O ACUMULADO HISTÓRICO DA DIPLOMACIA BRASILEIRA
Na evolução da política externa do Brasil, certos princípios e valores vêm sendo agregados à diplomacia. Esses princípios e valores tornaram-se inerentes à conduta da política externa brasileira e são de tal modo marcantes que, além de conferirem previsibilidade à acção externa do Brasil, moldam essa conduta, impondo-se à sucessão dos governos e, até mesmo, às alterações de regime. Contribuem, ainda, para fazer da política externa brasileira uma verdadeira política de Estado, conferindo-lhe racionalidade e continuidade – mais do que mudança.
Neste sentido, pode-se identificar o acumulado histórico da política externa brasileira referindo, em primeiro lugar, que o desenvolvimento económico, ou a busca deste, é a base da política externa brasileira – e foi-o especialmente de 1930 a 1989. Na verdade, o desenvolvimento económico é a preocupação central da tradicional visão latino-americana das Relações Internacionais. A preocupação central em torno da qual giram as abordagens internacionalistas latino-americanas é o subdesenvolvimento a que as suas sociedades se vêem sujeitas. É como se, na sociedade internacional, existissem dois esquemas de Relações Internacionais. Como assinala o Professor Doutor Amado Luiz Cervo, da Escola de Brasília, “…as políticas exteriores dos países do Sul – pelo menos é o caso do Brasil – centralizam suas preocupações em torno dos problemas do desenvolvimento. O mesmo não ocorre com os países avançados do Norte. É possível perceber dois esquemas de relações internacionais contemporâneas. Entre países avançados, as relações igualitárias deixam transparecer um caráter lúdico. Zelar pela paz ou preparar-se para a guerra, compor ou desfazer alianças, construir a potência e o prestígio, difundir ideologias e valores situam-se do lado do divertimento. Entre países desiguais, para aqueles que são atrasados, as relações internacionais deixam transparecer o caráter existencial. Delas dependem, em boa medida, os ritmos de desenvolvimento, as oportunidades de melhoria das condições sociais, o cotidiano. (…) Os nortistas continuam admitindo que as teorias do desenvolvimento, desde Keynes, integram a ciência econômica, não a ciência política. Como se a pobreza, a dominação e a dependência, a cooperação e a exploração não fizessem parte do mundo real das relações internacionais”[1].
Também a defesa da autodeterminação dos povos, da não-intervenção e da solução pacífica de conflitos surge como parte do acumulado histórico da política externa brasileira, assim como o jurisdicismo, no sentido em que os tratados internacionais são assimilados como factores de estabilização das relações internacionais. O multilateralismo normativo é um outro aspecto importante do acumulado histórico da actuação externa do Brasil, sendo que, neste sentido, o Brasil participou da tentativa de erigir uma Nova Ordem Económica Internacional ao lado do Terceiro Mundo nos anos 1970 e, hoje, procura que a globalização crie uma ordem internacional mais justa, transparente e igualitária.
O realismo, o pragmatismo e a acção externa não confrontacionista são igualmente características marcantes da política externa do Brasil, bem como a criação de parcerias estratégias, surgindo relevantes, em momento de crise internacional, as parcerias Brasil-Alemanha e Brasil-Japão – em função da depressão das relações Brasil-EUA – sem esquecer o relacionamento que o Brasil tem desenvolvido com os outros países emergentes, designadamente com a Rússia, a China e, até, a própria Índia. Vale lembrar que, relativamente aos vizinhos da América do Sul, o Brasil tem procurado sempre um trato de cordialidade oficial, que o aconselha a não ostentar a grandeza nacional e a superioridade económica de que desfruta em relação aos vizinhos.
Tendo agregado, mais recentemente, a preocupação com o narcotráfico, a luta contra o macroterrorismo e a protecção ambiental à sua política externa, o Brasil desenvolve, tradicionalmente, uma inserção internacional independente, o que pressupõe uma visão própria de mundo, a autonomia do processo decisório, a formulação própria da política externa e sua posterior execução – ainda que períodos de excepção a esta independência tenham igualmente existido.
Tendo por base este acumulado histórico – sendo de ressaltar a tese dos Três Ds de Araújo de Castro, Desenvolvimento, Descolonização e Desarmamento – a política externa brasileira vem evoluindo, desde a independência e, sobretudo, desde a implantação da República (1889) seguindo em geral estes vectores, mas oscilando, em períodos de excepção, no que se refere à independência na inserção internacional. Dito de outro modo, a característica essencial, o grande traço de continuidade da política externa brasileira é a independência com que esta é formulada e executada – uma independência, sobretudo, relativamente aos Estados Unidos. Todavia, nesse processo/linha de continuidade, tem havido períodos de excepção, hiatos, nos quais a política externa brasileira se alinhou às directrizes norte-americanas e deixou de lado a autonomia que a caracteriza de um modo geral.
Apenas durante a Primeira República (1912-1930) esse não seria o grande traço de continuidade da acção externa do Brasil. A linha condutora da política externa brasileira de então era o alinhamento face aos EUA e o que fugia a este comportamento era considerado marginal e excepcional.
De facto, na primeira metade do século XX, quando a sociedade brasileira estava ainda na sua infância evolutiva, marcada pelos parâmetros da agroexportação de Clodoaldo Bueno, a política externa do país teve como tendência predominante a inserção do Brasil no contexto hemisférico, tendo como eixo central o estreitamento das relações com os EUA, de acordo com a aliança não escrita concebida pelo Barão do Rio Branco, cuja gestão corresponde ao único hiato autonomista desse período.
Efectivamente, com Rio Branco, a política externa brasileira foi temporariamente transformada num instrumento de apoio ao desenvolvimento económico, utilizada como instrumento estratégico para alcançar a industrialização do Brasil, buscando-se uma relativa autonomia na dependência e uma barganha para a defesa dos interesses brasileiros. Após a gestão Rio Branco, o restante da República Velha retomaria o alinhamento face a Washington.
Quando Getúlio Vargas subiu ao poder, em 1930 (onde permaneceria até 1945), como reacção a esse conservadorismo de estruturas obsoletas, a política externa brasileira retomaria a lógica de Rio Branco e o Brasil transitaria, do modelo liberal-conservador, para o desenvolvimentista, cuja orientação sócio-político-económica assentaria numa busca incessante pelo desenvolvimento económico através do método da substituição de importações. Regendo-se internamente por este nacional desenvolvimentismo populista de esquerda, o Brasil de Vargas actuaria, externamente, de acordo com esse padrão de comportamento, numa postura que atingiria o apogeu na barganha nacionalista às vésperas da Segunda Guerra Mundial. Neste período, o Brasil vendeu a preço elevado a sua adesão a um conflito que não lhe interessava. O Brasil jogava com o Eixo e com os Aliados, negociando e apoiando aquele que, no momento, mais vantagens económicas lhe oferecesse, sem pejo em voltar-se de um para outro consoante essas vantagens. O Brasil e a América do Sul ganhavam rapidamente um poder de negociação como nunca haviam tido, sem que os EUA se apercebessem dessa relevância no contexto declarado de beligerância.
Apenas com as vitórias de Rommel no Norte d`África é que os Estados Unidos se aperceberam da importância da região, começando Roosevelt a temer uma invasão alemã às Américas, a partir do Nordeste brasileiro. Roosevelt oferece a Vargas, neste contexto, no célebre encontro de 1942, o financiamento integral da Siderurgia de Volta Redonda, nos arredores do Rio de Janeiro, como forma de comprar a adesão brasileira aos Aliados. Conseguiu e, Volta Redonda, a maior siderurgia da América Latina, seria construída em tempo recorde, começando a funcionar logo em 1946.
Vargas criara, assim, para o Brasil, uma política externa autónoma; uma política externa que, nacionalista e preocupada com o desenvolvimento económico, chamar-se-ia nacional desenvolvimentismo.
Todavia, o propósito de Getúlio teve uma duração limitada. Ele actuava ainda num momento dominado pelas velhas estruturas regionais de poder e, quando as contradições internas da sociedade brasileira se avolumaram, ele caiu e, junto, o seu nacional desenvolvimentismo. Em 1946, a reacção conservadora a Vargas colocou no poder Eurico Gaspar Dutra (1946-1951), por forma a terminar com o varguismo incómodo ao status quo da ordem interna brasileira e da ordem externa hemisférica. Dutra esperava que o Brasil viesse a ter uma relação privilegiada com os Estados Unidos por o terem apoiado na guerra. O novo presidente chegou mesmo a pensar que o Brasil poderia ser convidado a integrar a Organização do Atlântico Norte que era criada em 1949. Todavia, em função da localização a Sul do Brasil, ademais já integrado nas estruturas hemisféricas do pan-americanismo, no seio da Organização dos Estados Americanos (OEA) e militarmente protegido da subversão comunista pelo Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), o convite não se concretizou. O Brasil já se havia, por outro lado, colocado dos EUA na Ordem bipolar dos Pactos Militares, pelo que qualquer acção norte-americana visando esse objectivo era desnecessária. A decepção de Dutra não invalidou o alinhamento brasileiro aos EUA, voltando o Brasil, tal como na Primeira República, às formas mais ou menos passivas de submissão aos Estados Unidos.
O desenvolvimento económico do Brasil – que já havia estado presente na equidistância pragmática de 1935 a 1942 e no alinhamento do Brasil aos EUA em 1942, quando o país lucrou em reequipamento económico e militar – não deixou de dominar a política brasileira. Muito pelo contrário: o alinhamento incondicional de Dutra aos EUA visava, precisamente, uma relação especial com a superpotência ocidental, que deveria implicar um tratamento especial face às reivindicações brasileiras de auxílio económico para o desenvolvimento económico interno.
O método do alinhamento a Washington para o alcance desse fim não foi, todavia, o mais acertado perante as dinâmicas do Brasil de então e, nesse contexto, germinariam as sementes desenvolvimentistas de Vargas. Ou seja, o nacional desenvolvimentismo de Vargas, conquanto não tenha vingado na sua época, viria a ter muito mais importância no futuro do que se poderia supor, pois funcionaria como as raízes profundas das características de autonomia que a política externa brasileira voltaria a ter, assim que Dutra saísse do poder.
De facto, em 1951, houve uma reacção ao conservadorismo de Dutra, que levou Vargas novamente ao poder (1951-1954), com uma nova aplicação, interna e externa, do nacional desenvolvimentismo populista de esquerda de outros tempos. O desenvolvimento económico do país continuava a ser a prioridade, mas desta vez Vargas teria de adaptar-se à era bipolar.
O contexto interno e externo que Vargas encontrou era, de facto, bastante distinto do que o que existira entre 1930 e 1945.
Internamente, o incremento da industrialização e da consequente urbanização levaram à afirmação da burguesia e de uma classe operária nascente que, porém, impunha novas exigências ao poder político. O sistema político era obrigado a dar resposta à crescente participação popular, o que levou Vargas a retomar o desenvolvimentismo todavia abrindo a economia brasileira ao exterior, em busca de capitais, tecnologia e cooperação económica.
Externamente, e uma vez que Getúlio precisava desses capitais e, por conseguinte, da cooperação norte-americana, no contexto de Guerra Fria, em que os EUA, mais preocupados com a Europa, desligavam-se da América Latina, que sabiam de antemão estar do seu lado, a margem de manobra do Brasil foi drasticamente reduzida. Situação que se acentuou quando, em 1953, o republicano Eisenhower se tornou presidente dos Estados Unidos. Estando a Europa e o Japão ainda em processo de reconstrução e o Terceiro Mundo ainda muito embrionário, restava ao Brasil apenas a cooperação de origem norte-americana, à qual não tinham como fugir.
Esta contradição externa somava aos distúrbios pelos quais passava a sociedade brasileira, a braços com uma crescente polarização entre direita e esquerda, ao mesmo tempo que o desenvolvimentismo de Vargas era cada vez menos apoiado e gerava sucessivamente mais críticas. Esta situação conduziu Vargas ao suicídio – para não ter de renunciar – o que provocou uma imensa comoção nacional.
Em seu lugar, a reacção conservadora fez ascender ao poder uma figura manejável pelos EUA, Café Filho (1954-1955), visando pôr ordem ao caos populista esquerdizante do Brasil. Novamente, interna e externamente o Brasil voltou a alinhar-se com a potência norte-americana, promovendo uma total abertura económica ao capitalismo, assim como a afirmação das teses da Escola Superior de Guerra (ESG). A política externa brasileira vivia o primeiro hiato da linha de autonomia e independência na inserção internacional do país que tem vingado até hoje.
Figura apagada da História do Brasil, que permaneceria na Presidência nem um ano completo, Café Filho – dos períodos do país menos estudados – depressa motivaria uma forte reacção ao conservadorismo que tentou imprimir às dinâmicas do Brasil, com a eleição de Juscelino Kubitschek de Oliveira (1956-1961). O desenvolvimentismo ganhava novamente força, especialmente consubstanciado no Plano de Metas dos 50 anos em 5. Necessitando de capitais externos para levar adiante esse plano, em função da escassez de reservas do Brasil, Jk teria de associar esse desenvolvimentismo à entrada desses capitais estrangeiros no país, o que, se criou um desfasamento entre a política e a economia, depressa deu origem a uma síntese entre o desenvolvimentismo e a necessidade de capitais estrangeiros – leia-se norte-americanos – na formulação do que seria o desenvolvimentismo associado (associado aos capitais externos).
Assim, o governo de JK foi marcado por uma iniciativa política que procurava viabilizar a atracção de capitais públicos estrangeiros (leia-se norte-americanos) para o Brasil, de acordo com o desejado Plano de Metas a nível interno. Esse instrumento político foi a célebre Operação Pan-Americana (OPA), tendo-se a política externa de Kubitschek caracterizado pela defesa do pan-americanismo. Movida politicamente sobretudo por questões económicas, a política externa de JK não constituía exemplo isolado da adopção dessa postura pelo Brasil, voltando o desenvolvimentismo económico a ser o vector central das políticas interna e externa do Brasil, como sucedera com Rio Branco e, sobretudo, com Vargas e, até mesmo, com Café Filho e Dutra.
Os primeiros passos da política externa de JK foram no sentido de reafirmar a solidariedade política frente aos Estados Unidos e à causa ocidental, em busca de vantagens económicas. A cedência da ilha de Fernando de Noronha para a instalação de um posto norte-americano de observação de foguetes teleguiados, em fins de 1956, constitui prova cabal desse alinhamento[2].
Foi assim que, ajustando necessidades económicas internas e externas, o governo JK estabeleceu a agenda diplomática do Brasil em torno, por um lado, da negociação de acordos regionais e/ou internacionais que estabilizassem as cotações internacionais do café e, por outro, das reivindicações de ampliação e flexibilização dos empréstimos fornecidos sobretudo pelo Banco Mundial[3], sendo que, a partir de 1958, a agenda diplomática brasileira seria substancialmente ampliada, revelando-se fundamental na defesa do panamericanismo.
A conjuntura internacional evoluía rapidamente. A partir de 1955, com o processo de desestalinização e a subida ao poder de Kruschev na União Soviética e, depois, com o início da coexistência pacífica em 1956-1957, a política externa soviética sofreria alterações significativas que se repercutiriam também sobre a América Latina. Esta atitude criou, nos círculos políticos norte-americanos, o receio de uma possível penetração económica soviética na América Latina que fosse, de alguma forma, favorável à região e a fizesse pender para o lado soviético da Balança de Poderes.
Evoluía, por outro lado, a própria conjuntura política e económica da América Latina. De uma parte, o processo de redemocratização que, durante os anos 1955 e 1958, ocorrera em diversos países latino-americanos (Argentina, Peru, Venezuela e Colômbia) desgastou, junto da opinião pública e dos próprios governos latino-americanos, a imagem da Administração Eisenhower (e dos EUA em geral), que apoiara politicamente os governos ditatoriais de Rojas Pinilla na Colômbia, de Pérez Jimenez na Venezuela e de Manuel Odria no Peru. De outra parte, a conjuntura económica era amplamente desfavorável para a América Latina. A deterioração das relações entre os EUA e a América Latina criava assim diversos receios aos EUA, abrindo caminho ao surgimento de propostas que preconizavam uma ampla revisão dessas relações. Foi neste contexto que JK lançou a Operação Pan-Americana (OPA), procurando mobilizar os demais países latino-americanos para pressionarem o presidente Eisenhower a adoptar uma atitude de maior cooperação com o desenvolvimento da região, com base no argumento de que o estado de subdesenvolvimento poderia aproximar a América Latina dos países comunistas.
Ao mesmo tempo que motivava, da parte dos EUA, a Aliança Para o Progresso – uma amplo projecto norte-americano que visava melhor enquadrar a América Latina na política externa norte-americana, ainda que de resultados minguados – a OPA produzia, internamente, o fortalecimento do grupo nacionalista desenvolvimentista adepto do desenvolvimento económico e da inserção internacional independente dos EUA.
É no contexto da OPA e da radicalização esquerdista do Brasil que ascende ao poder Jânio Quadros (1961), que irá levar a política externa autónoma aos extremos, com a recuperação da barganha nacionalista dos anos 1950, desenvolvendo a sua Política Externa Independente, que o governo seguinte, de João Goulart (1961-1964) haveria de extremar ainda mais.
De facto, em matéria de relações internacionais, o governo Jânio Quadros procurou, desde o início, imprimir uma política externa independente face aos Estados Unidos; política esta que se materializou no reatamento de relações diplomáticas com a União Soviética, na intensificação dos laços comerciais com os países socialistas, na recusa à política de isolamento de Cuba do sistema interamericano e na adopção de uma política anti-colonialista e de afirmação do princípio da não intervenção.
Segundo Pedro Sampaio Malan[4], a análise da política externa brasileira de 1961 a 1964, quando se delineou a Política Externa Independente, abarca três elementos distintos mas integrados. Em primeiro lugar, há a retoma do ideário da Operação Pan-Americana com uma “noção mais clara das possibilidades e responsabilidades do Brasil, após o surto desenvolvimentista-associado da segunda metade dos anos 50”[5]. Em segundo lugar, a política externa independente enquadrou perfeitamente o nacionalismo que vinha funcionando como ideologia dominante do Estado, ante o esforço da industrialização brasileira, apesar deste processo ter sido feito com recurso amplo ao capital estrangeiro. A população apoiava a política externa independente face aos EUA, o que tanto Quadros como Goulart perceberam, daí retirando vantagens ao nível da política interna, especialmente em fase de grandes dificuldades económicas. Em terceiro lugar, tanto a revolução cubana quanto o agravamento da tensão Leste-Oeste e, ainda, o processo de descolonização permitiram aos governos Quadros e Goulart explorar a possibilidade do Brasil afirmar, externamente, a sua autonomia face à hegemonia norte-americana sobre a América Latina. Para tanto, seria necessário que o Brasil ultrapassasse o âmbito do subsistema interamericano e alcançasse uma afirmação mais ampla no contexto internacional, o que, nas condições da década de 1950, nem Vargas nem Kubitschek haviam conseguido fazer.
Neste sentido, a posição afirmativa e independente do Brasil, no período que vai de 1961 a Março de 1964, manifestou-se em quatro áreas específicas:
Cuba e as questões da autodeterminação e não-intervenção;
Relações com os países socialistas, especialmente com a URSS;
Anticolonialismo na África;
Apoio à inclusão, na agenda da Assembleia Geral das Nações Unidas, do ingresso da China na Organização.
