiro destinado às Forças Armadas em 2007 (2,6% do PIB) foi de cerca de metade do que lhe havia sido destinado em 1995 (4,9% do PIB)[54]. Na Força Aérea, 88% dos aviões têm mais de quinze anos e apenas 37% estão aptos a combater, enquanto na Marinha, dos vinte e um navios de guerra existentes, somente dez estão operacionais, o mesmo sucedendo a dois dos cinco submarinos[55]. No Exército, a situação é ainda mais dramática: as nove baterias antiaéreas que o país dispõe estão fora de combate, enquanto os tanques M 11 são do tempo da guerra da Coreia (1951-53), inúteis, pois, numa guerra moderna[56].
Ademais, o Brasil tem, nos últimos anos, perdido a liderança, entre os Sul-Americanos, em matéria de investimento nas Forças Armadas. Em 2005/2006, o país que mais investia nas Forças Armadas era o Equador (com 3,7% do PIB), seguido pelo Chile (3,5% do PIB), pela Colômbia (3,3% do PIB) e pela Bolívia (2,2% do PIB). O Brasil só aparecia em quinto lugar, com 1,8% do PIB a ser investido em equipamento militar, à frente apenas da Venezuela (1,7% do PIB) e da Argentina (1,1% do PIB)[57]. Ainda assim, o Brasil consegue manter a liderança militar na América do Sul, com 630 pontos[58] em 2006/2007. Bastante à frente do segundo colocado, o Peru (com 449 pontos), o Brasil tem vindo, todavia, a perder pontos, já que em 2004/2005 somava 653 pontos (23 pontos a mais que em 2006/2007). Tal como o Brasil, também a Argentina desceu de 419 para 402 pontos, a Colômbia de 314 para 303 pontos e o Equador de 254 para 244 pontos. Peru, Chile e Venezuela aumentaram os pontos de 2004/2005 para 2006/2007, sendo particularmente relevante o aumento de 34 pontos alcançado pela Venezuela, que passou de 282 para 316 pontos[59].
Com 290 000 homens, o Brasil é hoje o décimo quinto maior efectivo militar do mundo em termos absolutos, perdendo apenas para os EUA, com 1,4 milhão de homens. Em termos relativos[60], porém, o Brasil, com 1 650 homens por cada milhão de habitantes, surge atrás do Chile (o primeiro colocado, com 5 500 homens por cada milhão de habitantes), dos EUA, de Cuba, da Colômbia, da Venezuela, do México e da Argentina[61].
Por muito que custe aos dirigentes brasileiros actuais, ainda muito próximos da vivência ao tempo da ditadura militar (1964-1985) – cujo fim trouxe o total desinteresse pelas questões militares, então secundarizadas na vida pública do país, ainda hoje consideradas politicamente incorrectas – a verdade é que as elites governantes brasileiras e a sociedade civil brasileira terão de resolver consigo próprias o tabu em que se tornaram as questões militares. Pois se é certo que o poder militar é hoje apenas um dos tabuleiros das relações internacionais, não é menos certo que ele continua a ser um dos aspectos essenciais que ditam a atribuição do qualificativo de potência mundial. Se o Brasil ambiciona esse qualificativo, não poderá limitar-se a jogar nos dois outros tabuleiros e deixar isolados os EUA no primeiro de todos. Terá de apostar numa actuação tripla, porque tridimensional é hoje a sociedade internacional.
[1] Cfr. O`NEILL, Jim; Building Better Global Economic Brics, Global Economics Paper nº 66, 30 de Novembro de 2001. Também Steffano Pelle fala dos BRIC, assim como outros economistas da Goldman Sachs, no seguimento da tese lançada por O`Neill.
[2] Cfr. Idem.
[3] Para se ter uma noção das percentagens relativas de utilizadores da Internet pelo mundo, vide www.internetworldstats.com/stats4.htm#europe.
[4] Cfr. O`Neill, Jim; op. Cit..
