Monday, January 21, 2008

O NAFTA




O SIGNIFICADO DO NATFA NO CONTEXTO REGIONAL AMERICANO



Ao abordar o North American Free Trade Agreement (NAFTA) de um ponto de vista amplamente político pretende-se problematizar o significado do NAFTA no contexto regional americano, pelo que importa, em primeiro lugar, deixar claro que a criação do NAFTA surge como um acto de política externa dos EUA.
Tornando-se, desde o final dos anos 60, num Estado importador de produtos manufacturados (alguns dos quais até bastante sofisticados), os EUA viam o american way of life, numa fase de relativa estagnação, ser sustentado pelo consumo de mercadorias importadas e pelo endividamento interno e externo.
Ao mesmo tempo, o fim da ordem internacional dos Pactos Militares deixava os EUA como a única superpotência, o que tornava premente, não só a reorientação da sua economia, de forma a retomar o crescimento e a competitividade, como a reorganização da sua hegemonia, num low profile que lhe permitisse liderar o mundo a um custo inferior. Até porque, se no plano diplomático e militar, o fim da era Bipolar pareceu apontar para a criação de um sistema unipolar, centrado nos EUA, a dimensão económico-tecnológica sugeriu, desde logo, a configuração de traços de multipolaridade, numa sociedade internacional global (à maneira de Hedley Bull) de contornos vincados num multilateralismo marcadamente pós-hegemónico, pós-moderno e pós-westphaliano (à maneira de Robert Cox), no qual a superpotência sobrevivente procura formas de reconcentrar o poder – tornado fluido e volátil.
Razão pela qual a nova doutrina norte-americana de segurança passa a ser composta por três eixos perfeitamente solidários: a segurança (que além dos clássicos aspectos militares inclui também novas missões de luta contra o terrorismo, o tráfico de drogas, uma nova forma de manutenção da liderança no espaço); a prosperidade (que além do reforço económico interno inclui também a abertura dos mercados externos, a coordenação macroeconómica sob liderança norte-americana e a promoção mundial do desenvolvimento sustentável); e a democracia (que deixa de ter a forma de “cruzada democrática” para significar um engajamento pragmático dos EUA na implantação da liberdade onde esta melhor sirva os interesses norte-americanos).
Para forjar uma liderança mundial renovada, os EUA precisavam, então, de colocar em movimento uma série de instituições e práticas legitimadoras supranacionais, dando forma às estruturas hegemónicas de poder com vista a evitar a emergência de pólos desafiantes, fossem eles políticos ou económicos.
Para tanto, os EUA orientaram as referidas práticas segundo o que Alfredo Valladão chamou de estratégia da lagosta: o NAFTA é a cabeça do animal, seu centro nevrálgico; a América Latina o rabo, a retaguarda, a reserva de recursos; as garras projectam-se sobre o Pacífico e o Atlântico, apoiadas em alianças militares na Ásia e na Europa; o objectivo desta lagosta é evitar a emergência de potências hegemónicas nestas regiões; e as suas acções exercem-se sobre um corredor de instabilidade que vai da Rússia ao Leste da África, passando pela Ásia Central ex-soviética, pelo Médio Oriente e pelos Balcãs.
Só que, naturalmente, os EUA não conseguiriam manter o grau de envolvimento global necessário à preservação do seu papel mundial se não executassem um profundo ajuste económico que lhes permitisse restaurar a competitividade. Esta situação levou Bush a propor, aos países latino-americanos, em 1991, a Enterprise for the Americas Iniciative, que anunciava a criação de uma Zona Hemisférica de Livre Comércio do Alasca à Terra do Fogo.
A iniciativa, porém, não foi levada adiante porque a abertura das economias latino-americanas, entretanto ocorrida, começou a proporcionar, aos EUA, aquilo que pretendiam: o aumento das exportações para os países da região, o que prenunciava a possibilidade dos EUA reverterem o défice comercial.
A situação, porém, acabaria por não correr conforme o previsto e, nem a Iniciativa para as Américas, nem o Washington Consensus – o programa de reformas neoliberais elaborado por John Williamson que os Estados latino-americanos tinham que cumprir para poder aceder às ajudas financeiras internacionais – conseguiam reverter o défice comercial dos EUA face à totalidade da América Latina – já que os países desta região, sem terem, ainda, logrado ultrapassar os efeitos da crise económica, haviam deixado de poder importar os produtos norte-americanos, sem que inversamente se tivesse registado igual ocorrência, de modo que o tradicional défice comercial EUA agravava-se a olhos vistos.