Foi em torno destas questões que se estruturou a oposição interna à política externa independente, que desejava o retorno do Brasil à órbita do sistema regional interamericano e à submissão face aos EUA. Situação que gerou uma polarização extrema da sociedade brasileira em direita e esquerda e que levaria o presidente Quadros a renunciar visando obter do Congresso poderes reforçados. Foi na realidade um golpe palaciano, já que o objectivo não era deixar a Presidência, mas reforçar os seus poderes, na convicção de o Congresso jamais permitiria a subida ao poder do vice João Goulart, de esquerda, num momento em que as forças da direita ganhavam terreno em torno do alinhamento económico e externo aos EUA. Enganou-se, mas o receio da ascensão do esquerdista Goulart levou à experiência parlamentarista no Brasil (1961-1963): Goulart assumia como presidente, mas com poderes reduzidos, tendo de partilhá-los com um gabinete ministerial presidido pelo primeiro-ministro Tancredo Neves.
Goulart é empossado presidente da República e, em termos de política externa, leva o Brasil pelos caminhos da total autonomia face aos EUA, levando ao auge a Política Externa Independente de Quadros.
Mas a Política Externa Independente levada aos extremos teria consequências imprevisíveis sobre a evolução interna do Brasil.
As contradições e dificuldades económicas do Brasil adensavam-se com a postura dos Estados Unidos relativamente ao reforço da Política Externa Independente com João Goulart.
De cato, não obstante os alcances da Política Externa Independente com Quadros e, particularmente, com Goulart, ao transformar a política externa brasileira em multilateral, relacionando-se o país com a Europa Comunitária, o Japão, o Terceiro Mundo e os países socialistas, a verdade é que os Estados Unidos, ainda que com o seu poderio internacional abalado, continuavam a ser dominantes e a ter uma forte capacidade de reacção à barganha nacionalista e à Política Externa Independente, o que determinaria a interrupção desta.
Esta interrupção está associada à crise do regime populista no Brasil. Desde a segunda metade do seu mandato que Goulart não conseguia controlar a situação interna e via-se empurrado, pelos sectores populares, para a radicalização que viria adensar as contradições do regime. Com a economia quase paralisada, o agravamento dos conflitos sociais e políticos deixou o governo sem alternativas, ameaçando ainda as bases do capitalismo do populismo brasileiro[6]. Assim, no célebre Discurso dos Três Ds, o embaixador Araújo Castro procurou salvar a Política Externa Independente despolitizando-a e concentrando-a em temas económicos, por forma a ultrapassar a inviabilização do neutralismo de Quadros e a inacção de Goulart ante as pressões norte-americanas. A política externa brasileira sofreu um acentuado refluxo. Mesmo assim, a Política Externa Independente continuava a desagradar aos conservadores, razão pela qual viria a estar no centro da reacção conservadora que culminaria com o golpe de 31 de Março de 1964.
De facto, com Goulart no poder, os EUA começaram a considerar o Brasil um caso perdido e, assim, começaram a articular o golpe que colocaria os militares no poder.
Castelo Branco, Costa e Silva e Emílio Garrastazu Médici procuraram conter o movimento popular e as tendências esquerdistas, alinhando Castelo Branco e Médici com os EUA, embora Costa e Silva viesse resgatar a ideia do projecto nacional, opondo-se aos Estados Unidos.
À frente das decisões das Forças Armadas, Castelo Branco envolveu o regime de contra-revolução permanente em que mergulhara o Brasil na doutrina segundo a qual o conflito político e ideológico entre os Estados Unidos e a União Soviética deslocara-se para o interior de cada país, assumindo o carácter subversivo da luta revolucionária. Neste contexto, considerava que a preservação da independência nacional exigia um certo grau de interdependência, que o levou a orientar a política externa brasileira pelas directrizes norte-americanas, com base no conceito, que ele próprio elaborara, das fronteiras ideológicas, que justificava o novo comportamento internacional do Brasil: abandono do terceiro-mundismo, do multilateralismo e da Política Externa Independente, compondo uma aliança automática com os EUA – no que constitui um novo hiato na tradição autonomista da política externa brasileira.
A sucessão de Castelo Branco pelo marechal Arthur da Costa e Silva teve por efeito resgatar o interesse nacional como fundamento essencial de uma política externa verdadeiramente soberana, já que o alívio da tensão Leste-Oeste parecia guiar a sociedade internacional cada vez mais em direcção ao policentrismo.
Assim, as relações internacionais do Brasil, durante o mandato de Costa e Silva, representaram uma profunda ruptura com o período anterior, opondo-se frontalmente aos desígnios norte-americanos. A política externa que o chanceler de Costa e Silva, Magalhães Pinto, prosseguia, virava-se para o desenvolvimento e a autonomia, à semelhança da Política Externa Independente, com a diferença de não mencionar a reforma social. Era a chamada diplomacia da prosperidade[7], que afirmava que a distensão Leste-Oeste fazia emergir o antagonismo Norte-Sul, pelo que o Brasil deveria definir-se, não como nação do Ocidente, mas como nação do Terceiro-Mundo. Por conseguinte, o Brasil deveria aliar-se aos restantes países do Terceiro-Mundo para com estes compor uma aliança que lutasse pela alteração das regras injustas do sistema internacional.
De acordo com as novas orientações da política externa, o Brasil procurou afastar-se do pan-americanismo em busca de um novo latino-americanismo. Neste sentido, propôs a cooperação e a integração regionais, assim como a cooperação nuclear, entre os países do Terceiro-Mundo; o relacionamento das nações ibero-americanas por meio da Comissão Especial de Coordenação Latino-Americana (e não da OEA); o aprofundamento das relações comerciais com os países socialistas; e a cooperação entre os países latino-americanos.
Com Médici a questão alterou-se. Em termos de política externa, o governo Médici era desenvolvimentista e pró-americano, desenvolvendo uma diplomacia que, na sequência do Brasil potência, buscava o interesse nacional. Esta diplomacia do interesse nacional buscava restabelecer, com os Estados Unidos, uma relação de confiança, especialmente nas áreas onde houvera, no período anterior, maiores divergências. Abandonando a solidariedade terceiro-mundista e o discurso politizado – substituído pelo pragmatismo – a nova estratégia internacional do Brasil abandonava o multilateralismo em benefício do bilateralismo, ambicionando colocar o Brasil no grupo dos países do Primeiro Mundo, e alinhava-se aos EUA mesmo não se submetendo a eles. Assim, o Brasil seguiu recusando-se a assinar o Tratado de Não Proliferação Nuclear e avançou com o desenvolvimento da própria indústria armamentista e estabeleceu laços com o Japão e a Europa Comunitária com vista à atracção de investimentos e tecnologia.
Neste contexto, é pertinente a interrogação sobre a conciliação das boas relações com os EUA e o desenvolvimento de um projecto nacionalista-industrializante de grande potência[8] – que para os governos anteriores havia sido impossível. De facto, num momento em que a Doutrina Nixon preconizava um afastamento dos EUA relativamente às querelas mundiais, através da transferência de tarefas para as potências regionais aliadas, e em que no Chile e no Peru estavam no poder governos de esquerda e em que na Argentina e no Uruguai as contradições adensavam-se, beirando a guerra civil, o Brasil surgia, para os EUA, como um aliado de peso para estabilizar a região, pelo que os EUA toleravam a não submissão do Brasil à sua orientação. Sendo que a situação da América do Sul permitiu o crescimento do Brasil face aos vizinhos.
Face a esta hegemonia regional brasileira e a necessidade que Washington tinha do Brasil para evitar a subversão comunista na América do Sul, num momento em que a preocupação primeira de Nixon era acabar com a questão do Vietname, existia, de facto, um espaço internacional para que o Brasil desenvolvesse o seu projecto de potência mundial sem a oposição norte-americana. A diplomacia do interesse nacional preocupava-se em aproveitar as brechas existentes no sistema internacional, daí que tenha apostado no bilateralismo em detrimento do multilateralismo, voltando-se para os países mais fracos.
Quando Geisel assume a Presidência, em 1974, procura retomar uma maior margem de manobra para o Brasil, através do Pragmatismo Responsável e Ecuménico, que determinava o estabelecimento de relações de forma variada e com quem fosse mais vantajoso.
Em função do relacionamento que o Brasil assim desenvolvia com os países do Terceiro-Mundo e dada a insatisfação geral relativamente aos laços com os EUA, a diplomacia de Geisel incrementou a cooperação comercial, a política de atracção de investimentos, a transferência de tecnologia e a implantação de projectos agrícolas e industriais com a Europa Comunitária e com o Japão. Relativamente à América Latina, o Brasil foi gradativamente abandonando o discurso de grande potência para estreitar relações com os vizinhos, particularmente com a Argentina, com a qual iniciou conversações para solucionar o problema do aproveitamento hidroeléctrico da Bacia do Prata.
A margem de manobra autonomista que Geisel imprimiu à política externa independente, através do Pragmatismo responsável, seria depois amplamente visível com Figueiredo 81979-1985), José Sarney (1985-1990), segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso (1999-2002) e com Lula (2003-2007-…). Assim, os governos de Fernando Collor (1990-1992), Itamar Franco (1992-1994) e o primeiro mandato de Fernando Henrique (1995-1999) seriam novamente hiatos à tradição autonomista da política externa brasileira vigente desde 1930, alinhando-se incondicionalmente aos EUA.
De facto, o último governo militar (assim como o primeiro civil) foi marcado pela continuidade da política externa brasileira no quadro interno e externo cada vez mais adverso. Quadro no qual os EUA adquiriam, com Reagen, um novo protagonismo internacional, com a sua Iniciativa de Defesa Estratégica (IDE) a produzir uma nova Guerra Fria e a acirrar a bipolaridade, enfraquecendo a URSS e promovendo a subjugação política do Terceiro Mundo. Também as Nações Unidas enfraqueciam como instrumento de apoio aos países periféricos, enquanto Reagen terminava com o diálogo N-S e punha fim à proposta mexicana de criar uma Nova Ordem Económica Internacional, desarticulando, por conseguinte, a actuação coordenada do Terceiro Mundo. Simultaneamente, o neoliberalismo irrompia nos principais países do centro, eliminando qualquer esperança de sobrevivência das “experiências capitalistas nacional-desenvolvimentistas do Sul”[9]. O modelo desenvolvimentista esgotava-se.
Em ternos de relações internacionais o Brasil logrou obter grandes avanços, especialmente em matéria de respeito por parte da sociedade internacional. A política externa autodenominou-se universalismo porque se esforçou por manter a autonomia do Brasil num cenário internacional cada vez mais adverso, através de uma diplomacia que se espraiava em relações com os quatro cantos do mundo, na mesma lógica do Pragmatismo Responsável. Assumindo o Brasil como um país do Terceiro Mundo, a diplomacia de Saraiva manteve a actuação em convergência com os Não-Alinhados – embora não fosse membro pleno deste grupo – denunciando as estruturas políticas e internacionais da sociedade internacional capitalista.
Neste sentido, o Brasil continuou actuando nos fora internacionais segundo a lógica do Movimento dos Países Não-Alinhados, tendo apoiado a Argentina na Guerra das Malvinas/Falklands e mantido a presença em África, nos países do Médio Oriente e até mesmo na China.
Finalizando a abertura política iniciada por Geisel, Figueiredo concluiu com êxito a transição do regime militar para a democracia. Ainda que as eleições não tenham sido livres, houve uma verdadeira campanha eleitoral, com possibilidade de manifestação por parte da população, que depositou todas as esperanças no presidente eleito, Tancredo Neves, ainda que este fosse uma personalidade oriunda do regime – apenas era parte da oposição moderada ao regime.
Tendo sido eleito, não chegaria a tomar posse, pois adoeceria entretanto, vindo a falecer em Abril, já depois de empossado o vice José Sarney, que assumiu como programa de governo, a plataforma eleitoral de Tancredo – a Nova República.
A política externa da Nova República apresentou uma evolução muito particular. Rompeu com o pragmatismo responsável e com o universalismo, argumentando que o Brasil era um país ocidental, pelo que deveria maximizar as suas potencialidades individuais para chegar ao Primeiro Mundo. Deveria, assim, entrar em estreita cooperação com os Estados Unidos. Assim, afastou-se do Terceiro Mundo, desligando-se das reivindicações deste.
Tendo em conta a situação internacional, na qual os EUA reafirmavam a sua liderança, o socialismo entrava em período de reforma, com a ascensão de Mikhail Gorbatchov na União Soviética – o que sucedeu praticamente ao mesmo tempo em que José Sarney assumiu a Presidência do Brasil – e o Terceiro Mundo enfrentava graves dificuldades – em virtude da Reunião do G 7 em Cancun ter posto um ponto final no diálogo Norte-Sul, o Brasil decidiu aproximar-se dos Estados Unidos como forma de alcançar o desígnio de vir a pertencer ao Primeiro Mundo.
O Brasil iniciava, desta forma, a maximização das suas possibilidades de actuação internacional, em primeiro lugar através da valorização da América do Sul, com vista a estreitar os laços de cooperação e integração com a Argentina, que vinham sendo costurados há algum tempo. O entendimento entre os presidentes Sarney e Raul Alfonsín foi decisivo para a concretização deste objectivo, tendo ambos aproveitado a conjuntura adversa do ponto de vista económico e diplomático. A crise da dívida, fazendo os países latino-americanos ficarem vulneráveis às pressões do FMI e do Banco Mundial, a Guerra das Malvinas/Falklands e o conflito centro-americano – que permitia a Reagen trazer a Guerra Fria para a América Latina – motivou a aproximação entre o Brasil e a Argentina, em virtude de ter fomentado a solidariedade bilateral para fazer frente às novas pressões. O retorno da democracia em ambos os países voltava, por seu lado, a aproximar os regimes brasileiro e argentino
Floresciam as condições propícias à retoma das negociações para a integração económica entre os governos argentino e brasileiro, num momento em que os problemas em torno das hidroeléctricas que se construíam na região eram sanados (pelo Tratado de 1979), em que a corrida nuclear entre os Dois chegava ao fim (com o Tratado de 1980) e em que o processo de abertura económica era iniciado em ambos os países[10].
Neste ambiente, os dirigentes brasileiros e argentinos tomaram a firme decisão política de enfrentar, em conjunto, as dificuldades da conjuntura económica da década de oitenta, assinando, em 1988, o Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, pelo qual os dois países se comprometiam a criar um espaço económico comum através da supressão gradual, por um período de dez anos, das barreiras pautais e não pautais à circulação livre de bens e serviços[11].
As relações entre o Brasil e os EUA sairiam bastante prejudicadas desta aproximação argentino-brasileira, tendo-se por isso o Brasil voltado para outras regiões, tentando preservar a diversificação dos eixos diplomáticos e demonstrar autonomia em relação aos EUA.
O período de governação de Fernando Collor foi particularmente rico em matéria de acontecimentos internacionais. Assim, em 1990, Margaret Thatcher renunciou na Inglaterra, concluindo, no país, mais de uma década de hegemonia conservadora. No final do ano, o Iraque invadiu o Kuwait, tendo em 1991, após a rejeição do presidente iraquiano do ultimatum da ONU para retirar as suas tropas do Kuwait, tido início, a 16 de Fevereiro, a Guerra do Golfo, que terminaria escassos onze dias depois. Ainda em Fevereiro, o Pacto de Varsóvia era extinto, em Maio a Croácia tornava-se independente, a cidade de Berlim era estabelecida como capital da Alemanha reunificada e o início da guerra civil da Jugoslávia fechava o semestre. Esse ano marcou, ainda, a dissolução da URSS, enquanto as Comunidades Europeias reconheciam a independência da Croácia e da Eslovénia, terminava a guerra civil em El Salvador e o Peru passava por um golpe de Estado liderado por Alberto Fujimori. Em Maio tinha início, no Rio de Janeiro, a ECO-92, reunião ecológica que reuniu 178 países, enquanto em Julho começavam os Jogos Olímpicos de Barcelona e, em Agosto, uma multidão, com Nelson Mandela à frente, protestava em Pretória contra a segregação racial.
Neste contexto internacional, o Brasil afastou-se da sua anterior política externa multilateral e universal, voltando a alinhar-se aos EUA e a desenvolver uma política quase exclusivamente voltada para as Américas e submissa às proposições do FMI segundo o Consenso de Washington.
Conjunto de princípios – convergentes com o receituário do FMI, do Banco Mundial e do BIRD – propostos pelos Estados Unidos, o Consenso de Washington deveria ser aplicado por todos quanto desejassem receber ajuda económica e financeira dos EUA e das instituições financeiras internacionais.
Aderindo a esse conjunto de princípios, a diplomacia de Collor substituiu o consenso em torno do desenvolvimento pelo Consenso de Washington[12]. O objectivo formal da nova orientação externa era “obter para o Brasil o acesso a novas tecnologias. Nesse sentido, a abertura comercial se daria de forma unilateral e sem um mínimo de reciprocidade de parceiros (e concorrentes) externos”[13].
No começo, o Brasil ainda tentou agir com alguma autonomia, especialmente por causa dos compromissos assumidos com a base política que levara Collor à Presidência. A ideia era desenvolver, internamente, uma política económica que detivesse a inflação, para que, no plano externo, o país conseguisse recuperar alguma da imagem perdida junto dos credores internacionais. Mas como os Planos Collor e Collor II não surtiram os efeitos esperados e a comunidade financeira internacional não passou a olhar o Brasil conforme o presidente idealizara, então ele optou por acomodar-se às regras impostas pelos Norte-Americanos, esperando, então sim, alcançar o objectivo de integrar o Brasil na sociedade internacional junto do Primeiro Mundo. Collor desmontou o projecto nuclear brasileiro, assim como a indústria da informática, abandonou antigas parcerias, anulando as iniciativas tendentes ao Brasil potência, apostando antes nos grandes temas do meio ambiente, da liberdade, da democracia, do respeito pelos direitos humanos, do desenvolvimento sustentável, da justiça e da paz, conjugados com a Agenda para a Paz que implicava o desarmamento e a obediência aos novos regimes internacionais. A política externa brasileira perdia grande parte do acumulado histórico que ela mesma vinha construindo de modo coerente havia décadas. O próprio relacionamento com a Argentina viria a ser transformado, especialmente pela actuação da equipa económica de Zélia Cardoso de Mello. A integração que Sarney e Alfonsín vinham costurando a dois passava a incluir também o Uruguai e o Paraguai, países que aplicavam direitos aduaneiros muito reduzidos, com o objectivo de reduzir os praticados no Brasil e na Argentina. Do carácter autonomista e desenvolvimentista que a integração no Cone Sul apresentava na década de 1980, evoluía-se para um viés comercial-neoliberal.
Nem toda a diplomacia brasileira alinhou nesta lógica, o que levou Collor a retirar-lhe muitas das suas atribuições. O Itamaraty não teve, na realidade, uma participação activa na política externa de Collor. O governo actuava de modo independente. Mas quando este se começou a afundar em escândalos sucessivos, então Collor procurou resgatar a sua respeitabilidade também dentro do Itamaraty, chamando Celso Lafer para ministro em Abril de 1992. A política externa brasileira centrada naqueles grandes temas, mundialmente consensuais, seria então definida na 47ª Assembleia Geral das Nações Unidas em Setembro de 1992, com Lafer a alinhar na política externa previamente traçada pelo governo, ao mesmo tempo que o Brasil passou a reivindicar a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas.
Com os escândalos a conduzir ao processo de impeachment de Collor, assumiu Itamar Franco, então vice-presidente.
A política externa brasileira visava a integração do Brasil no sistema internacional, de forma democrática e condizente com os valores da sociedade brasileira e com o processo de reestruturação interna por que esta vinha passando desde a tomada de posse de Itamar.