[5] Cfr. WILSON, Dominic e PURUSHOTHAMAN, Roop; Dreaming with BRICs: The Path to 2050, Global Economics Paper nº 99, 1 de Outubro de 2003.
[6] Cfr. Idem, pp. 1.
[7] Cfr. COOPER, Andrew F., ANTKIEWICZ, Agata e SHAW, Timothy M.; Economic Size Trumps All Else? Lessons from BRICSAM, Building Ideas for Global Change, working papaer nº 12, Dezembro de 2006.
[8] Cfr. HAASS, Richard; The Age of Nonpolarity – What Will Follow U.S. Dominance?, Foreign Affairs, Maio/Junho de 2008. Vide também: HAASS, Richard; Ask the Expert: What Comes After Unipolarity?, Financial Times, Abril de 2008; na Era Não-Polar, os EUA Não Podem Mais Ser Sozinhos, entrevista de Sérgio Dávila a Richard Haass para a Folha de São Paulo de 12 de Maio de 2008.
[9] Cfr. HAASS, Richard; The Age of Nonpolarity – What Will Follow U.S. Dominance?, Foreign Affairs, Maio/Junho de 2008.
[10] Cfr. Idem, ibidem.
[11] Cfr. Idem, ibidem.
[12] Estes custos foram de facto elevado, mas nunca romperam com as finanças norte-americanas. Segundo Farred Zakaria, os EUA têm gasto, por ano, cerca de $ 125 biliões com a guerra no Iraque e no Afeganistão, o que representa apenas 1% do PIB norte-americano. Cfr. ZAKARIA, farred; O Mundo Pós-Americano, 1ª edição, Editora Gradiva, Lisboa, Setembro de 2008, pp. 163.
[13] Cfr. ZAKARIA, Fareed; The Future of American Power – How America Can Survive the Rise of the Rest, Foreign Affairs, Maio/Junho de 2008.
[14] Cfr. Idem, ibidem.
[15] Cfr. Idem.
[16] Cfr. Idem.
[17] Cfr. Idem.
[18] Cfr. Idem.
[19] Cfr. Idem.
[20] Cfr. Idem.
[21] Cfr. NYE, Joseph; The Changing Nature of World Power, Political Science Quarterly, vol. 105, nº 2, Verão de 1990, pp. 177-192.
[22] Aqui, poder é entendido como a capacidade de uma unidade política influenciar as acções das demais de forma previsível, isto é, constranger os demais a comportamentos que lhe tragam o efeito pré-determinado pretendido; ou, segundo a Doutrina Estratégica Brasileira, a expressão integrada dos meios de toda a ordem de que a unidade política dispõe, accionados pela vontade nacional, no sentido de alcançar e manter, interna e externamente, os objectivos definidos com base no interesse nacional. Para o cientista político Robert Dahl, o poder é a habilidade de constranger os outros a fazer o que estes, de outro modo, não fariam (Cfr. DAHL, Robert; Who Governs? Democracy and Power in na American City, Yale University Press, 1ª edição, Yale, 1961); o que aponta para uma conceptualização behavioralista da medição do poder, em termos de alterar comportamentos, o que implica conhecer as preferências desses sujeitos – tarefa extraordinariamente difícil (Cfr. NYE, Joseph; The Changing Nature of World Power, Political Science Quarterly, vol. 105, nº 2, Verão de 1990, pp. 177-192, pp. 178).
[23] Cfr. NYE, Joseph; Soft Power: The Means to Success in World Politics,editora Public Affairs, 1ª edição, EUA, Março de 2004.
[24] Cfr. KEOHANE, Robert e NYE, Joseph; Power and Interdependence, Library of Congress Cataloging – in Publication Data, Longman Editions, 3ª edição, Nova Iorque, 2001.