Neste contexto, simultaneamente plural e institucional-neoliberal, realista, consocialista e construtivista, de Governança sem Governo (James Rosenau), de Governança Global (Oran Young), de paz democrática (Anne-Marie Slaughter), de interpenetração entre a Economia e a política internacional (Susan Strange), de ordem global cooperativa e de democracia cosmopolita (Daniele Archibugi), exigindo uma mudança ontológica da cooperação mundial, que contraponha “os fenómenos de polarização social, de decomposição da sociedade civil e de pressões sobre o meio ambiente” (R. Cox), perante a crescente globalização do comércio internacional – que não tem estado propriamente associado ao multilateralismo, em função do avanço de novas formas de proteccionsimo não tarifário e de arranjos preferenciais, que têm fomentado a criação de processos regionais de integração – os EUA decidiram expandir o Acordo de Livre-Comércio que mantinham com o Canadá desde Janeiro de 1989, ao México.
O NAFTA surge, assim, como um processo regional de integração que, sem objectivos em matéria de maior aprofundamento económico-político no sentido de evoluir para formas mais avançadas de integração regional, assume-se como simples zona de comércio livre, de acordo com a Teoria da Integração Regional.
E resulta, nascendo em Janeiro de 1994 com a forma trilateral que hoje apresenta, não tanto dos compromissos económico-comerciais efectivamente assumidos pelos EUA e pelo Canadá, mas mais da estratégia comercial norte-americana, decidida a ver solucionado o problema dos défices comerciais, em perfeito acto de política externa. As relações que, quer os EUA, quer o Canadá, mas sobretudo os EUA, iam mantendo com o México, tomavam a forma de acordos bilaterais que regulavam questões económico-comerciais variadas.
É certo que a assinatura, entre os EUA e o Canadá, daquele acordo de livre comércio, impulsionou o México – que sempre estivera, bem como os restantes países da América Central, distante das iniciativas integracionistas da América Latina, subordinadas ao mais profundo neoestruturalismo cepalino (assentes na integração industrial e no desenvolvimentismo) – a afastar-se definitivamente destes projectos (ALALC, ALADI, CEPAL, SELA) e a vincular-se rapidamente às concepções neoliberais dos EUA.
O interesse manifestado desde logo pelo México em compartilhar, com os EUA e o Canadá, a mesma área de livre comércio, não é difícil de ser apreendido, se considerarmos as dificuldades estruturais da economia mexicana, acrescentadas do desejo de ver solucionados os problemas resultantes da emigração mexicana para os EUA e da regularização da situação de ilegalidade de inúmeros mexicanos nos EUA. A participação do México numa área de livre comércio com os EUA e o Canadá significaria, por outro lado, a consagração evidente da política de ajustamento estrutural que o FMI encetara no México na segunda metade dos anos 80 – significando, por conseguinte, a vitória norte-americana da conversão do México às teses neoliberais.
As vantagens mais significativas seriam, contudo, as que beneficiariam os EUA. Em primeiro lugar, o Canadá e o México são o primeiro e segundo destinos das exportações norte-americanas, daqui podendo concluir-se pela importância do México para a economia norte-americana, sendo os EUA o principal importador e exportador do México, desde a década de 80. Para além desta estreita relação comercial, os EUA pretendiam obter, do México, a abertura do sector petrolífero mexicano ao investimento estrangeiro e concretizar a construção de mais um canal transoceânico entre o Atlântico e o Pacífico, que está projectado no istmo de Tehuantepec, no México. A presença do México no NAFTA obrigaria o país, por outro lado, a controlar a sua emigração para os EUA e, ainda, a conter aquela que provém da América Central e do Sul através do seu território. O México representaria, então, uma zona tampão entre os EUA e a indesejada migração dos Latinos, servindo como guarda de sentinela na fronteira entre os dois países.
Os EUA pretendiam alcançar estes objectivos através da extensão da área de livre comércio que já tinham com o Canadá, ao México, obtendo assim vantagens económicas que poderiam reverter o défice comercial norte-americano, designadamente o que possuíam em relação ao México (embora existissem já diversos acordos bilaterais EUA-México para regular as matérias económicas). Mas pretendiam, acima de tudo, alcançar vantagens políticas, pois a extensão da área de livre comércio EUA-Canadá ao México permitiria evidenciar o poder norte-americano de iniciativa ao nível do comércio internacional, com efeitos estratégicos face às negociações, que se arrastavam, do Uruguay Round, ao mesmo tempo que lhes permitira exercer forte influência sobre o subcontinente sul-americano.