Neste sentido, o Brasil seguiu defendendo a democracia, a justiça social, os direitos humanos, as liberdades individuais, a justiça social, o desenvolvimento, a autodeterminação dos povos, o princípio da não-intervenção em assuntos internos e a solução pacífica e negociada de conflitos[14]. Mas fazia-o tendo por base a ênfase na ideia de projecto nacional, que a política externa brasileira recuperava. O objectivo era revalorizar a presença do Brasil na sociedade internacional, tanto através dos fora multilaterais, quanto da integração regional – o que havia sido amplamente reduzido com Collor.
Assim, em termos multilaterais, e uma vez que o espaço de manobra existente nos anos 1970 e 1980 era agora reduzido, a estratégia do Brasil passou a ser participar nas organizações internacionais e, no seio destas, construir alianças visando alterar em seu favor o rumo da política internacional.
Desde logo, fez-se eleger, por dois anos, como membro não permanente do Conselho de Segurança das Nações Unidas[15], assinou a Convenção sobre Armas Químicas e a Convenção para a Proibição de Armas Biológicas. Em termos multilaterais, o Brasil propôs uma Agenda de Desenvolvimento ligada a uma Agenda da Paz, revitalizando diversos relacionamentos que Collor havia deixado esfriar e participando activamente nos grandes fora internacionais, designadamente as Nações Unidas e a Organização Mundial de Comércio (OMC). No plano regional, a integração sul-americana e, particularmente, do Cone Sul, foi a área privilegiada, tendo o Brasil chegado a propor a criação da Área de Livre Comércio Sul-Americana (ALCSA), em 1993. O Mercosul ganhou, também, a dimensão estratégica que, até então, não possuía
Estas iniciativas que surgiam como clara resposta à implantação do Acordo de Livre Comércio da América do Norte (NAFTA), que deveria iniciar funções a de Janeiro de 1994, e começava a funcionar como verdadeiro canto da sereia para os países da América do Sul, especialmente a Argentina e o Chile. Na verdade, Clinton prometia, aos países que aceitassem o receituário do Consenso de Washington, a integração no NAFTA e, por meio desta, o acesso ao mercado norte-americano, como base para uma futura integração hemisférica. Ademais, decorreria em Miami, em Dezembro de 1994, a Cimeira Ibero-Americana, reunindo as trinat e quatro repúblicas americanas com excepção de Cuba, para lançar-se, oficialmente, a Área de Livre Comércio das Américas (ALCA), que previa a eliminação das barreiras ao comércio e aos investimentos a partir de 1 de Janeiro de 2005.
O Brasil reagiu a este planos. Manter a Argentina no Mercosul e comprometer o Chile com negociações para se tornar membro associado eram dois aspectos fundamentais.
Assim, a diplomacia brasileira assinou, com o Chile, acordos de cooperação científica, técnica e tecnológica, criando ainda o Conselho Bilateral de Economia e Comércio e uma comissão mista para estudar a ligação interocêanica. Em outro sentido, a diplomacia brasileira procurou, junto da Colômbia, da Venezuela, da Guiana e do Suriname, estabelecer negociações bilaterais nas áreas agrícola, meio ambiental transportadora e de repressão ao narcotráfico e controlo da região amazónica. Com o Equador e o Peru, para além da questão amazónica, procurou também desenvolver negociações para o estabelecimento de uma via interoceânica. Com a Bolívia, procurou aproximar-se a chamá-la para membro associado do Mercosul, de modo a facilitar, não só o fornecimento de gás ao Brasil, como ainda a adesão de outros Estados da Comunidade Andina ao Mercsoul. Na América central, o Brasil defendeu o reexame da situação de Cuba na OEA, rejeitando também a militarização da América Latina. O Brasil tentou ainda uma solução pacífica para o conflito inerno no Haiti, evitando uma intervenção externa como pretendiam os EUA. Afinal, “abrir mão do princípio da não-intervenção seria permitir futuramente a legitimidade de ações como o Plano Colômbia”[16].
Relativamente à América do Norte, a política externa de Itamar preocupou-se com o NAFTA, mas também com o relacionamento bilateral com os EUA, conseguindo, no âmbito do Uruguai Round que não se aplicassem sanções norte-americanas ao comércio brasileiro[17]. Foram ainda estabelecidos diversos acordos militares entre o Brasil e os Estados Unidos.
Em termos mais específicos, o Brasil procurou estreitar os laços com os países de Língua oficial Portuguesa, no seio da Comunidade dos Países de Língua Oficial Portuguesa (CPLP), enquanto a União Europeia se afirmava como o maior parceiro económico do Brasil (realizando 26% das trocas comerciais[18]), o que incomodava os EUA.
Os acontecimentos que se sucederam às Revoluções Europeias, associados ao processo de globalização e expansão do capitalismo “despojaram muitos grupos nacionais de decisão de «critérios orientadores» para a formulação da política exterior”[19], levando Fernando Henrique Cardoso (FHC), então novo presidente, a adoptar o pensamento único que Collor introduzira no Brasil.
Neste sentido, a política externa de FHC, tal como a de Collor, em maior escala, vieram romper com a continuidade da política externa brasileira que se vinha manifestando no período da Política Externa Independente e do Pragmatismo Responsável, tendo FHC, habilmente, tenha esvaziado o Itamaraty das suas funções[20], em razão do MRE continuar a ser um reduto de resistência do projecto nacional desenvolvimentista contrário ao projecto neoliberal de abertura económica. A política externa de Fernando Henrique Cardoso contribuiu para a expansão do universalismo da política externa brasileira, através de uma diplomacia pessoal que se centrou em torno de quatro vectores essenciais, a saber o multilateralismo, o regionalismo, os Estados Unidos e a União Europeia[21].
Com Lula, o Brasil passaria a ter uma política externa ainda mais activa e assertiva, optando desde logo por uma linha de defesa activa dos interesses e da soberania nacionais, o que implicou começar imediatamente a trabalhar por uma ordem internacional mais justa e equitativa.
De facto, a política externa brasileira tem tentado conformar a ordem internacional à filosofia política de equalizar os benefícios, nas relações internacionais, entre os países ricos e os emergentes ou, por outras palavras, obter a reciprocidade nas relações internacionais, na tentativa de ultrapassar aquilo que Fernando Henrique Cardoso, quando se tornou céptico quanto à sociedade internacional conformada ao neoliberalismo, chamou de globalização assimétrica. Apostado numa inserção internacional logística, que, mantendo a abertura económica, reintroduz a intervenção estatal sempre que necessária, associando o liberalismo ao desenvolvimentismo, fundindo a doutrina clássica do capitalismo com o estruturalismo latino-americano, o Brasil procura, neste sentido, recuperar a autonomia decisória sem deixar de actuar no sistema internacional vigente, nele procurando superar as assimetrias entre países desenvolvidos e emergentes[22]. Além disso, a política externa brasileira, mantendo a tendência da diversificação de parceiros, segue tentando contrapor-se à acção externa dos EUA.
A diplomacia de Lula tem procurado contribuir para o reforço do multilateralismo, actuando em negociações comerciais que se desenrolam em três sectores do multilateralismo: no seio da OMC, no âmbito da edificação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e no quadro do estabelecimento de uma zona de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Tem contribuído, também, para o reforço do multilateralismo em outras áreas da esfera política e geopolítica, designadamente exigindo uma voz mais audível no seio do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, estando disposto a pagar uma quota mais alta ao FMI para poder ampliar o seu poder de decisão no seio desta instituição internacional; a reforma das Nações Unidas e a candidatura brasileira a um assento permanente no Conselho de Segurança, assim como as diligências mais recentes para entrar para a Organização dos Países Produtores e Exportadores de Petróleo (OPEP), sendo de considerar, ainda, a participação do Brasil na liderança da Força de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (com 1 200 homens).
A actual política externa brasileira procura igualmente dar ênfase aos temas sociais, em particular à luta contra a fome e a pobreza no âmbito global.
Tem sido, contudo, difícil obter a reciprocidade real entre países capitalistas e emergentes, o que tem levado o Brasil a voltar-se, cada vez mais, para outros espaços de actuação.Desde logo, o Brasil volta-se para a participação activa no âmbito do multilateralismo regional expresso no sistema interamericano institucionalmente suportado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e pelo Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), ainda que este vector hemisférico ocupe uma importância secundária na actual política externa brasileira que, em termos regionais, prefere valorizar o fortalecimento da integração sul-americana, contexto no qual ganham relevo as relações em eixo[23] com a Argentina e, ainda, o Chile, a Bolívia e a Venezuela. De igual modo, a política externa brasileira mantém relações crescentemente significativas com a África e o Médio Oriente, tentando ainda manter o trato cordial com os EUA. O Brasil tem também estruturado pontos de contacto e ligações com a Índia, a China e a África do Sul, relacionando-se ainda com a Rússia.
Acima de tudo, a dificuldade em obter a reciprocidade nas relações internacionais tem justificado a aposta brasileira na aproximação aos países emergentes consubstanciada nas coligações anti-hegemónicas que têm nascido sob sua liderança, desde a reunião de Cancun, em 2003, no âmbito da Ronda de Doha da OMC, na qual o Brasil tem reivindicado a queda das barreiras alfandegárias e dos subsídios agrícola.
Assim, ressalta, desde logo, o G20, grupo de países composto pelos de maior peso da América do Sul, da África e da Ásia, liderado pelo Brasil. Igualmente liderado pela diplomacia brasileira surge, também desde 2003, a articulação com a Índia e a África do Sul no seio G3-Ibas; e a articulação com o Japão, a Alemanha e a Índia no âmbito do G4; enquanto a Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA) foi instituída em 2005, prelúdio do que, no primeiro trimestre de 2008, viria a ser a União Sul-Americana de Nações (UNASUL).
Recuperando grande parte do acumulado histórico da diplomacia brasileira, que Collor e o primeiro governo FHC haviam deprimido, o Brasil volta hoje a formular e a executar uma política externa que, autónoma e independente, se enquadra na tradição característica que teve desde 1930.
[1] Cfr. CERVO, Amado Luiz (org.); O Desafio Internacional – A Política Exterior do Brasil de 1930 a Nossos Dias, Colecção Relações Internacionais, Editora Universidade de Brasília, 1ª edição, Brasília DF, 1994, pp.15.
[2] Cfr. SILVA, Alexandra de Mello e; A Política Externa de JK: Operação Pan-Americana, documento não publicado, fornecido pelo Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea do Brasil (CPDOC) da Fundação Getúlio Vargas (FGV), pp.15.
[3] Cfr. Idem, ibidem.
[4] Cfr. MALAN, Pedro Sampaio; Relações Económicas Internacionais do Brasil (1945-1964)”, in FAUSTO, Boris (org.); “História Geral da Civilização Brasileira”, tomo III: “O Brasil Republicano”, Vol. IV – Economia e Cultura (1930-1964), 3ª edição, Bertrand Brasil, Rio de Janeiro, pp.95-99.
[5] Cfr. Idem, pp. 95-96.
[6] Cfr. VIZENTINI, Paulo Fagundes; Relações Internacionais do Brasil: de Vargas a Lula, Editora Fundação Perseu Abramo, 1ª edição, São Paulo, Janeiro de 2003, pp. 31.
[7] Cfr. VIZENTINI, Paulo Fagundes; op. Cit., pp. 45.
[8] Cfr. idem, pp. 48.
[9] Cfr. VIZENTINI, Paulo Fagundes; op. Cit., pp. 62.
[10] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; As Relações em Eixo Franco-Alemãs e as Relações em Eixo Argentino-Brasileiras – Génese dos Processos de Integração, ISCSP/UTL, 1ª edição, Lisboa, Julho de 2007, pp. 334.
[11] Cfr. art.1º e art.3º do Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento entre a República Federativa do Brasil e a República Argentina. DAI – Divisão de Actos Internacionais do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, Brasília, Brasil.
[12] Cfr. Idem, pp. 81.
[13] Cfr. Idem, ibidem.
[14] Cfr. VIZENTINI, Paulo Fagundes; op. Cit., pp. 85.
[15] Cfr. VIZENTINI, Paulo Fagundes; op. Cit., pp. 88.
[16] Cfr. Idem, pp. 88.
[17] Cfr. Idem, ibidem.
[18] Cfr. Idem, pp. 89.
[19] Cfr. BERNAL-MEZA, Raul; A Política Exterior do Brasil 1990-2002, in Revista Brasileira de Política Internacional – RBPI, ano 45, nº 1, Brasília DF, 2002, pp. 36-71, pp. 36.
[20] Cfr. VIZENTINI, Paulo Fagundes; op. Cit., pp. 93.
[21] Cfr. CERVO, Amado Luiz; A Política Exterior: De Cardoso a Lula, in revista Brasileira de Política Internacional – RBPI, ano 46, nº 1, Brasília DF, 2003, pp. 5 (editorial).
[22] Cfr. CERVO, Amado Luiz; Inserção Internacional – Formação dos Conceitos Brasileiros, Editora Saraiva, 1ª edição, São Paulo, 2008, pp. 85.
[23] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; As Relações em Eixo Franco-Alemãs e as Relações em Eixo Argentino-Brasileiras – Génese dos Processos de Integração, ISCSP/UTL, 1ª edição, Lisboa, Julho de 2007.
Friday, May 8, 2009
Monday, April 6, 2009
O Brasil e o Mundo Não-Polar Pós-Americano
O BRASIL E A NOVA ORDEM INTERNACIONAL
Quase duas décadas volvidas desde o derrube do muro de Berlim – e subsequentes transformações registadas no Leste do Velho Continente – o mundo continua a alterar-se velozmente. As relações internacionais adquirem um significado especial, diferente do quadro realista que desde a Segunda Guerra Mundial havia marcado a evolução da ordem mundial e do seu sistema internacional. Não é certo que o sistema dito westphaliano tenha desmoronado, tampouco que o Estado esteja prestes a desaparecer como actor das relações internacionais. O que tem ocorrido é uma transformação profunda daquele sistema, bem como do sentido que pode hoje atribuir-se ao Estado. A clássica potência territorial e político-militar vê alterarem-se as funções, outrora especificamente consideradas prerrogativas exclusivas da sua soberania. As funções de regulação económica são, em parte, transferidas para organizações internacionais, para espaços regionais organizados e, até mesmo, para actores privados, o que ocorre mesmo em relação ao poder régio de emitir moeda, que os Estados da União Europeia já foram levados a não mais assumir. As funções sociais e culturais ultrapassam também as fronteiras nacionais, porque os problemas são globais e é globalmente que têm de ser solucionados. As organizações humanitárias e ecológicas, os movimentos sociais transfronteiriços, as organizações não governamentais de um modo geral proliferam para fazer-nos lembrar disso. As funções protectoras dos Estados estão também em mutação. A falência dos modelos europeus do Welfare State estão aí para o demonstrar. Até mesmo a era da monopolização da guerra pelos Estados chega ao fim, com a relação entre violência e política totalmente alterada. Os movimentos terroristas o comprovam. É evidente que o Estado continua a existir, continua com a função de assegurar a competitividade das suas empresas e, de forma mais ortodoxa, vê imporem-se novas funções macroeconómicas, como a acção anti-inflacionária, a gestão das finanças públicas, o respeito pelos grandes equilíbrios; enfim, permanece, mas com funções diferentes, muitas delas ainda não interiorizadas. Os aparelhos de Estado estão ainda despreparados para a nova realidade e a relativização do princípio territorial, que multiplica os espaços nos quais as aspirações e as opções políticas podem ocorrer, ainda não é tranquilamente vista como dado adquirido. É complexa a relação entre as reivindicações identitárias e o território, já que, de um lado, a multiplicação dos espaços criados pela mundialização fragiliza a relação Estado-cidadão e, por outro, as reivindicações nacionalistas proliferam, obrigando à consolidação de espaços políticos no interior de uma entidade territorial que carece de novas estruturas.
Na realidade, após a era unipolar (com os EUA como potência única), que sucedeu à era bipolar (quando ainda existia a URSS), o mundo tornou-se multipolar, quando novos poderes, essencialmente económicos, surgiram para dominar o mundo juntamente com os EUA e a União Europeia. São eles o Brasil, a Rússia, a Índia e a China, num primeiro momento, logo seguidos pelo México e pela África do Sul, depois por mais uma dezena de outros países ditos emergentes.
Estes novos poderes têm em comum, realmente, o facto de serem emergentes, o que terá motivado a criação do acrónimo BRIC.
Fala-se muito, hoje em dia, especialmente na comunicação social brasileira, relativamente na chinesa e na indiana, e praticamente nada na russa, dos BRIC. Acrónimo lançado por Jim O`Neill, economista do grupo norte-americano Goldman Sachs, em 2001[1], BRIC refere-se, sugestivamente, ao Brasil, à Rússia, à Índia e à China, no sentido de chamar a atenção para as economias desses países, considerados emergentes, porque as respectivas economias têm alcançado tal nível de crescimento nos últimos anos que, em 2050, virão a ultrapassar o crescimento das economias hoje mais sólidas da sociedade internacional[2], desde que satisfaçam determinadas condições.
Os BRIC têm, efectivamente, em comum, o facto de serem países emergentes, sendo a ideia da Goldman Sachs dar-lhes por isso atenção, também numa tentativa de neles aplicar o american dream. O que levou o grupo norte-americano a entrar em rota de colisão com a política externa dos Estados Unidos.
Na realidade, após o derrube do muro de Berlim e subsequente transformações registadas no Leste europeu, emergiu, dos escombros da Ordem dos Pactos Militares, uma nova ordem internacional unipolar, dominada pela unilateralidade do domínio absoluto exercido pela política externa norte-americana. Ao nível económico, todavia, não tardaria que novos poderes surgissem impondo a partilha do domínio do mundo entre eles, a União Europeia e os EUA. Empresas como a Goldman Sachs encararam essa ordem internacional, até aos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001, como multipolar, indo por isso em busca de países emergentes onde pudessem investir de modo mais lucrativo. Para essas empresas, a sociedade internacional nada apresentava de unipolaridade, apenas o sendo para a Escola Realista das Relações Internacionais, vinculada à definição de superpotência como o poder que tem capacidade de actuar em qualquer teatro de operações, a qualquer momento, tanto económica, como ideológica, cultural e militarmente. Mas a sociedade internacional afirmava-se, para estas empresas, multipolar, sendo seu objectivo salvaguardar o Estado para que este não entrasse em colapso e, assim, serem evitadas novas guerras; razão pela qual partiram em busca de novos pólos de investimento, voltando-se então para as economias que começavam a apresentar grande crescimento económico, sendo certo que essas economias possuem grandes potencialidades, designadamente no que às populações numerosas e às extensões territoriais diz respeito. São países com uma massa crítica extraordinária, com populações que têm desenvolvido os mais variados sectores económicos, alcançando elevada formação, apresentando-se fortemente utilizadoras das tecnologias, em particular das tecnologias de informação, com destaque para o uso e abuso da Internet[3].
Com o 11 de Setembro de 2001, este estado de coisas alterou-se, não em função do islamismo ou do terrorismo, mas sim da (in)estabilidade económica. É evidente que os ataques terroristas ao coração do poder financeiro e militar dos EUA originaram a imprevisibilidade dos acontecimentos na ordem internacional pós-derrube do muro de Berlim, fazendo erigir uma nova ordem internacional. Todavia, a preocupação central desta segue sendo a estabilidade económica. O termo BRIC é, na verdade, lançado como alternativa de mercado em função, não só dos ataques terroristas, mas também, e sobretudo, das más políticas de Alan Greenspan.