[25] Cfr. NYE, Joseph; The Changing Nature of World Power, Political Science Quarterly, vol. 105, nº 2, Verão de 1990, pp. 177-192. Vide ainda: NYE, Joseph; Soft Power: The Means to Success in World Politics,editora Public Affairs, 1ª edição, EUA, Março de 2004. NYE, Joseph; The Paradoxo of American Power, Oxford University Press, 1ª edição, EUA, Maio de 2003. NYE, Joseph; The Decline of America`s Soft Power, Foreign Affairs, Maio-Junho de 2004. GUZZINI, Stefano; Structural Power: The Limits of Neorealist Power Analysis, International Organization, Vol. 47, nº 3, Verão de 1993, pp. 443-478. DAHL, Robert; Who Governs? Democracy and Power in na American City, Yale University Press, 1ª edição, Yale, 1961. STRANGE, Susan; States and Markets, Basil Blackwell editora, Nova Iorque, 1988. KEOHANE, Robert e NYE, Joseph; Power and Interdependence, Library of Congress Cataloging – in Publication Data, Longman Editions, 3ª edição, Nova Iorque, 2001. SARFATI, Gilberto; O Terceiro Xadrez: Como as Empresas Multinacionais Negociam nas Relações Econômicas Internacionais, tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de Ciências Políticas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob orientação da Prof. Doutora Elizabeth Balbachevsky, São Paulo, 2006.
[26] Cfr. SARFATI, Gilberto; O Terceiro Xadrez: Como as Empresas Multinacionais Negociam nas Relações Econômicas Internacionais, tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de Ciências Políticas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob orientação da Prof. Doutora Elizabeth Balbachevsky, São Paulo, 2006, documento não publicado disponível no Banco de Teses da Universidade de São Paulo, pp. 53-54.
[27] Cfr. Idem, ibidem.
[28] Cfr. CERVO, Amado Luiz; Inserção Internacional – Formação dos Conceitos Brasileiros, Editora Saraiva, 1ª edição, São Paulo, 2008, pp. 85.
[29] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; As Relações em Eixo Franco-Alemãs e as Relações em Eixo Argentino-Brasileiras – Génese dos Processos de Integração, ISCSP/UTL, 1ª edição, Lisboa, Julho de 2007.
[30] Cfr. Mário Miranda, Agência Lusa, de Lisboa, 10 de Março de 2009.
[31] O G20 reuniu-se em Washington, a 8 de Novembro de 2008, tendo o presidente Lula exigido que ao Brasil seja concedido um papel mais significativo nas questões mundiais.
[32] Cfr. CERVO, Amado Luiz; op. Cit., pp. 108.
[33] Cfr. Idem, ibidem.
[34] A 11 de Março de 2009, o director executivo do FMI, Paulo Nogueira Batista, que representa o Brasil e outros países sul-americanos no FMI, afirmou perante o presidente Lula que «o Brasil está bem, apesar dos efeitos da crise». Cfr. Mário Miranda, Agência Lusa, de Lisboa, 11 de Março de 2009.
[35] Segundo o presidente Lula, esta classe média é já maioria, representando 52% de toda a sociedade brasileira. Cfr. LULA DA SILVA; Colocar B em BRIC, O Mundo em 2009, The Economist, pp. 58.
[36] Cfr. LULA DA SILVA, Mensagem encaminhada ao Congresso Nacional, 6 de Fevereiro de 2008.
[37] Cfr. Idem.