A criação do NAFTA permitiria, aos EUA, articular um espaço regional de manobra para a reconversão da sua economia, num quadro de dificuldades para o livre comércio a nível mundial. Permitiria, também, articular a influência dos EUA sobre outros processos regionais de integração rivais, designadamente fortalecendo a posição comercial dos EUA face ao Mercosul e à UE (através do estabelecimento de uma Área de Livre Comércio do Atlântico Norte), estabelecendo, também, um elemento de atracção para a constituição de uma Comunidade Transpacífica, através da APEC (Área de Cooperação Económica da Ásia-Pacífico) para o que, em primeiro lugar, teria de conquistar o Japão para uma cooperação mais estreita com o NAFTA.
De facto, os EUA, ao terem concretizado acordos de livre comércio com os restantes cinco Estados da América Central (Honduras, Nicarágua, El Salvador, Panamá e Costa Rica), haviam já colocado, sob sua estrita esfera de influência e domínio, esses países. Faltava, apenas, o México, assegurado com a extensão da área de livre comércio EUA-Canadá. E faltava, depois, a América do Sul que, primeiro Clinton, a seguir Bush pretenderiam agarrar através da extensão hemisférica do NAFTA.
Foi neste contexto que, em Setembro de 1990, Bush notificou o Congresso norte-americano no sentido de concluir um acordo de livre comércio com o México, o que veio a ser oficialmente proposto, pelos três parceiros, em Fevereiro de 1991. Depois da decisão favorável do Congresso norte-americano, as negociações trilaterais para o estabelecimento de um Acordo Norte-Americano de Livre Comércio teriam início em Junho desse ano, encontrando o NAFTA condições para entrar em vigor a 1 de Janeiro de 1994.
O Canadá, de facto, nada teve a opinar em contrário. Perante o facto consumado da decisão americana tomada, não teve outra opção senão a de partilhar, com o México, a área de livre comércio que possuía com os EUA desde 1989 – ainda que, especialmente do ponto de vista da complementaridade, pudessem desde logo ser avistadas vantagens para a economia canadiana.
Assim foi criado o NAFTA, como parte da estratégia comercial norte-americana, fortemente unilateral, discricionária e discriminatória – em choque frontal com a doutrina livre-cambista da OMC, que tem procurado actuar, sobretudo no sentido da resolução dos diferendos passar a fazer-se multilateralmente, no âmbito do Órgão da OMC para a Resolução de Diferendos, e não pela via bilateral – estratégia aquela duramente intensificada durante toda a década de 90, com a aplicação de sanções unilaterais como a Lei Helms-Burton, de 1996, contra Cuba.
Os países da América Latina, sobretudo o Brasil, reagiram fortemente ao anúncio da criação do NAFTA.
O Brasil tornou o objectivo do Mercosul (que havia sido criado em 1991, na base das relações em eixo argentino-brasileiras) mais ousado, ao procurar convertê-lo numa área dotada de iniciativa própria, mantendo a Argentina afastada dos EUA e, logo em 1993, lançou a proposta de criação de uma Área de Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA), como forma de contrabalançar o ainda gestante NAFTA, designadamente o efeito de atracção que este exercia já sobre muitos países da América Sul, como o Chile e a Venezuela e a própria Argentina (que é muito susceptível aos acenos dos EUA, já se tendo associado ao país por via da associação à NATO e propondo, frequentemente, que o Dólar se torne na moeda argentina e do Mercosul).
O NAFTA convertia-se, para muitos países sul-americanos, em verdadeiro “canto da sereia”, procurando o Brasil oferecer uma integração regional ampliada para criar, a estes países, alternativas às pressões externas que desejavam vê-los submetidos a planos liberais ortodoxos de ajuste – necessários para poderem manter relações privilegiadas com os EUA e aderir ao NAFTA.
Por outro lado, o Brasil estabeleceu, com os países sul-americanos e africanos, a Zona de Paz e Cooperação do Atlântico Sul (ZoPaCAS), numa estratégia de círculos concêntricos a partir do Mercosul e iniciou negociações com a UE (que viriam a culminar com a assinatura do Acordo-Quadro Inter-Regional de Cooperação UE-Mercosul, em Dezembro de 1995).
A estratégia brasileira criava atritos com os EUA que, vendo-se perto de perder a área de influência da América Latina, retomara, em Dezembro de 1994, a proposta de Bush de criar uma zona hemisférica de livre comércio que receberia o nome de ALCA.