Foi assim que a Goldman Sachs, que já vinha estudando os mercados emergentes desde a década de 1980, lançou o termo BRIC a 30 de Novembro de 2001[4], como resposta ao 11 de Setembro, com receio de um crash bolsista. Em 2003, lançaria a tese do Dreaming With the BRICs[5], já que, do ponto de vista de quem investe, o deadline de 2003 a 2050 confere segurança e confiança, particularmente relevantes na era de insegurança e pouco ganho que se seguiu aos ataques terroristas. Para Dominic Wilson e Roop Purushothaman, “the BRICs economies could become a much larger force in the world economy. We map out GDP growth, income per capita and currency movements in the BRICs economies until 2050”[6]. A partir da previsão assim elaborada, a Goldman Sachs investiu agressivamente nestes mercados emergentes. Em relatório de 2006[7], o grupo previu, mesmo, que o PIB do Brasil, de $ 4338 em 2000, seria, em 2050, de $ 26592, o que significa que investidores, em todo o mundo, investirão nestes mercados, sendo certo que a Goldman Sachs prevê, ainda, um crescimento económico do Brasil muito próximo ao da China, ao mesmo tempo que, menor na Índia, esse crescimento é ainda mais significativo na Rússia. As análises da Goldman Sachs mostram também uma estabilidade de crescimento para os BRIC na ordem dos 3,5% - número relativamente modesto, mas que apresenta grande segurança. Quando o crescimento do PIB é excessivamente elevado, é porque se trata de uma bolha inflacionada prestes a rebentar. Crescimentos do PIB mais modestos, mas todavia significativos, quando são constantes, demonstram sustentabilidade e maiores garantias de segurança. Trata-se, pois, de economias que crescem de forma sustentada que, mesmo que haja uma instabilidade política, a economia prossegue porque se encontra mais autónoma da política, sustentando a análise na fortíssima classe média que os BRIC vão tendo e apresentando recentemente. Comparando com o G7, as taxas de crescimento dos BRIC são mais modestas (mas não muito longe dos valores do G7), o que todavia representa grande estabilidade. E a estabilidade é o que mais interessa aos investidores.
Em 2005, a Goldman Sachs antevê uma crise mundial (a que efectivamente teria início no Verão de 2007), mas nada manifesta, de modo a evitar a aceleração da desestabilização. É neste sentido que o grupo passa a considerar e a aconselhar aos investidores a possibilidade de investir em outras economias em ascensão, os Next 11 (Bangladesh, Egipto, Indonésia, Irão, Coreia, México, Nigéria, Paquistão, Filipinas, Turquia e Vietname), como forma de diversificar os investimentos de modo a robustecer a capacidade das economias fazerem face à crise. A banca passa, então, a ter dois portfolios de investimento: os BRIC e os Next 11.
De facto, surgiram derivações interessantes dos BRIC, fazendo aumentar os pólos de poder e, por consequência, aumentar o número de actores importantes das relações internacionais, reforçando o mundo multipolar. Se a Goldman Sachs criara os BRIC, viria, pouco depois, a falar dos BRICS (resultado da junção da África do Sul aos BRIC); o mercado acrescentaria outros poderes económicos a esses cinco, com a junção do México aos BRIC, formando os BRICM e, ainda, com a junção, à África do Sul e ao México, dos dez Estados-membros da ASEAN, criando os BRICSAM.
A sociedade internacional afirmava-se como decididamente como multipolar. Entretanto, porém, a evolução célere dos BRIC do ponto de vista da utilização das tecnologias, designadamente das tecnologias de informação, leva-os a acelerar o processo mundial de criação dos sistemas de rede, preparando o caminho para a substituição da multipolaridade pela não-polaridade da sociedade internacional.
Na realidade, em função dessa evolução, o mundo começaria a romper com a multipolaridade; ou, o que é mais correcto, avançando tanto nessa multipolaridade que hoje a sociedade internacional conta com tão elevado número de actores relevantes, que é impossível identificá-los, o que sugere a não-polaridade de um mundo marcado por imensos e incontáveis pólos de acção[8].
Neste sentido, embora, à primeira vista, possa parecer que a sociedade internacional seja hoje multipolar, ela apresenta características bem distintas dessa multipolaridade: existem muitos mais centros de poder e grande parte deles são não estatais. “In contrast to multipolarity – which involves distinct poles or concentrations of power – a nonpolar international system is characterized by numerous centers with meaningful power”[9]. O mundo, hoje, não é dominado por um ou dois ou mesmo vários Estados, mas antes por dezenas, talvez centenas, de actores detendo e exercendo vários tipos de poder[10]. “Power is now found in many hands and in many places”[11].
A composição da actual sociedade internacional, global para Hedley Bull, apresenta centenas de actores com capacidade para intervir nas relações internacionais. Desde grandes potências (como os EUA), a organizações regionais (como a União Europeia e a ASEAN) e internacionais (como a ONU e a OMC), a organizações terroristas (como o Hamas e a Al-Qaeda), a organizações não-governamentais (como os Médicos sem Fronteira e o Greenpeace), a empresas multinacioanis (como a Nike a a MacDonalds) aos média com difusão à escala global (como a CNN e a Al Jazeera), a organizações religiosas, a partidos políticos, a cartéis da droga e ao próprio indivíduo. Há também estados, dentro dos Estados, como a Califórnia, que têm importância crescente, assim como cidades como Nova Iorque, São Paulo e Shangai. O mundo assiste, hoje, não mais à concentração de poder, mas à distribuição de poder. Às seis maiores potências mundiais juntam-se o Brasil, a Argentina, o Chile, o México e a Venezuela, na América Latina; a Nigéria e a África do Sul, na África; o Egipto, o Irão, Israel e a Arábia Saudita, no Médio Oriente; o Paquistão na Ásia do Sul; a Austrália, a Indonésia e a Coreia do Sul na Ásia do Leste e na Oceânia.
O aparecimento destes poderes, estatais e não-estatais, relativiza o poder e a influência da única superpotência restante após o fim da Ordem dos Pactos Militares, a grande vencedora da Guerra Fria. A China demonstrou ser o Estado mais capaz para influenciar o programa nuclear da Coreia do Norte, enquanto o poder de influência norte-americano sobre Teerão deve-se à participação de vários Estados-membros da União Europeia. Por outro lado, os poder dos EUA de influenciar Teerão diminui em função da relutância da China e da Rússia em impor sanções ao Irão. A China e a Rússia também diluíram os esforços internacionais para pressionar o governo do Sudão a acabar com a guerra em Darfur, enquanto o Paquistão, o Irão, a Coreia do Norte, a Venezuela e o Zimbabué têm também demonstrado grande capacidade para opor-se às iniciativas dos Estados Unidos. E mais: há hoje fundos de investimento em países como a China, o Kuwait, a Rússia, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos que funcionam como mecanismos para alargar o potencial económico destes países, embora se trate de investimento público para fins privados. Fundos esses que, em virtude dos altos lucros registados, estão a comprar o futebol inglês como forma de lazer (note-se os recentes casos do Manchester e as aproximações ao Newcastel).
Tudo isto tem vindo a relativizar o poder dos EUA nas relações internacionais, numa situação que se agravou em função da própria postura norte-americana assumida pela Administração de George W. Bush. Ao decidir agir por conta própria e recorrendo a reivindicações forjadas no caso do Iraque, W. Bush conseguiu lançar uma grande suspeição sobre as políticas norte-americanas e com isso tornou-se incapaz de influenciar uma série de parceiros. Também uma política económica errada acelerou este processo. Os enormes gastos no conflito no Médio Oriente[12], os cortes nas receitas provenientes dos impostos e a falta de compreensão relativamente à política energética, tiveram custos elevados no prestígio do então presidente dos EUA.
Estes erros, vale lembrar, não determinaram a engrenagem em direcção à não-polaridade. Simplesmente, aceleraram o processo. A própria globalização é um factor que tem levado a generalidade dos Estados a desenvolver-se e a ganhar capacidade suficiente para disputar a supremacia norte-americana, o que é, no fundo, um processo normal e inevitável, resultado da alta difusão da informação, que tem permitido que outros apareçam, com economias vibrantes assentes num contínuo progresso tecnológico, tal e qual os EUA são hoje. Fareed Zakaria refere-se a este processo como the rise of rest[13], na estruturação de um mundo não-polar que é, também, pós-americano[14]. Um mundo no qual o domínio norte-americano é posto à prova por uma série de novos actores.
Não significa isto a decadência dos EUA; mas tão somente a emergência de outros poderes. Afinal, os EUA continuam a gastar mais na pesquisa militar do que o resto do mundo todo, e fazem-no sem quebrar as contas públicas. Mesmo os gastos com a guerra no Iraque e no Afeganistão representam apenas 1% do PIB norte-americano[15]. “The United States will remain a vital, vibrant economy, at the forefront of the next revolutions in science, technology and industry »[16], até porque o país tem beneficiado massivamente das tendências impostas pela globalização. Para além de receber biliões de dólares em investimento, as suas multinacionais penetram tranquilamente nos diferentes países com enorme sucesso. Ademais, são os EUA a dominar as indústrias da nanotecnologia e da biotecnologia, comummente aceites com as indústrias do futuro. Com um elevado nível de qualificação, a população norte-americana é pujante e criativa, continuando os EUA a ser a mais importante fonte de ideias, em muito assente na extraordinária capacidade de absorver a imigração. É evidente que existem problemas: “the U.S. saving rates is zero; the current account deficit, the trade deficit and the budget deficit are high; the median income is flat; and commitments for entitlements are unsustainable”[17]. Estes são desafios que os EUA têm de enfrentar. Para tanto, devem preparar-se para realizar mudanças de fundo importantes, como a adopção de políticas económicas mais acertadas, já que os actuais problemas económicos “are not the product of deep inefficiencies within the U.S. economy, nor are they reflections of cultural decay. They are the consequences of specific government policies”[18]. Ademais, os progressos na sociedade norte-americana – designadamente em matéria de segurança social, reforma tributária e cuidados de saúde – requerem mais amplas coligações entre os dois maiores partidos políticos, requerem compromissos de ambos, no sentido da adopção de uma perspectiva de longo prazo.
Evidentemente, paralelamente a estas mudanças, os EUA têm de adaptar-se ao mundo não-polar pós-americano aceitando a emergência de outros países e, por conseguinte, aceitando a relativização da sua supremacia, o que implica uma alteração de estratégia e de atitude. Os EUA não estão em decadência; vivem tão somente num momento em que outros países ascendem em importância, seja pelo controlo das fontes energéticas, como a Rússia; seja pela captura de cérebros, como a União Europeia; seja pelo peso económico, como a China e, em menor escala, a Índia; seja pelo peso geo-económico, como o Brasil. Em lugar de insistir na manutenção da ordem internacional que têm construído durante os últimos sessenta anos, os EUA devem aceitar a nova realidade internacional, para que possam continuar a controlar a sociedade internacional, o que passa pela aceitação da emergência dos novos actores e de um mundo com grande diversidade de vozes e pontos de vista e pela cedência de espaço aos novos poderes. Se assim for, os EUA estarão colaborando na construção de uma sociedade internacional “in which the United States takes up less space, but it is one in which American ideas and ideals are overwhelmingly dominant”[19]. Na realidade, para Zakaria, “the United States has a window of oportunity to shape and master the changing global landscape, but only if it first recognizes that the post-american world is a reality – and embraces and celebrates that fact”[20].
Neste novo contexto internacional, em que são reconceptualizados o poder, a balança de poder e a hegemonia[21], o poder dos Estados não pode continuar a ser meramente medido pela tradicional visão realista que assenta na quantificação do território, da população, dos recursos económicos, da tecnologia e da capacidade militar e na análise da vontade política, da qualidade das elites governantes e do modelo constitucional. A par da avaliação destes factores de poder, que continuam a ser válidos para o desenvolvimento da capacidade de influenciar os demais e, por conseguinte, projectar poder[22], é necessário recorrer à análise de factores subjectivos que dependem muito mais da capacidade de influência indirecta sobre os outros, do que de uma projecção exclusiva de hard power. É importante, assim, ter em conta a habilidade de um corpo político influenciar indirectamente o comportamento ou interesses dos outros corpos políticos por meios culturais, ideológicos e através do prestígio, sem recurso à força ou à coacção. Porque assim influenciados, esses corpos políticos serão levados a crer que os seus objectivos e interesses, na arena internacional, serão convergentes em funcionalidade com o corpo que assim os influencia, o que os levará a cooperar com o primeiro[23], numa síntese entre os pressupostos realistas e os institucionais neoliberais em torno da interdependência complexa de Robert Keohane e Joseph Nye[24]. Daqui advém a força do soft power[25] para o entendimento da actual sociedade internacional, sendo certo que as potências apenas o serão se conjugarem o soft e o hard power. O que significa que, contemporaneamente, “não é possível compreender as relações internacionais nos termos tradicionais da polaridade [seja multi seja uni], porque a distribuição do poder deve ser analisada em um tabuleiro tridimensional, no qual, no tabuleiro superior, estaria o poderio militar, em que os EUA são claramente hegemónicos; no tabuleiro do meio, o económico, o poderio seria multipolar, pois, juntando os EUA, a Europa e o Japão [acrescentam-se os BRIC] (…) o tabuleiro de baixo é o reino das relações transnacionais, que transpõem as fronteiras nacionais e escapam aos controlos governamentais”[26].
Neste complexo jogo tridimensional, os actores estão interconectados e há transferência de poder de um para outro, de modo que o Estado que jogar apenas num dos três tabuleiros não compreenderá a influência e o poder das outras duas dimensões, tendo por isso dificuldade em afirmar-se como actor influente das relações internacionais. Esta realidade aponta, claramente, para o mundo não polar de Haass, especialmente em virtude da dinâmica do terceiro tabuleiro. O próprio Nye, em 2002, não deixa clara, nem a dinâmica deste terceiro tabuleiro nem a forma como ele se relaciona com os demais, sendo, por conseguinte, necessário que o século XXI venha explorar a dinâmica do terceiro tabuleiro, especialmente as multinacionais e as pessoas, em relação à dinâmica económica em nível estatal (segundo tabuleiro) e, mesmo, em relação à dinâmica do poderio militar (primeiro tabuleiro)[27].
É esta a sociedade internacional tridimensional em que o Brasil se insere e actua. É esta a sociedade internacional tridimensional que o Brasil, pelo poder geo-económico que detém, tem ajudado a estruturar. É esta a sociedade internacional tridimensional que o Brasil, pelo poder geo-económico que detém, tem influenciado.
Nesta sociedade internacional tridimensional não-polar e pós-americana, a política externa brasileira, desde 1963 assente na tese, formulada pelo então ministro das Relações Exteriores Araújo de Castro, dos três Ds (Desenvolvimento, Descolonização, Desarmamento) tem tentado conformar a ordem internacional à filosofia política de equalizar os benefícios, nas relações internacionais, entre os países ricos e os emergentes ou, por outras palavras, obter a reciprocidade nas relações internacionais, na tentativa de ultrapassar aquilo que Fernando Henrique Cardoso, quando se tornou céptico quanto à sociedade internacional conformada ao neoliberalismo, chamou de globalização assimétrica. Apostado numa inserção internacional logística, que, mantendo a abertura económica, reintroduz a intervenção estatal sempre que necessária, associando o liberalismo ao desenvolvimentismo, fundindo a doutrina clássica do capitalismo com o estruturalismo latino-americano, o Brasil procura, neste sentido, recuperar a autonomia decisória sem deixar de actuar no sistema internacional vigente, nele procurando superar as assimetrias entre países desenvolvidos e emergentes[28]. Além disso, a política externa brasileira, mantendo a tendência da diversificação de parceiros, segue tentando contrapor-se à acção externa dos EUA que, durante a Administração de George W. Bush, deprimiu o multilateralismo na tentativa de manter as vantagens unilaterais das estruturas hegemónicas do capitalismo ocidental.
Neste sentido, a diplomacia de Lula tem procurado contribuir para o reforço do multilateralismo, actuando em negociações comerciais que se desenrolam em três sectores do multilateralismo: no seio da OMC, no âmbito da edificação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e no quadro do estabelecimento de uma zona de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Tem contribuído, também, para o reforço do multilateralismo em outras áreas da esfera política e geopolítica, designadamente exigindo uma voz mais audível no seio do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, estando disposto a pagar uma quota mais alta ao FMI para poder ampliar o seu poder de decisão no seio desta instituição internacional; a reforma das Nações Unidas e a candidatura brasileira a um assento permanente no Conselho de Segurança, assim como as diligências mais recentes para entrar para a Organização dos Países Produtores e Exportadores de Petróleo (OPEP), sendo de considerar, ainda, a participação do Brasil na liderança da Força de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (com 1 200 homens).
Tem sido, contudo, difícil obter a reciprocidade real entre países capitalistas e emergentes, o que tem levado o Brasil a voltar-se, cada vez mais, para outros espaços de actuação.
Desde logo, o Brasil volta-se para a participação activa no âmbito do multilateralismo regional expresso no sistema interamericano institucionalmente suportado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e pelo Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), ainda que este vector hemisférico ocupe uma importância secundária na actual política externa brasileira que, em termos regionais, prefere valorizar o fortalecimento da integração sul-americana, contexto no qual ganham relevo as relações em eixo[29] com a Argentina e, ainda, o Chile, a Bolívia e a Venezuela. De igual modo, a política externa brasileira mantém relações crescentemente significativas com a África e o Médio Oriente, tentando ainda manter o trato cordial com os EUA – conforme aconselha a prudência do realismo e pragmatismo da diplomacia brasileira.
Ademais, reflectindo sobre os vectores económico, social, político e agrícola (sendo o Brasil, de todos os BRIC, o maior mercado agrícola), o Brasil tem, através de sistemas de rede montados com as universidades, as empresas e os centros de estudo, estruturado pontos de contacto e ligações com os restantes países emergentes. O Brasil congregou a Índia e a China, já pensando nas potencialidades dos minérios; congregou a África do Sul, em função da dinâmica económica sul-africana e da sua rede de influências; e tem-se ligado aos melhores académicos russos, indianos e chineses, para além de ter criado a Secretaria de Acções Especiais de Longo Prazo – englobando o Núcleo de Assuntos Estratégicos (NAE) e o Instituto de Pesquisa Económica Aplicada (Ipea) – à frente da qual está Roberto Mangabeira Unger, conhecido professor de Direito na Universidade de Harvard, que defende formas alternativas de globalização – designadamente a reorientação do regime internacional do comércio e a reorganização das instituições multilaterais do sistema Bretton Woods – e o entendimento do Brasil com as potências emergentes (China, Rússia e Índia) o qual permitirá que, a pouco e pouco, se transforme a natureza da hegemonia norte-americana. Ideias que vão no sentido de criar uma forma de globalização mais propícia ao pluralismo. Mangabeira Unger sustenta que a energia para lutar por essa reconstrução do regime global tem de vir da tentativa de reorientar os projetos nacionais, pelo que, somente quando se tenta desenvolver um projeto nacional alternativo ao projecto neoliberal se torna possível levar adiante a ideia de mudar as regras do actual sistema global.