[38] No final da Segunda Guerra Mundial, houve um curto período em que o Brasil também viveu o papel de credor internacional. Durante o conflito, o país havia acumulado um grande saldo externo, que o governo Vargas pretendia utilizar como recurso para a recuperação tecnológica da indústria. Entretanto, porém, em apenas dois anos (1946 e 1947), a política económica liberal do presidente Eurico Gaspar Dutra, de liberdade cambial e abertura do mercado nacional, gastou aquelas reservas com a importação livre de supérfluos, fazendo regredir a situação creditícia que o Brasil teve por um curto espaço de tempo. Hoje, a dívida externa volta a ser inferior às reservas nacionais, como não sucedia no país desde o fim do Segundo Grande Conflito Mundial. Mas a situação actual tem também uma forte fragilidade, em razão do crescimento da dívida interna, remunerada a juros extremamente elevados, e do papel do investimento estrangeiro, que se beneficia daqueles juros, na formação das reservas. Esta situação origina uma grande emissão de títulos federais para ''esterilizar'' o meio circulante dos Reais constantemente emitidos para fazer o câmbio. Os títulos assim emitidos a juros altos são comprados pelos aplicadores, sendo a diferença custeada pela emissão de mais títulos e pela maior necessidade de superavite primário no orçamento público. Assim, enquanto é criado património financeiro privado, a dívida pública interna vai crescendo, decorrente de uma política monetária muito restritiva, que não permite que os Reais assim gerados circulem na economia financiando a produção e aumentando o consumo. Em resumo, se as taxas de juros não fossem tão altas e a política monetária mais expansiva, a atracção do ganho fácil não traria tantos Dólares ao Brasil, mas haveria mais Reais em circulação e menos dívida pública a sufocar o Estado brasileiro. A política económica, que ajudou a gerar a grande reserva externa, é, assim, também, a responsável pela própria fragilidade. Na verdade, no passado, a confortável situação de credor internacional durou, para o Brasil, apenas dois anos. Quantos irá durar a situação actual?
[39] Em 2007, a previsão da Administração Lula era de um crescimento do PIB de 5%. No final de Agosto de 2008, esse valor baixou para 4,5%, tendo o governo actualizado as previsões, no final de Novembro de 2008, para cerca de 3,7% e 3,8%, pela voz do ministro Paulo Bento, do Planejamento.
[40] A 26 de Janeiro de 2009, o Banco Central do Brasil informou que, em 2008, os investimentos directos estrangeiros (IDE) atingiram o patamar recorde de $ 45 mil milhões, o máximo alcançado desde 1947
[41] Segundo dados do Banco Central do Brasil de Janeiro de 2009.
[42] O boom das commodities, designadamente de soja, é particularmente relevante no estado do Mato Grosso, que se transformou na vanguarda da marcha brasileira em direcção a um novo lugar na sociedade internacional global.
[43] Cfr. BRIDGES, Tyler; Brazil no Longer Longo n Potential and Short on Performance, in Miami Herald, 12 de Novembro de 2008.
[44] Cfr. The Country of the Future Finally Arrives, in secção financeira do The Guardian, 10 de Maio de 2008, pp. 41.
[45] Afirmação de Lula, in idem, ibidem.
[46] Cfr. Idem, ibidem.
[47] Cfr. EDWARDS, Sebastián; The Financial Hurricane Hits Latin America, Project Syndicate – An Association of Newspapers Around the World, in www.project-syndicate.org, 2008.
[48] Cfr. Idem, ibidem.
[49] Cfr. Idem, ibidem.
[50] Cfr. Idem, ibidem.
[51] Cfr. Carla Mendes, Agência Lusa, de Brasília, 3 de Março de 2009.
[52] Cfr. Carla Mendes, Agência Lusa, de Brasília, 24 de Março de 2009.
[53] Cfr. Idem.
[54] Segundo dados do Centro de Comunicação do Exército brasileiro em Março de 2009.
[55] Cfr. Idem.
[56] Cfr. Idem.
[57] Segundo dados da Military Power Review.
[58] A Military Power Review atribui pontos em função da quantidade e qualidade dos equipamentos e em função do tamanho do contingente militar de cada país.
[59] Segundo dados da Military Power Review.
[60] Em termos absolutos são contados os efectivos existentes em termos numéricos apenas. Em termos relativos essa contagem é feita com relação à população do país. Assim, em termos relativos conta-se o número de militares existentes por cada milhão de habitantes do país.
[61] Segundo dados do Centro de Comunicação do Exército brasileiro em Março de 2009.
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