A ALCA era necessária para os objectivos de longo prazo dos EUA como estratégia para controlar o Mercosul, impedindo a sua autonomia, bloqueando a sua associação com outros blocos e tornando irreversíveis os planos de ajuste implementados ao longo dos anos 90. Mas sem o apoio do país central da América do Sul, levando consigo todos os outros, a ALCA não poderia ser criada com êxito.
O Brasil conseguia, assim, fazer arquivar o projecto da ALCA e, ao mesmo tempo, evitar que os restantes países do sub-continente continuassem a ser atraídos pelo NAFTA.
Na verdade, a criação deste foi desde logo acompanhada por acontecimentos imprevistos, já que, no dia em que entrou em vigor, eclodiu o levante Zapatista no Sul do México; no final de 1994, em meio à crise política (com o assassinato do candidato oficial à Presidência da República do México), desencadeou-se a crise cambial e financeira, com o efeito tequilla a repercutir-se sobre toda a América Latina, reforçando a posição dos sectores políticos norte-americanos opostos ao NAFTA. Para completar o quadro, os republicanos venciam, em Novembro de 1994, as legislativas nos EUA, tornando mais difícil a aprovação do fast track (que permitiria aos EUA aumentar as relações comerciais com os países da América Latina e da Ásia).
Acontecimentos que, pode dizer-se, seriam agravados pela circunstância de, efectivamente, o NAFTA não ter trazido, para o México, as vantagens económicas que prometera. A promessa de que os bens mexicanos competiriam com êxito com os bens americanos não encontrou eco na realidade; apesar das exportações mexicanas para os EUA terem triplicado, apenas as empresas de maior dimensão do mercado mexicano viram concretizar-se essa possibilidade; a promessa de que o investimento estrangeiro fluiria para a economia mexicana, com reflexos positivos sobre os salários, foi substituída pela realidade de beneficiarem desses investimentos apenas os Estados mexicanos que fazem fronteira com os EUA; a promessa de que sólidos empregos na indústria seriam criados, com redução paralela dos impostos, veria apenas concretização em parte, com a criação de 500 000 novos postos de trabalho, não obstante a redução dos salários; a promessa de que o NAFTA traria estabilidade à economia mexicana também não se concretizou, com o Peso a cair e o país impedido de recorrer ao protecionismo; finalmente, a promessa de que o NAFTA proporcionaria o fortalecimento das relações EUA-México também saiu frustrada, pois apesar de manterem-se fortes as ligações comerciais, as relações entre os dois governos não se estreitaram.
Entretanto, voltando hoje a levantar-se os temas sensíveis das migrações e da cooperação energética – que Salinas e Bush haviam, em 1994, deixado de parte, na certeza de que, se tais temas fossem debatidos, nenhum acordo teria sido alcançado – acrescentados, desta vez, da eventual criação de uma política agrícola comum e de uma política comum para o desenvolvimento das infraestruturas, visando alcançar-se o que se tem designado por NAFTA PLUS – que pretende, todavia, manter o NAFTA na área económica e comercial, em lugar de fazê-lo evoluir para uma Comunidade Norte-Americana que implicaria uma maior integração económica e política –, os EUA continuam a manter-se esquivos em relação à exigência mexicana em ver resolvido o problema das migrações mexicanas para os EUA e, sobretudo, em ver resolvido o estatuto dos imigrantes ilegais.
Não se trata, obviamente, de um acto de caridade dos EUA face ao México, mas antes da necessidade de encontrar-se um equilíbrio entre a oferta e a procura de mão-de-obra nos dois mercados de trabalho para que, tanto o México, quanto os EUA, possam continuar a progredir. A não obtenção de um acordo desta natureza poderá colocar em perigo os EUA e a própria capacidade concorrencial do NAFTA. Assim como o comportamento dos EUA face ao parceiro mexicano. Sem uma política de coesão económica e social que promova a convergência real das economias dos três parceiros, com a ajuda norte-americana ao parceiro mais fraco a destinar-se apenas às regiões fronteiriças, de onde parte a maioria dos imigrantes ilegais, e sem investimentos concretos no futuro do México (educação e infraestruturas), o NAFTA poderá vir a pagar um preço elevado a médio ou longo prazo, até porque não assenta sobre relações em eixo unindo as duas potências regionais e, por isso, limitado a formas pouco aprofundadas de integração regional, apresenta uma vulnerabilidade que deveria ser compensada por uma visão estratégica de fortalecimento e busca de coesão interna do processo integracionista, não exclusivamente preocupada com o exterior.

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