Acima de tudo, a dificuldade em obter a reciprocidade nas relações internacionais tem justificado a aposta brasileira na aproximação aos países emergentes consubstanciada nas coligações anti-hegemónicas que têm nascido sob sua liderança, desde a reunião de Cancun, em 2003, no âmbito da Ronda de Doha da OMC. Desde logo, ressalta o G20, grupo de países composto pelos de maior peso da América do Sul, da África e da Ásia, liderado pelo Brasil. Igualmente liderado pela diplomacia brasileira surge, também desde 2003, a articulação com a Índia e a África do Sul no seio G3-Ibas; e a articulação com o Japão, a Alemanha e a Índia no âmbito do G4; enquanto a Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA) foi instituída em 2005, prelúdio do que, no primeiro trimestre de 2008, viria a ser a União Sul-Americana de Nações (UNASUL), que, pretendendo desenvolver um plano energético e um banco de desenvolvimento, para promover a integração regional e garantir uma maior presença internacional dos seus membros, criou, a 10 de Março de 2009, na capital chilena, o Conselho de Defesa – organismo de defesa comum destinado a promover a concertação no plano militar e prevenir crises regionais. Composto pelos ministros da Defesa das doze repúblicas que fazem parte da UNASUL (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela), o Conselho terá também por função supervisionar as despesas militares de forma transparente, até porque essas despesas aumentaram 25% em 2008, atingindo os $ 50 mil milhões[30]. Daqui advém o papel do Brasil como âncora da América do Sul e como actor global da sociedade internacional. A sua capacidade de influenciar o comércio internacional patenteia-se por meio do G20[31]; a sua capacidade para influir sobre a segurança internacional torna-se evidente no G4[32]; a sua capacidade de fomentar a cooperação Sul-Sul entre os países emergentes surge evidente no G3-Ibas[33], a associação das três maiores democracias do Sul, destinada a promover a cooperação e o desenvolvimento. Ademais, o Brasil tem defendido o alargamento do G8 de modo a inclui-lo a ele e bem ainda a Rússia, a China, a Índia e o México.
Neste sentido, é evidente o interesse brasileiro em potenciar a economia e o investimento nos restantes BRIC, até porque a globalização dos mercados, ao transformar o mundo numa pequena aldeia global, determina a rápida repercussão dos fenómenos. Desta forma, a capitalização da economia e do investimento na Rússia, na Índia e na China, por parte do Brasil, terá, certamente, efeitos benéficos para a economia brasileira, em pleno momento de expansão, pese embora o agravamento, nos últimos meses, da crise financeira despoletada, em meados de 2007, nos EUA, a propósito do subprime. Os fundamentos da economia brasileira têm-se apresentado sólidos para enfrentar esses distúrbios[34], até pelo aparecimento de um fenómeno social novo: o nascimento de uma classe média oriunda das massas de baixa renda, responsável pelo consumo interno do país, assim contribuindo para o aquecimento global da economia brasileira[35]. Na sexta mensagem anual encaminhada, a 6 de Fevereiro de 2008, ao Congresso Nacional, por ocasião do início do ano legislativo, quando a Câmara e o Senado retomam oficialmente as actividades, após as férias de Verão, o presidente Lula, reconhecendo todavia a existência, no cenário internacional, de riscos para o crescimento da economia brasileira, avaliou que o impacto desse cenário sobre o país seria limitado, em virtude da “demanda doméstica robusta”[36] e da “solidez das contas externas”[37], tendo as Nações Unidas, em 2007, incluído o Brasil, pela primeira vez, no grupo de países com alto índice de desenvolvimento humano. O mesmo Brasil que, segundo informações oficiais de Fevereiro de 2008, torna-se hoje, pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial[38], credor internacional, em virtude do valor das suas reservas ser superior ao volume da dívida externa. O governo brasileiro espera que o crescimento do PIB do país, para 2009, se situe entre os 3,7% e os 3,8%[39] - um nível inferior ao esperado para os restantes BRIC, mais ainda assim bastante significativo para um país em desenvolvimento. A formação bruta de capital, no Brasil, aumentou expressivamente, os investimentos directos estrangeiros entraram em grande volume[40] e as reservas internacionais do Brasil situaram-se, em Dezembro de 2008, em $ 206,8 mil milhões[41], nível nunca antes alcançado pelo país. Ademais, o Brasil melhorou a sua capacidade de suportar os choques externos e o governo brasileiro prevê, mesmo, que o país, em até dez anos, assuma a liderança mundial na exportação de etanol e soja, superando inclusive os EUA no ranking do comércio internacional destes produtos, reforce a sua liderança na venda de açúcar e registe um salto nas exportações de milho[42]. O Brasil ultrapassou já os EUA em matéria de produção de ferro e café, tornando-se o maior produtor mundial destes bens, sendo ainda o maior produtor do mundo em biocombustíveis, sumo de laranja concentrado, carne de vaca e carne de aves[43]. O Brasil, uma das maiores democracias do mundo, largamente conhecido como o país do futuro, nunca alcançava esse futuro, em virtude das crises económicas e políticas. Agora, esta situação tem-se alterado. Galardoado como investment grade status pela Agência Financeira Standard & Poor[44], em Maio de 2008, o Brasil assume-se como um país sério, que tem adoptado políticas sérias, que cuida das finanças com seriedade, merecendo, por conseguinte, a confiança internacional, como Lula afirmaria após o anúncio da Standard & Poor[45]. As descobertas de petróleo que têm sido feitas pela Petrobrás contribuem para esta situação, podendo elevar o Brasil ao estatuto de grande produtor de petróleo. De acordo com o prestigiado jornal britânico The Guardian, «South America`s sleeping giant is finally waking up»[46].
O receio inicial de que a ascensão de um torneiro-mecânico e líder sindical à Presidência do Brasil viesse conduzir o país a uma direcção socialista, sentido durante toda a campanha de 2002 – tendo inclusive causado a queda do Real e enfraquecido de algum modo a economia brasileira – desapareceu assim que, uma vez no poder, Lula adoptou políticas económicas liberais – aprofundando inclusive a orientação neoliberal do antecessor Fernando Henrique Cardoso – o que rapidamente restaurou a confiança internacional no Brasil e a credibilidade do país, levando-o a um crescimento económico espectacular.
Esta evolução positiva, assente num programa de desenvolvimento infraestrutural e de um novo modelo energético (através da diversificação da matriz energética), o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), tem sido seguida do aumento das verbas para os programas sociais, que não são apenas programas de distribuição da renda, antes estão vocacionados para a educação, tanto a nível infantil, médio/juvenil, quanto superior, com base na ideia de colocar os jovens, sobretudo os de muito baixa renda, no sistema educacional. É evidente que estas políticas sociais por si só são insuficientes, até porque o espectro da inflação tem toldado a política, quer dos governantes, quer do sector privado empresarial. Pela primeira vez, no início de 2008, o governo manifestou preocupação com a forte expansão da procura nos últimos meses, sendo certo que o pacote de medidas económicas destinadas a compensar a perda de receitas resultantes do fim da Contribuição Provisória Sobre Movimentação Financeira (CPMF) poderia vir a ser benéfico para travar a inflação. Isto porque, para compensar o fim da CPMF, o pacote previa o aumento do Imposto Sobre Operações Financeiras (IOF) e da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL), que levaria ao esfriamento do ritmo de crescimento do consumo, já que o governo desejava que a expansão do crédito continuasse. Por outro lado, é necessário fazer face às vulnerabilidades comuns a todos os BRIC. No caso específico do Brasil, a excessiva burocracia é ainda um empecilho ao desenvolvimento, assim como a deficiente infraestrutura. É evidente que o crescimento do PIB tem sido utilizado para suprir estas necessidades, com pesados investimentos no sector das infraestruturas, mas muito há ainda por fazer, ainda que, depois, praticamente nada sobre para investir nas forças militares – o que também deveria ser feito por um Estado que tem ambições de potência de nível mundial. Por outro lado, o êxito da economia do Brasil, assim como de todos os BRIC, está demasiado dependente do sistema internacional, sendo ainda certa a falta de vontade em promover a alteração da ordem que lhe(s) serve(m) os interesses nacionais. Os próprios problemas relativos à energia, ao ambiente e à tecnologia demonstram que o Brasil não tem, ainda, desenvolvido todos os esforços necessários nessas matérias. Embora muito venha sendo feito, de há uns anos a esta parte, a verdade é que muito tem, ainda, de ser feito, para que se evitem as constantes crises energéticas, para que se alcance o desenvolvimento ambientalmente sustentável e para que o Brasil consiga, efectivamente, alcançar o patamar tecnológico que lhesconfira a independência relativamente aos países ricos. Dependência que ainda possui, tanto em matéria tecnológica, quanto ambiental, quanto, mesmo, energética (porque não chega ter as fontes de energia; é necessário ter, também, a tecnologia que permita trabalhar essas fontes).
Perante estas vulnerabilidades, o Professor Sebastián Edwards, antigo responsável pelo Departamento de Economia para a América Latina do Banco Mundial, actual professor de Economia da UCLA, a recente crise financeira tem demonstrado que a ideia de que o Brasil e todos os emergentes se tornam rapidamente mais fortes que as economias avançadas é falsa, argumentando que a maioria desses países são ainda débeis e têm sido severamente afectados pela recessão que tem atingido os países avançados; situação que será particularmente grave na América Latina[47]. Segundo o Professor Edwards, o Brasil, a par do México, têm sido os emergentes mais afectados pela crise financeira, com a cotação das empresas a cair drasticamente em torno de 50%, tendo os Estados Unidos tido que intervir com a concessão de um crédito de mais de $ 60 biliões[48]. Para Edwards, o Brasil será a questão central, por ser o gigante latino-americano. Durante décadas, o Brasil foi considerado o poder económico do futuro, com previsões de crescimento similares às da China e da Índia, vindo a crise financeira dos dias de hoje demonstrar a fragilidade da economia do país do futuro, um futuro que nunca chegava e que continuará não chegando. Justifica esta ideia alegando a debilidade das bases do recente crescimento económico do Brasil, não obstante ter o presidente Lula fugido da tentação populista de Hugo Chávez e controlado a inflação. O problema é que estas medidas não são suficientes, argumenta Sebastián Edwads, para quem “agility, dynamism, productivity and economic policies to promote efficiency and enterprise are required”[49]. É ainda necessário, de acordo com este ponto de vista, que o Brasil leve a bom porto as necessárias reformas para sustentar o boom de produtividade, deixe de ser um país burocrático, com um sistema educacional deficiente, elevados impostos, infraestrutura medíocre e altíssimo índice de corrupção[50].
A actual intensidade dos contactos internacionais do Brasil com as principais potências mundiais endereça a questão em outro sentido. Os líderes dos principais países da sociedade internacional – como Barack Obama, Nicolas Sarkozy e Gordon Brown – têm-se aproximado do Brasil, nos últimos meses, de forma muito intensa, o que sugere que começam a olhar para o gigante sul-americano de outro modo e que lhe estão a dar uma credibilidade e uma importância que desmentem o pessimismo de Sebastián Edwards. Tudo indica que, no actual cenário internacional, o Brasil venha a deixar de ocupar uma posição de liderança regional para tornar-se um verdadeiro global player.
Efectivamente, em Dezembro de 2008, Sarkozy encontrou-se com Lula em Brasília, altura em que foram assinados diversos acordos de cooperação, nomeadamente na área da defesa; e em que os dois países firmaram uma parceria estratégica, sendo de salientar o acordo expresso de ambos na ampliação do G8 e na reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, com a concessão de um acento permanente ao Brasil. No final de Fevereiro de 2009, Lula enviou a Sarkozy, através do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, a proposta de uma aliança para estimular a reforma das instituições internacionais, com que ambos concordam. Também na última semana de Fevereiro, Celso Amorim encontrou-se com a secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton, em Washington, não só para preparar a visita seguinte de Lula à capital norte-americana, como também para discutir temas globais, designadamente a crise mundial, a cimeira do G20, a retoma da Ronda de Doha da OMC, a participação dos dois países na Missão de estabilização das Nações Unidas e a crise israelo-árabe.
A 2 de Março, Celso Amorim representou o Brasil na Conferência Internacional sobre Gaza, que decorreu no Egipto, tendo anunciado, no fórum da Conferência de Doadores em Apoio à Economia Palestiniana para a Reconstrução de Gaza, a doação de € 7,9 milhões[51] para ajudar a reconstruir a região.
Dois dias depois (4 de Março), Amorim esteve na III Reunião dos Ministros das Relações Exteriores da América do Sul e dos Países Árabes (ASPA), para preparar a II Cimeira de Chefes de Estado das duas regiões que decorrerá em Doha, a 31 de Março.
Logo a 14 de Março seria vez de Barack Obama. Deslocando-se a Washington, o presidente Lula encontrou-se com o homólogo norte-americano para debater as relações bilaterais, tendo o encontro sido marcado, todavia, pela discussão em torno da crise económica mundial.
A 26 de Março, Lula recebeu, em Brasília, o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, para debater a crise, especialmente em função da proximidade da Cimeira do G20 – que terá lugar em Londres, no dia 2 de Abril, para discutir uma nova arquitectura financeira. Os temas bilaterais foram também abordados, até porque o fluxo comercial entre os dois países aumentou, no ano passado, 20,7%[52], sendo o Brasil o país sul-americano que mais recebe investimentos britânicos (cerca de € 508 milhões em 2008)[53].
Novo encontro entre Lula e Sarkozy está entretanto já agendado para o dia 1 de Abril, em Paris, com o objectivo de coordenar posições relativamente à crise económico-financeira internacional.
Este frenesim diplomático sinaliza claramente que a sociedade internacional, com especial relevância para os mais importantes países que a compõem, estão a abrir caminho para a participação mais activa do Brasil na construção da nova ordem mundial. O que demonstra a importância que os mesmos reconhecem ao Brasil como global player, no caminho do abandono da sua influência estritamente regional.
A verdade, porém, é que, se o Brasil pretende assumir-se como uma potência que ultrapassa os limites regionais, deverá apostar em todos os vértices do poder. Não chega ter peso geo-económico, uma economia pujante, assente numa população numerosa e cada vez mais bem formada, um soft power bem manejado, uma influência política cada vez mais evidente. É necessário ter umas Forças Armadas que estejam à altura dos desafios que se colocam às novas potências. Não obstante ter deixado de ser o quesito central na atribuição do qualificativo de potência, o poder militar é um dos tabuleiros da tridimensionalidade das actuais relações internacionais. E, neste, os EUA jogam sozinhos e lideram sozinhos.
Facto é que o orçamento brasileiro destinado às Forças Armadas em 2007 (2,6% do PIB) foi de cerca de metade do que lhe havia sido destinado em 1995 (4,9% do PIB)[54]. Na Força Aérea, 88% dos aviões têm mais de quinze anos e apenas 37% estão aptos a combater, enquanto na Marinha, dos vinte e um navios de guerra existentes, somente dez estão operacionais, o mesmo sucedendo a dois dos cinco submarinos[55]. No Exército, a situação é ainda mais dramática: as nove baterias antiaéreas que o país dispõe estão fora de combate, enquanto os tanques M 11 são do tempo da guerra da Coreia (1951-53), inúteis, pois, numa guerra moderna[56].
Ademais, o Brasil tem, nos últimos anos, perdido a liderança, entre os Sul-Americanos, em matéria de investimento nas Forças Armadas. Em 2005/2006, o país que mais investia nas Forças Armadas era o Equador (com 3,7% do PIB), seguido pelo Chile (3,5% do PIB), pela Colômbia (3,3% do PIB) e pela Bolívia (2,2% do PIB). O Brasil só aparecia em quinto lugar, com 1,8% do PIB a ser investido em equipamento militar, à frente apenas da Venezuela (1,7% do PIB) e da Argentina (1,1% do PIB)[57]. Ainda assim, o Brasil consegue manter a liderança militar na América do Sul, com 630 pontos[58] em 2006/2007. Bastante à frente do segundo colocado, o Peru (com 449 pontos), o Brasil tem vindo, todavia, a perder pontos, já que em 2004/2005 somava 653 pontos (23 pontos a mais que em 2006/2007). Tal como o Brasil, também a Argentina desceu de 419 para 402 pontos, a Colômbia de 314 para 303 pontos e o Equador de 254 para 244 pontos. Peru, Chile e Venezuela aumentaram os pontos de 2004/2005 para 2006/2007, sendo particularmente relevante o aumento de 34 pontos alcançado pela Venezuela, que passou de 282 para 316 pontos[59].
Com 290 000 homens, o Brasil é hoje o décimo quinto maior efectivo militar do mundo em termos absolutos, perdendo apenas para os EUA, com 1,4 milhão de homens. Em termos relativos[60], porém, o Brasil, com 1 650 homens por cada milhão de habitantes, surge atrás do Chile (o primeiro colocado, com 5 500 homens por cada milhão de habitantes), dos EUA, de Cuba, da Colômbia, da Venezuela, do México e da Argentina[61].
Por muito que custe aos dirigentes brasileiros actuais, ainda muito próximos da vivência ao tempo da ditadura militar (1964-1985) – cujo fim trouxe o total desinteresse pelas questões militares, então secundarizadas na vida pública do país, ainda hoje consideradas politicamente incorrectas – a verdade é que as elites governantes brasileiras e a sociedade civil brasileira terão de resolver consigo próprias o tabu em que se tornaram as questões militares. Pois se é certo que o poder militar é hoje apenas um dos tabuleiros das relações internacionais, não é menos certo que ele continua a ser um dos aspectos essenciais que ditam a atribuição do qualificativo de potência mundial. Se o Brasil ambiciona esse qualificativo, não poderá limitar-se a jogar nos dois outros tabuleiros e deixar isolados os EUA no primeiro de todos. Terá de apostar numa actuação tripla, porque tridimensional é hoje a sociedade internacional.
[1] Cfr. O`NEILL, Jim; Building Better Global Economic Brics, Global Economics Paper nº 66, 30 de Novembro de 2001. Também Steffano Pelle fala dos BRIC, assim como outros economistas da Goldman Sachs, no seguimento da tese lançada por O`Neill.
[2] Cfr. Idem.
[3] Para se ter uma noção das percentagens relativas de utilizadores da Internet pelo mundo, vide www.internetworldstats.com/stats4.htm#europe.
[4] Cfr. O`Neill, Jim; op. Cit..
[5] Cfr. WILSON, Dominic e PURUSHOTHAMAN, Roop; Dreaming with BRICs: The Path to 2050, Global Economics Paper nº 99, 1 de Outubro de 2003.
[6] Cfr. Idem, pp. 1.
[7] Cfr. COOPER, Andrew F., ANTKIEWICZ, Agata e SHAW, Timothy M.; Economic Size Trumps All Else? Lessons from BRICSAM, Building Ideas for Global Change, working papaer nº 12, Dezembro de 2006.
[8] Cfr. HAASS, Richard; The Age of Nonpolarity – What Will Follow U.S. Dominance?, Foreign Affairs, Maio/Junho de 2008. Vide também: HAASS, Richard; Ask the Expert: What Comes After Unipolarity?, Financial Times, Abril de 2008; na Era Não-Polar, os EUA Não Podem Mais Ser Sozinhos, entrevista de Sérgio Dávila a Richard Haass para a Folha de São Paulo de 12 de Maio de 2008.
[9] Cfr. HAASS, Richard; The Age of Nonpolarity – What Will Follow U.S. Dominance?, Foreign Affairs, Maio/Junho de 2008.
[10] Cfr. Idem, ibidem.
[11] Cfr. Idem, ibidem.
[12] Estes custos foram de facto elevado, mas nunca romperam com as finanças norte-americanas. Segundo Farred Zakaria, os EUA têm gasto, por ano, cerca de $ 125 biliões com a guerra no Iraque e no Afeganistão, o que representa apenas 1% do PIB norte-americano. Cfr. ZAKARIA, farred; O Mundo Pós-Americano, 1ª edição, Editora Gradiva, Lisboa, Setembro de 2008, pp. 163.
[13] Cfr. ZAKARIA, Fareed; The Future of American Power – How America Can Survive the Rise of the Rest, Foreign Affairs, Maio/Junho de 2008.
[14] Cfr. Idem, ibidem.
[15] Cfr. Idem.
[16] Cfr. Idem.
[17] Cfr. Idem.
[18] Cfr. Idem.
[19] Cfr. Idem.
[20] Cfr. Idem.
[21] Cfr. NYE, Joseph; The Changing Nature of World Power, Political Science Quarterly, vol. 105, nº 2, Verão de 1990, pp. 177-192.
[22] Aqui, poder é entendido como a capacidade de uma unidade política influenciar as acções das demais de forma previsível, isto é, constranger os demais a comportamentos que lhe tragam o efeito pré-determinado pretendido; ou, segundo a Doutrina Estratégica Brasileira, a expressão integrada dos meios de toda a ordem de que a unidade política dispõe, accionados pela vontade nacional, no sentido de alcançar e manter, interna e externamente, os objectivos definidos com base no interesse nacional. Para o cientista político Robert Dahl, o poder é a habilidade de constranger os outros a fazer o que estes, de outro modo, não fariam (Cfr. DAHL, Robert; Who Governs? Democracy and Power in na American City, Yale University Press, 1ª edição, Yale, 1961); o que aponta para uma conceptualização behavioralista da medição do poder, em termos de alterar comportamentos, o que implica conhecer as preferências desses sujeitos – tarefa extraordinariamente difícil (Cfr. NYE, Joseph; The Changing Nature of World Power, Political Science Quarterly, vol. 105, nº 2, Verão de 1990, pp. 177-192, pp. 178).
[23] Cfr. NYE, Joseph; Soft Power: The Means to Success in World Politics,editora Public Affairs, 1ª edição, EUA, Março de 2004.
[24] Cfr. KEOHANE, Robert e NYE, Joseph; Power and Interdependence, Library of Congress Cataloging – in Publication Data, Longman Editions, 3ª edição, Nova Iorque, 2001.
[25] Cfr. NYE, Joseph; The Changing Nature of World Power, Political Science Quarterly, vol. 105, nº 2, Verão de 1990, pp. 177-192. Vide ainda: NYE, Joseph; Soft Power: The Means to Success in World Politics,editora Public Affairs, 1ª edição, EUA, Março de 2004. NYE, Joseph; The Paradoxo of American Power, Oxford University Press, 1ª edição, EUA, Maio de 2003. NYE, Joseph; The Decline of America`s Soft Power, Foreign Affairs, Maio-Junho de 2004. GUZZINI, Stefano; Structural Power: The Limits of Neorealist Power Analysis, International Organization, Vol. 47, nº 3, Verão de 1993, pp. 443-478. DAHL, Robert; Who Governs? Democracy and Power in na American City, Yale University Press, 1ª edição, Yale, 1961. STRANGE, Susan; States and Markets, Basil Blackwell editora, Nova Iorque, 1988. KEOHANE, Robert e NYE, Joseph; Power and Interdependence, Library of Congress Cataloging – in Publication Data, Longman Editions, 3ª edição, Nova Iorque, 2001. SARFATI, Gilberto; O Terceiro Xadrez: Como as Empresas Multinacionais Negociam nas Relações Econômicas Internacionais, tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de Ciências Políticas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob orientação da Prof. Doutora Elizabeth Balbachevsky, São Paulo, 2006.
[26] Cfr. SARFATI, Gilberto; O Terceiro Xadrez: Como as Empresas Multinacionais Negociam nas Relações Econômicas Internacionais, tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de Ciências Políticas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob orientação da Prof. Doutora Elizabeth Balbachevsky, São Paulo, 2006, documento não publicado disponível no Banco de Teses da Universidade de São Paulo, pp. 53-54.
[27] Cfr. Idem, ibidem.
[28] Cfr. CERVO, Amado Luiz; Inserção Internacional – Formação dos Conceitos Brasileiros, Editora Saraiva, 1ª edição, São Paulo, 2008, pp. 85.
[29] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; As Relações em Eixo Franco-Alemãs e as Relações em Eixo Argentino-Brasileiras – Génese dos Processos de Integração, ISCSP/UTL, 1ª edição, Lisboa, Julho de 2007.
[30] Cfr. Mário Miranda, Agência Lusa, de Lisboa, 10 de Março de 2009.
[31] O G20 reuniu-se em Washington, a 8 de Novembro de 2008, tendo o presidente Lula exigido que ao Brasil seja concedido um papel mais significativo nas questões mundiais.
[32] Cfr. CERVO, Amado Luiz; op. Cit., pp. 108.
[33] Cfr. Idem, ibidem.
[34] A 11 de Março de 2009, o director executivo do FMI, Paulo Nogueira Batista, que representa o Brasil e outros países sul-americanos no FMI, afirmou perante o presidente Lula que «o Brasil está bem, apesar dos efeitos da crise». Cfr. Mário Miranda, Agência Lusa, de Lisboa, 11 de Março de 2009.
[35] Segundo o presidente Lula, esta classe média é já maioria, representando 52% de toda a sociedade brasileira. Cfr. LULA DA SILVA; Colocar B em BRIC, O Mundo em 2009, The Economist, pp. 58.
[36] Cfr. LULA DA SILVA, Mensagem encaminhada ao Congresso Nacional, 6 de Fevereiro de 2008.
[37] Cfr. Idem.
[38] No final da Segunda Guerra Mundial, houve um curto período em que o Brasil também viveu o papel de credor internacional. Durante o conflito, o país havia acumulado um grande saldo externo, que o governo Vargas pretendia utilizar como recurso para a recuperação tecnológica da indústria. Entretanto, porém, em apenas dois anos (1946 e 1947), a política económica liberal do presidente Eurico Gaspar Dutra, de liberdade cambial e abertura do mercado nacional, gastou aquelas reservas com a importação livre de supérfluos, fazendo regredir a situação creditícia que o Brasil teve por um curto espaço de tempo. Hoje, a dívida externa volta a ser inferior às reservas nacionais, como não sucedia no país desde o fim do Segundo Grande Conflito Mundial. Mas a situação actual tem também uma forte fragilidade, em razão do crescimento da dívida interna, remunerada a juros extremamente elevados, e do papel do investimento estrangeiro, que se beneficia daqueles juros, na formação das reservas. Esta situação origina uma grande emissão de títulos federais para ''esterilizar'' o meio circulante dos Reais constantemente emitidos para fazer o câmbio. Os títulos assim emitidos a juros altos são comprados pelos aplicadores, sendo a diferença custeada pela emissão de mais títulos e pela maior necessidade de superavite primário no orçamento público. Assim, enquanto é criado património financeiro privado, a dívida pública interna vai crescendo, decorrente de uma política monetária muito restritiva, que não permite que os Reais assim gerados circulem na economia financiando a produção e aumentando o consumo. Em resumo, se as taxas de juros não fossem tão altas e a política monetária mais expansiva, a atracção do ganho fácil não traria tantos Dólares ao Brasil, mas haveria mais Reais em circulação e menos dívida pública a sufocar o Estado brasileiro. A política económica, que ajudou a gerar a grande reserva externa, é, assim, também, a responsável pela própria fragilidade. Na verdade, no passado, a confortável situação de credor internacional durou, para o Brasil, apenas dois anos. Quantos irá durar a situação actual?
[39] Em 2007, a previsão da Administração Lula era de um crescimento do PIB de 5%. No final de Agosto de 2008, esse valor baixou para 4,5%, tendo o governo actualizado as previsões, no final de Novembro de 2008, para cerca de 3,7% e 3,8%, pela voz do ministro Paulo Bento, do Planejamento.
[40] A 26 de Janeiro de 2009, o Banco Central do Brasil informou que, em 2008, os investimentos directos estrangeiros (IDE) atingiram o patamar recorde de $ 45 mil milhões, o máximo alcançado desde 1947
[41] Segundo dados do Banco Central do Brasil de Janeiro de 2009.
[42] O boom das commodities, designadamente de soja, é particularmente relevante no estado do Mato Grosso, que se transformou na vanguarda da marcha brasileira em direcção a um novo lugar na sociedade internacional global.
[43] Cfr. BRIDGES, Tyler; Brazil no Longer Longo n Potential and Short on Performance, in Miami Herald, 12 de Novembro de 2008.
[44] Cfr. The Country of the Future Finally Arrives, in secção financeira do The Guardian, 10 de Maio de 2008, pp. 41.
[45] Afirmação de Lula, in idem, ibidem.
[46] Cfr. Idem, ibidem.
[47] Cfr. EDWARDS, Sebastián; The Financial Hurricane Hits Latin America, Project Syndicate – An Association of Newspapers Around the World, in www.project-syndicate.org, 2008.
[48] Cfr. Idem, ibidem.
[49] Cfr. Idem, ibidem.
[50] Cfr. Idem, ibidem.
[51] Cfr. Carla Mendes, Agência Lusa, de Brasília, 3 de Março de 2009.
[52] Cfr. Carla Mendes, Agência Lusa, de Brasília, 24 de Março de 2009.
[53] Cfr. Idem.
[54] Segundo dados do Centro de Comunicação do Exército brasileiro em Março de 2009.
[55] Cfr. Idem.
[56] Cfr. Idem.
[57] Segundo dados da Military Power Review.
[58] A Military Power Review atribui pontos em função da quantidade e qualidade dos equipamentos e em função do tamanho do contingente militar de cada país.
[59] Segundo dados da Military Power Review.
[60] Em termos absolutos são contados os efectivos existentes em termos numéricos apenas. Em termos relativos essa contagem é feita com relação à população do país. Assim, em termos relativos conta-se o número de militares existentes por cada milhão de habitantes do país.
[61] Segundo dados do Centro de Comunicação do Exército brasileiro em Março de 2009.
Quase duas décadas volvidas desde o derrube do muro de Berlim – e subsequentes transformações registadas no Leste do Velho Continente – o mundo continua a alterar-se velozmente. As relações internacionais adquirem um significado especial, diferente do quadro realista que desde a Segunda Guerra Mundial havia marcado a evolução da ordem mundial e do seu sistema internacional. Não é certo que o sistema dito westphaliano tenha desmoronado, tampouco que o Estado esteja prestes a desaparecer como actor das relações internacionais. O que tem ocorrido é uma transformação profunda daquele sistema, bem como do sentido que pode hoje atribuir-se ao Estado. A clássica potência territorial e político-militar vê alterarem-se as funções, outrora especificamente consideradas prerrogativas exclusivas da sua soberania. As funções de regulação económica são, em parte, transferidas para organizações internacionais, para espaços regionais organizados e, até mesmo, para actores privados, o que ocorre mesmo em relação ao poder régio de emitir moeda, que os Estados da União Europeia já foram levados a não mais assumir. As funções sociais e culturais ultrapassam também as fronteiras nacionais, porque os problemas são globais e é globalmente que têm de ser solucionados. As organizações humanitárias e ecológicas, os movimentos sociais transfronteiriços, as organizações não governamentais de um modo geral proliferam para fazer-nos lembrar disso. As funções protectoras dos Estados estão também em mutação. A falência dos modelos europeus do Welfare State estão aí para o demonstrar. Até mesmo a era da monopolização da guerra pelos Estados chega ao fim, com a relação entre violência e política totalmente alterada. Os movimentos terroristas o comprovam. É evidente que o Estado continua a existir, continua com a função de assegurar a competitividade das suas empresas e, de forma mais ortodoxa, vê imporem-se novas funções macroeconómicas, como a acção anti-inflacionária, a gestão das finanças públicas, o respeito pelos grandes equilíbrios; enfim, permanece, mas com funções diferentes, muitas delas ainda não interiorizadas. Os aparelhos de Estado estão ainda despreparados para a nova realidade e a relativização do princípio territorial, que multiplica os espaços nos quais as aspirações e as opções políticas podem ocorrer, ainda não é tranquilamente vista como dado adquirido. É complexa a relação entre as reivindicações identitárias e o território, já que, de um lado, a multiplicação dos espaços criados pela mundialização fragiliza a relação Estado-cidadão e, por outro, as reivindicações nacionalistas proliferam, obrigando à consolidação de espaços políticos no interior de uma entidade territorial que carece de novas estruturas.
Na realidade, após a era unipolar (com os EUA como potência única), que sucedeu à era bipolar (quando ainda existia a URSS), o mundo tornou-se multipolar, quando novos poderes, essencialmente económicos, surgiram para dominar o mundo juntamente com os EUA e a União Europeia. São eles o Brasil, a Rússia, a Índia e a China, num primeiro momento, logo seguidos pelo México e pela África do Sul, depois por mais uma dezena de outros países ditos emergentes.
Estes novos poderes têm em comum, realmente, o facto de serem emergentes, o que terá motivado a criação do acrónimo BRIC.
Fala-se muito, hoje em dia, especialmente na comunicação social brasileira, relativamente na chinesa e na indiana, e praticamente nada na russa, dos BRIC. Acrónimo lançado por Jim O`Neill, economista do grupo norte-americano Goldman Sachs, em 2001[1], BRIC refere-se, sugestivamente, ao Brasil, à Rússia, à Índia e à China, no sentido de chamar a atenção para as economias desses países, considerados emergentes, porque as respectivas economias têm alcançado tal nível de crescimento nos últimos anos que, em 2050, virão a ultrapassar o crescimento das economias hoje mais sólidas da sociedade internacional[2], desde que satisfaçam determinadas condições.
Os BRIC têm, efectivamente, em comum, o facto de serem países emergentes, sendo a ideia da Goldman Sachs dar-lhes por isso atenção, também numa tentativa de neles aplicar o american dream. O que levou o grupo norte-americano a entrar em rota de colisão com a política externa dos Estados Unidos.
Na realidade, após o derrube do muro de Berlim e subsequente transformações registadas no Leste europeu, emergiu, dos escombros da Ordem dos Pactos Militares, uma nova ordem internacional unipolar, dominada pela unilateralidade do domínio absoluto exercido pela política externa norte-americana. Ao nível económico, todavia, não tardaria que novos poderes surgissem impondo a partilha do domínio do mundo entre eles, a União Europeia e os EUA. Empresas como a Goldman Sachs encararam essa ordem internacional, até aos ataques terroristas de 11 de Setembro de 2001, como multipolar, indo por isso em busca de países emergentes onde pudessem investir de modo mais lucrativo. Para essas empresas, a sociedade internacional nada apresentava de unipolaridade, apenas o sendo para a Escola Realista das Relações Internacionais, vinculada à definição de superpotência como o poder que tem capacidade de actuar em qualquer teatro de operações, a qualquer momento, tanto económica, como ideológica, cultural e militarmente. Mas a sociedade internacional afirmava-se, para estas empresas, multipolar, sendo seu objectivo salvaguardar o Estado para que este não entrasse em colapso e, assim, serem evitadas novas guerras; razão pela qual partiram em busca de novos pólos de investimento, voltando-se então para as economias que começavam a apresentar grande crescimento económico, sendo certo que essas economias possuem grandes potencialidades, designadamente no que às populações numerosas e às extensões territoriais diz respeito. São países com uma massa crítica extraordinária, com populações que têm desenvolvido os mais variados sectores económicos, alcançando elevada formação, apresentando-se fortemente utilizadoras das tecnologias, em particular das tecnologias de informação, com destaque para o uso e abuso da Internet[3].
Com o 11 de Setembro de 2001, este estado de coisas alterou-se, não em função do islamismo ou do terrorismo, mas sim da (in)estabilidade económica. É evidente que os ataques terroristas ao coração do poder financeiro e militar dos EUA originaram a imprevisibilidade dos acontecimentos na ordem internacional pós-derrube do muro de Berlim, fazendo erigir uma nova ordem internacional. Todavia, a preocupação central desta segue sendo a estabilidade económica. O termo BRIC é, na verdade, lançado como alternativa de mercado em função, não só dos ataques terroristas, mas também, e sobretudo, das más políticas de Alan Greenspan.
Foi assim que a Goldman Sachs, que já vinha estudando os mercados emergentes desde a década de 1980, lançou o termo BRIC a 30 de Novembro de 2001[4], como resposta ao 11 de Setembro, com receio de um crash bolsista. Em 2003, lançaria a tese do Dreaming With the BRICs[5], já que, do ponto de vista de quem investe, o deadline de 2003 a 2050 confere segurança e confiança, particularmente relevantes na era de insegurança e pouco ganho que se seguiu aos ataques terroristas. Para Dominic Wilson e Roop Purushothaman, “the BRICs economies could become a much larger force in the world economy. We map out GDP growth, income per capita and currency movements in the BRICs economies until 2050”[6]. A partir da previsão assim elaborada, a Goldman Sachs investiu agressivamente nestes mercados emergentes. Em relatório de 2006[7], o grupo previu, mesmo, que o PIB do Brasil, de $ 4338 em 2000, seria, em 2050, de $ 26592, o que significa que investidores, em todo o mundo, investirão nestes mercados, sendo certo que a Goldman Sachs prevê, ainda, um crescimento económico do Brasil muito próximo ao da China, ao mesmo tempo que, menor na Índia, esse crescimento é ainda mais significativo na Rússia. As análises da Goldman Sachs mostram também uma estabilidade de crescimento para os BRIC na ordem dos 3,5% - número relativamente modesto, mas que apresenta grande segurança. Quando o crescimento do PIB é excessivamente elevado, é porque se trata de uma bolha inflacionada prestes a rebentar. Crescimentos do PIB mais modestos, mas todavia significativos, quando são constantes, demonstram sustentabilidade e maiores garantias de segurança. Trata-se, pois, de economias que crescem de forma sustentada que, mesmo que haja uma instabilidade política, a economia prossegue porque se encontra mais autónoma da política, sustentando a análise na fortíssima classe média que os BRIC vão tendo e apresentando recentemente. Comparando com o G7, as taxas de crescimento dos BRIC são mais modestas (mas não muito longe dos valores do G7), o que todavia representa grande estabilidade. E a estabilidade é o que mais interessa aos investidores.
Em 2005, a Goldman Sachs antevê uma crise mundial (a que efectivamente teria início no Verão de 2007), mas nada manifesta, de modo a evitar a aceleração da desestabilização. É neste sentido que o grupo passa a considerar e a aconselhar aos investidores a possibilidade de investir em outras economias em ascensão, os Next 11 (Bangladesh, Egipto, Indonésia, Irão, Coreia, México, Nigéria, Paquistão, Filipinas, Turquia e Vietname), como forma de diversificar os investimentos de modo a robustecer a capacidade das economias fazerem face à crise. A banca passa, então, a ter dois portfolios de investimento: os BRIC e os Next 11.
De facto, surgiram derivações interessantes dos BRIC, fazendo aumentar os pólos de poder e, por consequência, aumentar o número de actores importantes das relações internacionais, reforçando o mundo multipolar. Se a Goldman Sachs criara os BRIC, viria, pouco depois, a falar dos BRICS (resultado da junção da África do Sul aos BRIC); o mercado acrescentaria outros poderes económicos a esses cinco, com a junção do México aos BRIC, formando os BRICM e, ainda, com a junção, à África do Sul e ao México, dos dez Estados-membros da ASEAN, criando os BRICSAM.
A sociedade internacional afirmava-se como decididamente como multipolar. Entretanto, porém, a evolução célere dos BRIC do ponto de vista da utilização das tecnologias, designadamente das tecnologias de informação, leva-os a acelerar o processo mundial de criação dos sistemas de rede, preparando o caminho para a substituição da multipolaridade pela não-polaridade da sociedade internacional.
Na realidade, em função dessa evolução, o mundo começaria a romper com a multipolaridade; ou, o que é mais correcto, avançando tanto nessa multipolaridade que hoje a sociedade internacional conta com tão elevado número de actores relevantes, que é impossível identificá-los, o que sugere a não-polaridade de um mundo marcado por imensos e incontáveis pólos de acção[8].
Neste sentido, embora, à primeira vista, possa parecer que a sociedade internacional seja hoje multipolar, ela apresenta características bem distintas dessa multipolaridade: existem muitos mais centros de poder e grande parte deles são não estatais. “In contrast to multipolarity – which involves distinct poles or concentrations of power – a nonpolar international system is characterized by numerous centers with meaningful power”[9]. O mundo, hoje, não é dominado por um ou dois ou mesmo vários Estados, mas antes por dezenas, talvez centenas, de actores detendo e exercendo vários tipos de poder[10]. “Power is now found in many hands and in many places”[11].
A composição da actual sociedade internacional, global para Hedley Bull, apresenta centenas de actores com capacidade para intervir nas relações internacionais. Desde grandes potências (como os EUA), a organizações regionais (como a União Europeia e a ASEAN) e internacionais (como a ONU e a OMC), a organizações terroristas (como o Hamas e a Al-Qaeda), a organizações não-governamentais (como os Médicos sem Fronteira e o Greenpeace), a empresas multinacioanis (como a Nike a a MacDonalds) aos média com difusão à escala global (como a CNN e a Al Jazeera), a organizações religiosas, a partidos políticos, a cartéis da droga e ao próprio indivíduo. Há também estados, dentro dos Estados, como a Califórnia, que têm importância crescente, assim como cidades como Nova Iorque, São Paulo e Shangai. O mundo assiste, hoje, não mais à concentração de poder, mas à distribuição de poder. Às seis maiores potências mundiais juntam-se o Brasil, a Argentina, o Chile, o México e a Venezuela, na América Latina; a Nigéria e a África do Sul, na África; o Egipto, o Irão, Israel e a Arábia Saudita, no Médio Oriente; o Paquistão na Ásia do Sul; a Austrália, a Indonésia e a Coreia do Sul na Ásia do Leste e na Oceânia.
O aparecimento destes poderes, estatais e não-estatais, relativiza o poder e a influência da única superpotência restante após o fim da Ordem dos Pactos Militares, a grande vencedora da Guerra Fria. A China demonstrou ser o Estado mais capaz para influenciar o programa nuclear da Coreia do Norte, enquanto o poder de influência norte-americano sobre Teerão deve-se à participação de vários Estados-membros da União Europeia. Por outro lado, os poder dos EUA de influenciar Teerão diminui em função da relutância da China e da Rússia em impor sanções ao Irão. A China e a Rússia também diluíram os esforços internacionais para pressionar o governo do Sudão a acabar com a guerra em Darfur, enquanto o Paquistão, o Irão, a Coreia do Norte, a Venezuela e o Zimbabué têm também demonstrado grande capacidade para opor-se às iniciativas dos Estados Unidos. E mais: há hoje fundos de investimento em países como a China, o Kuwait, a Rússia, a Arábia Saudita e os Emirados Árabes Unidos que funcionam como mecanismos para alargar o potencial económico destes países, embora se trate de investimento público para fins privados. Fundos esses que, em virtude dos altos lucros registados, estão a comprar o futebol inglês como forma de lazer (note-se os recentes casos do Manchester e as aproximações ao Newcastel).
Tudo isto tem vindo a relativizar o poder dos EUA nas relações internacionais, numa situação que se agravou em função da própria postura norte-americana assumida pela Administração de George W. Bush. Ao decidir agir por conta própria e recorrendo a reivindicações forjadas no caso do Iraque, W. Bush conseguiu lançar uma grande suspeição sobre as políticas norte-americanas e com isso tornou-se incapaz de influenciar uma série de parceiros. Também uma política económica errada acelerou este processo. Os enormes gastos no conflito no Médio Oriente[12], os cortes nas receitas provenientes dos impostos e a falta de compreensão relativamente à política energética, tiveram custos elevados no prestígio do então presidente dos EUA.
Estes erros, vale lembrar, não determinaram a engrenagem em direcção à não-polaridade. Simplesmente, aceleraram o processo. A própria globalização é um factor que tem levado a generalidade dos Estados a desenvolver-se e a ganhar capacidade suficiente para disputar a supremacia norte-americana, o que é, no fundo, um processo normal e inevitável, resultado da alta difusão da informação, que tem permitido que outros apareçam, com economias vibrantes assentes num contínuo progresso tecnológico, tal e qual os EUA são hoje. Fareed Zakaria refere-se a este processo como the rise of rest[13], na estruturação de um mundo não-polar que é, também, pós-americano[14]. Um mundo no qual o domínio norte-americano é posto à prova por uma série de novos actores.
Não significa isto a decadência dos EUA; mas tão somente a emergência de outros poderes. Afinal, os EUA continuam a gastar mais na pesquisa militar do que o resto do mundo todo, e fazem-no sem quebrar as contas públicas. Mesmo os gastos com a guerra no Iraque e no Afeganistão representam apenas 1% do PIB norte-americano[15]. “The United States will remain a vital, vibrant economy, at the forefront of the next revolutions in science, technology and industry »[16], até porque o país tem beneficiado massivamente das tendências impostas pela globalização. Para além de receber biliões de dólares em investimento, as suas multinacionais penetram tranquilamente nos diferentes países com enorme sucesso. Ademais, são os EUA a dominar as indústrias da nanotecnologia e da biotecnologia, comummente aceites com as indústrias do futuro. Com um elevado nível de qualificação, a população norte-americana é pujante e criativa, continuando os EUA a ser a mais importante fonte de ideias, em muito assente na extraordinária capacidade de absorver a imigração. É evidente que existem problemas: “the U.S. saving rates is zero; the current account deficit, the trade deficit and the budget deficit are high; the median income is flat; and commitments for entitlements are unsustainable”[17]. Estes são desafios que os EUA têm de enfrentar. Para tanto, devem preparar-se para realizar mudanças de fundo importantes, como a adopção de políticas económicas mais acertadas, já que os actuais problemas económicos “are not the product of deep inefficiencies within the U.S. economy, nor are they reflections of cultural decay. They are the consequences of specific government policies”[18]. Ademais, os progressos na sociedade norte-americana – designadamente em matéria de segurança social, reforma tributária e cuidados de saúde – requerem mais amplas coligações entre os dois maiores partidos políticos, requerem compromissos de ambos, no sentido da adopção de uma perspectiva de longo prazo.
Evidentemente, paralelamente a estas mudanças, os EUA têm de adaptar-se ao mundo não-polar pós-americano aceitando a emergência de outros países e, por conseguinte, aceitando a relativização da sua supremacia, o que implica uma alteração de estratégia e de atitude. Os EUA não estão em decadência; vivem tão somente num momento em que outros países ascendem em importância, seja pelo controlo das fontes energéticas, como a Rússia; seja pela captura de cérebros, como a União Europeia; seja pelo peso económico, como a China e, em menor escala, a Índia; seja pelo peso geo-económico, como o Brasil. Em lugar de insistir na manutenção da ordem internacional que têm construído durante os últimos sessenta anos, os EUA devem aceitar a nova realidade internacional, para que possam continuar a controlar a sociedade internacional, o que passa pela aceitação da emergência dos novos actores e de um mundo com grande diversidade de vozes e pontos de vista e pela cedência de espaço aos novos poderes. Se assim for, os EUA estarão colaborando na construção de uma sociedade internacional “in which the United States takes up less space, but it is one in which American ideas and ideals are overwhelmingly dominant”[19]. Na realidade, para Zakaria, “the United States has a window of oportunity to shape and master the changing global landscape, but only if it first recognizes that the post-american world is a reality – and embraces and celebrates that fact”[20].
Neste novo contexto internacional, em que são reconceptualizados o poder, a balança de poder e a hegemonia[21], o poder dos Estados não pode continuar a ser meramente medido pela tradicional visão realista que assenta na quantificação do território, da população, dos recursos económicos, da tecnologia e da capacidade militar e na análise da vontade política, da qualidade das elites governantes e do modelo constitucional. A par da avaliação destes factores de poder, que continuam a ser válidos para o desenvolvimento da capacidade de influenciar os demais e, por conseguinte, projectar poder[22], é necessário recorrer à análise de factores subjectivos que dependem muito mais da capacidade de influência indirecta sobre os outros, do que de uma projecção exclusiva de hard power. É importante, assim, ter em conta a habilidade de um corpo político influenciar indirectamente o comportamento ou interesses dos outros corpos políticos por meios culturais, ideológicos e através do prestígio, sem recurso à força ou à coacção. Porque assim influenciados, esses corpos políticos serão levados a crer que os seus objectivos e interesses, na arena internacional, serão convergentes em funcionalidade com o corpo que assim os influencia, o que os levará a cooperar com o primeiro[23], numa síntese entre os pressupostos realistas e os institucionais neoliberais em torno da interdependência complexa de Robert Keohane e Joseph Nye[24]. Daqui advém a força do soft power[25] para o entendimento da actual sociedade internacional, sendo certo que as potências apenas o serão se conjugarem o soft e o hard power. O que significa que, contemporaneamente, “não é possível compreender as relações internacionais nos termos tradicionais da polaridade [seja multi seja uni], porque a distribuição do poder deve ser analisada em um tabuleiro tridimensional, no qual, no tabuleiro superior, estaria o poderio militar, em que os EUA são claramente hegemónicos; no tabuleiro do meio, o económico, o poderio seria multipolar, pois, juntando os EUA, a Europa e o Japão [acrescentam-se os BRIC] (…) o tabuleiro de baixo é o reino das relações transnacionais, que transpõem as fronteiras nacionais e escapam aos controlos governamentais”[26].
Neste complexo jogo tridimensional, os actores estão interconectados e há transferência de poder de um para outro, de modo que o Estado que jogar apenas num dos três tabuleiros não compreenderá a influência e o poder das outras duas dimensões, tendo por isso dificuldade em afirmar-se como actor influente das relações internacionais. Esta realidade aponta, claramente, para o mundo não polar de Haass, especialmente em virtude da dinâmica do terceiro tabuleiro. O próprio Nye, em 2002, não deixa clara, nem a dinâmica deste terceiro tabuleiro nem a forma como ele se relaciona com os demais, sendo, por conseguinte, necessário que o século XXI venha explorar a dinâmica do terceiro tabuleiro, especialmente as multinacionais e as pessoas, em relação à dinâmica económica em nível estatal (segundo tabuleiro) e, mesmo, em relação à dinâmica do poderio militar (primeiro tabuleiro)[27].
É esta a sociedade internacional tridimensional em que o Brasil se insere e actua. É esta a sociedade internacional tridimensional que o Brasil, pelo poder geo-económico que detém, tem ajudado a estruturar. É esta a sociedade internacional tridimensional que o Brasil, pelo poder geo-económico que detém, tem influenciado.
Nesta sociedade internacional tridimensional não-polar e pós-americana, a política externa brasileira, desde 1963 assente na tese, formulada pelo então ministro das Relações Exteriores Araújo de Castro, dos três Ds (Desenvolvimento, Descolonização, Desarmamento) tem tentado conformar a ordem internacional à filosofia política de equalizar os benefícios, nas relações internacionais, entre os países ricos e os emergentes ou, por outras palavras, obter a reciprocidade nas relações internacionais, na tentativa de ultrapassar aquilo que Fernando Henrique Cardoso, quando se tornou céptico quanto à sociedade internacional conformada ao neoliberalismo, chamou de globalização assimétrica. Apostado numa inserção internacional logística, que, mantendo a abertura económica, reintroduz a intervenção estatal sempre que necessária, associando o liberalismo ao desenvolvimentismo, fundindo a doutrina clássica do capitalismo com o estruturalismo latino-americano, o Brasil procura, neste sentido, recuperar a autonomia decisória sem deixar de actuar no sistema internacional vigente, nele procurando superar as assimetrias entre países desenvolvidos e emergentes[28]. Além disso, a política externa brasileira, mantendo a tendência da diversificação de parceiros, segue tentando contrapor-se à acção externa dos EUA que, durante a Administração de George W. Bush, deprimiu o multilateralismo na tentativa de manter as vantagens unilaterais das estruturas hegemónicas do capitalismo ocidental.
Neste sentido, a diplomacia de Lula tem procurado contribuir para o reforço do multilateralismo, actuando em negociações comerciais que se desenrolam em três sectores do multilateralismo: no seio da OMC, no âmbito da edificação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e no quadro do estabelecimento de uma zona de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Tem contribuído, também, para o reforço do multilateralismo em outras áreas da esfera política e geopolítica, designadamente exigindo uma voz mais audível no seio do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial, estando disposto a pagar uma quota mais alta ao FMI para poder ampliar o seu poder de decisão no seio desta instituição internacional; a reforma das Nações Unidas e a candidatura brasileira a um assento permanente no Conselho de Segurança, assim como as diligências mais recentes para entrar para a Organização dos Países Produtores e Exportadores de Petróleo (OPEP), sendo de considerar, ainda, a participação do Brasil na liderança da Força de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (com 1 200 homens).
Tem sido, contudo, difícil obter a reciprocidade real entre países capitalistas e emergentes, o que tem levado o Brasil a voltar-se, cada vez mais, para outros espaços de actuação.
Desde logo, o Brasil volta-se para a participação activa no âmbito do multilateralismo regional expresso no sistema interamericano institucionalmente suportado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e pelo Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), ainda que este vector hemisférico ocupe uma importância secundária na actual política externa brasileira que, em termos regionais, prefere valorizar o fortalecimento da integração sul-americana, contexto no qual ganham relevo as relações em eixo[29] com a Argentina e, ainda, o Chile, a Bolívia e a Venezuela. De igual modo, a política externa brasileira mantém relações crescentemente significativas com a África e o Médio Oriente, tentando ainda manter o trato cordial com os EUA – conforme aconselha a prudência do realismo e pragmatismo da diplomacia brasileira.
Ademais, reflectindo sobre os vectores económico, social, político e agrícola (sendo o Brasil, de todos os BRIC, o maior mercado agrícola), o Brasil tem, através de sistemas de rede montados com as universidades, as empresas e os centros de estudo, estruturado pontos de contacto e ligações com os restantes países emergentes. O Brasil congregou a Índia e a China, já pensando nas potencialidades dos minérios; congregou a África do Sul, em função da dinâmica económica sul-africana e da sua rede de influências; e tem-se ligado aos melhores académicos russos, indianos e chineses, para além de ter criado a Secretaria de Acções Especiais de Longo Prazo – englobando o Núcleo de Assuntos Estratégicos (NAE) e o Instituto de Pesquisa Económica Aplicada (Ipea) – à frente da qual está Roberto Mangabeira Unger, conhecido professor de Direito na Universidade de Harvard, que defende formas alternativas de globalização – designadamente a reorientação do regime internacional do comércio e a reorganização das instituições multilaterais do sistema Bretton Woods – e o entendimento do Brasil com as potências emergentes (China, Rússia e Índia) o qual permitirá que, a pouco e pouco, se transforme a natureza da hegemonia norte-americana. Ideias que vão no sentido de criar uma forma de globalização mais propícia ao pluralismo. Mangabeira Unger sustenta que a energia para lutar por essa reconstrução do regime global tem de vir da tentativa de reorientar os projetos nacionais, pelo que, somente quando se tenta desenvolver um projeto nacional alternativo ao projecto neoliberal se torna possível levar adiante a ideia de mudar as regras do actual sistema global.
Acima de tudo, a dificuldade em obter a reciprocidade nas relações internacionais tem justificado a aposta brasileira na aproximação aos países emergentes consubstanciada nas coligações anti-hegemónicas que têm nascido sob sua liderança, desde a reunião de Cancun, em 2003, no âmbito da Ronda de Doha da OMC. Desde logo, ressalta o G20, grupo de países composto pelos de maior peso da América do Sul, da África e da Ásia, liderado pelo Brasil. Igualmente liderado pela diplomacia brasileira surge, também desde 2003, a articulação com a Índia e a África do Sul no seio G3-Ibas; e a articulação com o Japão, a Alemanha e a Índia no âmbito do G4; enquanto a Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA) foi instituída em 2005, prelúdio do que, no primeiro trimestre de 2008, viria a ser a União Sul-Americana de Nações (UNASUL), que, pretendendo desenvolver um plano energético e um banco de desenvolvimento, para promover a integração regional e garantir uma maior presença internacional dos seus membros, criou, a 10 de Março de 2009, na capital chilena, o Conselho de Defesa – organismo de defesa comum destinado a promover a concertação no plano militar e prevenir crises regionais. Composto pelos ministros da Defesa das doze repúblicas que fazem parte da UNASUL (Argentina, Bolívia, Brasil, Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela), o Conselho terá também por função supervisionar as despesas militares de forma transparente, até porque essas despesas aumentaram 25% em 2008, atingindo os $ 50 mil milhões[30]. Daqui advém o papel do Brasil como âncora da América do Sul e como actor global da sociedade internacional. A sua capacidade de influenciar o comércio internacional patenteia-se por meio do G20[31]; a sua capacidade para influir sobre a segurança internacional torna-se evidente no G4[32]; a sua capacidade de fomentar a cooperação Sul-Sul entre os países emergentes surge evidente no G3-Ibas[33], a associação das três maiores democracias do Sul, destinada a promover a cooperação e o desenvolvimento. Ademais, o Brasil tem defendido o alargamento do G8 de modo a inclui-lo a ele e bem ainda a Rússia, a China, a Índia e o México.
Neste sentido, é evidente o interesse brasileiro em potenciar a economia e o investimento nos restantes BRIC, até porque a globalização dos mercados, ao transformar o mundo numa pequena aldeia global, determina a rápida repercussão dos fenómenos. Desta forma, a capitalização da economia e do investimento na Rússia, na Índia e na China, por parte do Brasil, terá, certamente, efeitos benéficos para a economia brasileira, em pleno momento de expansão, pese embora o agravamento, nos últimos meses, da crise financeira despoletada, em meados de 2007, nos EUA, a propósito do subprime. Os fundamentos da economia brasileira têm-se apresentado sólidos para enfrentar esses distúrbios[34], até pelo aparecimento de um fenómeno social novo: o nascimento de uma classe média oriunda das massas de baixa renda, responsável pelo consumo interno do país, assim contribuindo para o aquecimento global da economia brasileira[35]. Na sexta mensagem anual encaminhada, a 6 de Fevereiro de 2008, ao Congresso Nacional, por ocasião do início do ano legislativo, quando a Câmara e o Senado retomam oficialmente as actividades, após as férias de Verão, o presidente Lula, reconhecendo todavia a existência, no cenário internacional, de riscos para o crescimento da economia brasileira, avaliou que o impacto desse cenário sobre o país seria limitado, em virtude da “demanda doméstica robusta”[36] e da “solidez das contas externas”[37], tendo as Nações Unidas, em 2007, incluído o Brasil, pela primeira vez, no grupo de países com alto índice de desenvolvimento humano. O mesmo Brasil que, segundo informações oficiais de Fevereiro de 2008, torna-se hoje, pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial[38], credor internacional, em virtude do valor das suas reservas ser superior ao volume da dívida externa. O governo brasileiro espera que o crescimento do PIB do país, para 2009, se situe entre os 3,7% e os 3,8%[39] - um nível inferior ao esperado para os restantes BRIC, mais ainda assim bastante significativo para um país em desenvolvimento. A formação bruta de capital, no Brasil, aumentou expressivamente, os investimentos directos estrangeiros entraram em grande volume[40] e as reservas internacionais do Brasil situaram-se, em Dezembro de 2008, em $ 206,8 mil milhões[41], nível nunca antes alcançado pelo país. Ademais, o Brasil melhorou a sua capacidade de suportar os choques externos e o governo brasileiro prevê, mesmo, que o país, em até dez anos, assuma a liderança mundial na exportação de etanol e soja, superando inclusive os EUA no ranking do comércio internacional destes produtos, reforce a sua liderança na venda de açúcar e registe um salto nas exportações de milho[42]. O Brasil ultrapassou já os EUA em matéria de produção de ferro e café, tornando-se o maior produtor mundial destes bens, sendo ainda o maior produtor do mundo em biocombustíveis, sumo de laranja concentrado, carne de vaca e carne de aves[43]. O Brasil, uma das maiores democracias do mundo, largamente conhecido como o país do futuro, nunca alcançava esse futuro, em virtude das crises económicas e políticas. Agora, esta situação tem-se alterado. Galardoado como investment grade status pela Agência Financeira Standard & Poor[44], em Maio de 2008, o Brasil assume-se como um país sério, que tem adoptado políticas sérias, que cuida das finanças com seriedade, merecendo, por conseguinte, a confiança internacional, como Lula afirmaria após o anúncio da Standard & Poor[45]. As descobertas de petróleo que têm sido feitas pela Petrobrás contribuem para esta situação, podendo elevar o Brasil ao estatuto de grande produtor de petróleo. De acordo com o prestigiado jornal britânico The Guardian, «South America`s sleeping giant is finally waking up»[46].
O receio inicial de que a ascensão de um torneiro-mecânico e líder sindical à Presidência do Brasil viesse conduzir o país a uma direcção socialista, sentido durante toda a campanha de 2002 – tendo inclusive causado a queda do Real e enfraquecido de algum modo a economia brasileira – desapareceu assim que, uma vez no poder, Lula adoptou políticas económicas liberais – aprofundando inclusive a orientação neoliberal do antecessor Fernando Henrique Cardoso – o que rapidamente restaurou a confiança internacional no Brasil e a credibilidade do país, levando-o a um crescimento económico espectacular.
Esta evolução positiva, assente num programa de desenvolvimento infraestrutural e de um novo modelo energético (através da diversificação da matriz energética), o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), tem sido seguida do aumento das verbas para os programas sociais, que não são apenas programas de distribuição da renda, antes estão vocacionados para a educação, tanto a nível infantil, médio/juvenil, quanto superior, com base na ideia de colocar os jovens, sobretudo os de muito baixa renda, no sistema educacional. É evidente que estas políticas sociais por si só são insuficientes, até porque o espectro da inflação tem toldado a política, quer dos governantes, quer do sector privado empresarial. Pela primeira vez, no início de 2008, o governo manifestou preocupação com a forte expansão da procura nos últimos meses, sendo certo que o pacote de medidas económicas destinadas a compensar a perda de receitas resultantes do fim da Contribuição Provisória Sobre Movimentação Financeira (CPMF) poderia vir a ser benéfico para travar a inflação. Isto porque, para compensar o fim da CPMF, o pacote previa o aumento do Imposto Sobre Operações Financeiras (IOF) e da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL), que levaria ao esfriamento do ritmo de crescimento do consumo, já que o governo desejava que a expansão do crédito continuasse. Por outro lado, é necessário fazer face às vulnerabilidades comuns a todos os BRIC. No caso específico do Brasil, a excessiva burocracia é ainda um empecilho ao desenvolvimento, assim como a deficiente infraestrutura. É evidente que o crescimento do PIB tem sido utilizado para suprir estas necessidades, com pesados investimentos no sector das infraestruturas, mas muito há ainda por fazer, ainda que, depois, praticamente nada sobre para investir nas forças militares – o que também deveria ser feito por um Estado que tem ambições de potência de nível mundial. Por outro lado, o êxito da economia do Brasil, assim como de todos os BRIC, está demasiado dependente do sistema internacional, sendo ainda certa a falta de vontade em promover a alteração da ordem que lhe(s) serve(m) os interesses nacionais. Os próprios problemas relativos à energia, ao ambiente e à tecnologia demonstram que o Brasil não tem, ainda, desenvolvido todos os esforços necessários nessas matérias. Embora muito venha sendo feito, de há uns anos a esta parte, a verdade é que muito tem, ainda, de ser feito, para que se evitem as constantes crises energéticas, para que se alcance o desenvolvimento ambientalmente sustentável e para que o Brasil consiga, efectivamente, alcançar o patamar tecnológico que lhesconfira a independência relativamente aos países ricos. Dependência que ainda possui, tanto em matéria tecnológica, quanto ambiental, quanto, mesmo, energética (porque não chega ter as fontes de energia; é necessário ter, também, a tecnologia que permita trabalhar essas fontes).
Perante estas vulnerabilidades, o Professor Sebastián Edwards, antigo responsável pelo Departamento de Economia para a América Latina do Banco Mundial, actual professor de Economia da UCLA, a recente crise financeira tem demonstrado que a ideia de que o Brasil e todos os emergentes se tornam rapidamente mais fortes que as economias avançadas é falsa, argumentando que a maioria desses países são ainda débeis e têm sido severamente afectados pela recessão que tem atingido os países avançados; situação que será particularmente grave na América Latina[47]. Segundo o Professor Edwards, o Brasil, a par do México, têm sido os emergentes mais afectados pela crise financeira, com a cotação das empresas a cair drasticamente em torno de 50%, tendo os Estados Unidos tido que intervir com a concessão de um crédito de mais de $ 60 biliões[48]. Para Edwards, o Brasil será a questão central, por ser o gigante latino-americano. Durante décadas, o Brasil foi considerado o poder económico do futuro, com previsões de crescimento similares às da China e da Índia, vindo a crise financeira dos dias de hoje demonstrar a fragilidade da economia do país do futuro, um futuro que nunca chegava e que continuará não chegando. Justifica esta ideia alegando a debilidade das bases do recente crescimento económico do Brasil, não obstante ter o presidente Lula fugido da tentação populista de Hugo Chávez e controlado a inflação. O problema é que estas medidas não são suficientes, argumenta Sebastián Edwads, para quem “agility, dynamism, productivity and economic policies to promote efficiency and enterprise are required”[49]. É ainda necessário, de acordo com este ponto de vista, que o Brasil leve a bom porto as necessárias reformas para sustentar o boom de produtividade, deixe de ser um país burocrático, com um sistema educacional deficiente, elevados impostos, infraestrutura medíocre e altíssimo índice de corrupção[50].
A actual intensidade dos contactos internacionais do Brasil com as principais potências mundiais endereça a questão em outro sentido. Os líderes dos principais países da sociedade internacional – como Barack Obama, Nicolas Sarkozy e Gordon Brown – têm-se aproximado do Brasil, nos últimos meses, de forma muito intensa, o que sugere que começam a olhar para o gigante sul-americano de outro modo e que lhe estão a dar uma credibilidade e uma importância que desmentem o pessimismo de Sebastián Edwards. Tudo indica que, no actual cenário internacional, o Brasil venha a deixar de ocupar uma posição de liderança regional para tornar-se um verdadeiro global player.
Efectivamente, em Dezembro de 2008, Sarkozy encontrou-se com Lula em Brasília, altura em que foram assinados diversos acordos de cooperação, nomeadamente na área da defesa; e em que os dois países firmaram uma parceria estratégica, sendo de salientar o acordo expresso de ambos na ampliação do G8 e na reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas, com a concessão de um acento permanente ao Brasil. No final de Fevereiro de 2009, Lula enviou a Sarkozy, através do ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, a proposta de uma aliança para estimular a reforma das instituições internacionais, com que ambos concordam. Também na última semana de Fevereiro, Celso Amorim encontrou-se com a secretária de Estado norte-americana Hillary Clinton, em Washington, não só para preparar a visita seguinte de Lula à capital norte-americana, como também para discutir temas globais, designadamente a crise mundial, a cimeira do G20, a retoma da Ronda de Doha da OMC, a participação dos dois países na Missão de estabilização das Nações Unidas e a crise israelo-árabe.
A 2 de Março, Celso Amorim representou o Brasil na Conferência Internacional sobre Gaza, que decorreu no Egipto, tendo anunciado, no fórum da Conferência de Doadores em Apoio à Economia Palestiniana para a Reconstrução de Gaza, a doação de € 7,9 milhões[51] para ajudar a reconstruir a região.
Dois dias depois (4 de Março), Amorim esteve na III Reunião dos Ministros das Relações Exteriores da América do Sul e dos Países Árabes (ASPA), para preparar a II Cimeira de Chefes de Estado das duas regiões que decorrerá em Doha, a 31 de Março.
Logo a 14 de Março seria vez de Barack Obama. Deslocando-se a Washington, o presidente Lula encontrou-se com o homólogo norte-americano para debater as relações bilaterais, tendo o encontro sido marcado, todavia, pela discussão em torno da crise económica mundial.
A 26 de Março, Lula recebeu, em Brasília, o primeiro-ministro britânico, Gordon Brown, para debater a crise, especialmente em função da proximidade da Cimeira do G20 – que terá lugar em Londres, no dia 2 de Abril, para discutir uma nova arquitectura financeira. Os temas bilaterais foram também abordados, até porque o fluxo comercial entre os dois países aumentou, no ano passado, 20,7%[52], sendo o Brasil o país sul-americano que mais recebe investimentos britânicos (cerca de € 508 milhões em 2008)[53].
Novo encontro entre Lula e Sarkozy está entretanto já agendado para o dia 1 de Abril, em Paris, com o objectivo de coordenar posições relativamente à crise económico-financeira internacional.
Este frenesim diplomático sinaliza claramente que a sociedade internacional, com especial relevância para os mais importantes países que a compõem, estão a abrir caminho para a participação mais activa do Brasil na construção da nova ordem mundial. O que demonstra a importância que os mesmos reconhecem ao Brasil como global player, no caminho do abandono da sua influência estritamente regional.
A verdade, porém, é que, se o Brasil pretende assumir-se como uma potência que ultrapassa os limites regionais, deverá apostar em todos os vértices do poder. Não chega ter peso geo-económico, uma economia pujante, assente numa população numerosa e cada vez mais bem formada, um soft power bem manejado, uma influência política cada vez mais evidente. É necessário ter umas Forças Armadas que estejam à altura dos desafios que se colocam às novas potências. Não obstante ter deixado de ser o quesito central na atribuição do qualificativo de potência, o poder militar é um dos tabuleiros da tridimensionalidade das actuais relações internacionais. E, neste, os EUA jogam sozinhos e lideram sozinhos.
Facto é que o orçamento brasileiro destinado às Forças Armadas em 2007 (2,6% do PIB) foi de cerca de metade do que lhe havia sido destinado em 1995 (4,9% do PIB)[54]. Na Força Aérea, 88% dos aviões têm mais de quinze anos e apenas 37% estão aptos a combater, enquanto na Marinha, dos vinte e um navios de guerra existentes, somente dez estão operacionais, o mesmo sucedendo a dois dos cinco submarinos[55]. No Exército, a situação é ainda mais dramática: as nove baterias antiaéreas que o país dispõe estão fora de combate, enquanto os tanques M 11 são do tempo da guerra da Coreia (1951-53), inúteis, pois, numa guerra moderna[56].
Ademais, o Brasil tem, nos últimos anos, perdido a liderança, entre os Sul-Americanos, em matéria de investimento nas Forças Armadas. Em 2005/2006, o país que mais investia nas Forças Armadas era o Equador (com 3,7% do PIB), seguido pelo Chile (3,5% do PIB), pela Colômbia (3,3% do PIB) e pela Bolívia (2,2% do PIB). O Brasil só aparecia em quinto lugar, com 1,8% do PIB a ser investido em equipamento militar, à frente apenas da Venezuela (1,7% do PIB) e da Argentina (1,1% do PIB)[57]. Ainda assim, o Brasil consegue manter a liderança militar na América do Sul, com 630 pontos[58] em 2006/2007. Bastante à frente do segundo colocado, o Peru (com 449 pontos), o Brasil tem vindo, todavia, a perder pontos, já que em 2004/2005 somava 653 pontos (23 pontos a mais que em 2006/2007). Tal como o Brasil, também a Argentina desceu de 419 para 402 pontos, a Colômbia de 314 para 303 pontos e o Equador de 254 para 244 pontos. Peru, Chile e Venezuela aumentaram os pontos de 2004/2005 para 2006/2007, sendo particularmente relevante o aumento de 34 pontos alcançado pela Venezuela, que passou de 282 para 316 pontos[59].
Com 290 000 homens, o Brasil é hoje o décimo quinto maior efectivo militar do mundo em termos absolutos, perdendo apenas para os EUA, com 1,4 milhão de homens. Em termos relativos[60], porém, o Brasil, com 1 650 homens por cada milhão de habitantes, surge atrás do Chile (o primeiro colocado, com 5 500 homens por cada milhão de habitantes), dos EUA, de Cuba, da Colômbia, da Venezuela, do México e da Argentina[61].
Por muito que custe aos dirigentes brasileiros actuais, ainda muito próximos da vivência ao tempo da ditadura militar (1964-1985) – cujo fim trouxe o total desinteresse pelas questões militares, então secundarizadas na vida pública do país, ainda hoje consideradas politicamente incorrectas – a verdade é que as elites governantes brasileiras e a sociedade civil brasileira terão de resolver consigo próprias o tabu em que se tornaram as questões militares. Pois se é certo que o poder militar é hoje apenas um dos tabuleiros das relações internacionais, não é menos certo que ele continua a ser um dos aspectos essenciais que ditam a atribuição do qualificativo de potência mundial. Se o Brasil ambiciona esse qualificativo, não poderá limitar-se a jogar nos dois outros tabuleiros e deixar isolados os EUA no primeiro de todos. Terá de apostar numa actuação tripla, porque tridimensional é hoje a sociedade internacional.
[1] Cfr. O`NEILL, Jim; Building Better Global Economic Brics, Global Economics Paper nº 66, 30 de Novembro de 2001. Também Steffano Pelle fala dos BRIC, assim como outros economistas da Goldman Sachs, no seguimento da tese lançada por O`Neill.
[2] Cfr. Idem.
[3] Para se ter uma noção das percentagens relativas de utilizadores da Internet pelo mundo, vide www.internetworldstats.com/stats4.htm#europe.
[4] Cfr. O`Neill, Jim; op. Cit..
[5] Cfr. WILSON, Dominic e PURUSHOTHAMAN, Roop; Dreaming with BRICs: The Path to 2050, Global Economics Paper nº 99, 1 de Outubro de 2003.
[6] Cfr. Idem, pp. 1.
[7] Cfr. COOPER, Andrew F., ANTKIEWICZ, Agata e SHAW, Timothy M.; Economic Size Trumps All Else? Lessons from BRICSAM, Building Ideas for Global Change, working papaer nº 12, Dezembro de 2006.
[8] Cfr. HAASS, Richard; The Age of Nonpolarity – What Will Follow U.S. Dominance?, Foreign Affairs, Maio/Junho de 2008. Vide também: HAASS, Richard; Ask the Expert: What Comes After Unipolarity?, Financial Times, Abril de 2008; na Era Não-Polar, os EUA Não Podem Mais Ser Sozinhos, entrevista de Sérgio Dávila a Richard Haass para a Folha de São Paulo de 12 de Maio de 2008.
[9] Cfr. HAASS, Richard; The Age of Nonpolarity – What Will Follow U.S. Dominance?, Foreign Affairs, Maio/Junho de 2008.
[10] Cfr. Idem, ibidem.
[11] Cfr. Idem, ibidem.
[12] Estes custos foram de facto elevado, mas nunca romperam com as finanças norte-americanas. Segundo Farred Zakaria, os EUA têm gasto, por ano, cerca de $ 125 biliões com a guerra no Iraque e no Afeganistão, o que representa apenas 1% do PIB norte-americano. Cfr. ZAKARIA, farred; O Mundo Pós-Americano, 1ª edição, Editora Gradiva, Lisboa, Setembro de 2008, pp. 163.
[13] Cfr. ZAKARIA, Fareed; The Future of American Power – How America Can Survive the Rise of the Rest, Foreign Affairs, Maio/Junho de 2008.
[14] Cfr. Idem, ibidem.
[15] Cfr. Idem.
[16] Cfr. Idem.
[17] Cfr. Idem.
[18] Cfr. Idem.
[19] Cfr. Idem.
[20] Cfr. Idem.
[21] Cfr. NYE, Joseph; The Changing Nature of World Power, Political Science Quarterly, vol. 105, nº 2, Verão de 1990, pp. 177-192.
[22] Aqui, poder é entendido como a capacidade de uma unidade política influenciar as acções das demais de forma previsível, isto é, constranger os demais a comportamentos que lhe tragam o efeito pré-determinado pretendido; ou, segundo a Doutrina Estratégica Brasileira, a expressão integrada dos meios de toda a ordem de que a unidade política dispõe, accionados pela vontade nacional, no sentido de alcançar e manter, interna e externamente, os objectivos definidos com base no interesse nacional. Para o cientista político Robert Dahl, o poder é a habilidade de constranger os outros a fazer o que estes, de outro modo, não fariam (Cfr. DAHL, Robert; Who Governs? Democracy and Power in na American City, Yale University Press, 1ª edição, Yale, 1961); o que aponta para uma conceptualização behavioralista da medição do poder, em termos de alterar comportamentos, o que implica conhecer as preferências desses sujeitos – tarefa extraordinariamente difícil (Cfr. NYE, Joseph; The Changing Nature of World Power, Political Science Quarterly, vol. 105, nº 2, Verão de 1990, pp. 177-192, pp. 178).
[23] Cfr. NYE, Joseph; Soft Power: The Means to Success in World Politics,editora Public Affairs, 1ª edição, EUA, Março de 2004.
[24] Cfr. KEOHANE, Robert e NYE, Joseph; Power and Interdependence, Library of Congress Cataloging – in Publication Data, Longman Editions, 3ª edição, Nova Iorque, 2001.
[25] Cfr. NYE, Joseph; The Changing Nature of World Power, Political Science Quarterly, vol. 105, nº 2, Verão de 1990, pp. 177-192. Vide ainda: NYE, Joseph; Soft Power: The Means to Success in World Politics,editora Public Affairs, 1ª edição, EUA, Março de 2004. NYE, Joseph; The Paradoxo of American Power, Oxford University Press, 1ª edição, EUA, Maio de 2003. NYE, Joseph; The Decline of America`s Soft Power, Foreign Affairs, Maio-Junho de 2004. GUZZINI, Stefano; Structural Power: The Limits of Neorealist Power Analysis, International Organization, Vol. 47, nº 3, Verão de 1993, pp. 443-478. DAHL, Robert; Who Governs? Democracy and Power in na American City, Yale University Press, 1ª edição, Yale, 1961. STRANGE, Susan; States and Markets, Basil Blackwell editora, Nova Iorque, 1988. KEOHANE, Robert e NYE, Joseph; Power and Interdependence, Library of Congress Cataloging – in Publication Data, Longman Editions, 3ª edição, Nova Iorque, 2001. SARFATI, Gilberto; O Terceiro Xadrez: Como as Empresas Multinacionais Negociam nas Relações Econômicas Internacionais, tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de Ciências Políticas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob orientação da Prof. Doutora Elizabeth Balbachevsky, São Paulo, 2006.
[26] Cfr. SARFATI, Gilberto; O Terceiro Xadrez: Como as Empresas Multinacionais Negociam nas Relações Econômicas Internacionais, tese de Doutoramento apresentada ao Departamento de Ciências Políticas da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo, sob orientação da Prof. Doutora Elizabeth Balbachevsky, São Paulo, 2006, documento não publicado disponível no Banco de Teses da Universidade de São Paulo, pp. 53-54.
[27] Cfr. Idem, ibidem.
[28] Cfr. CERVO, Amado Luiz; Inserção Internacional – Formação dos Conceitos Brasileiros, Editora Saraiva, 1ª edição, São Paulo, 2008, pp. 85.
[29] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; As Relações em Eixo Franco-Alemãs e as Relações em Eixo Argentino-Brasileiras – Génese dos Processos de Integração, ISCSP/UTL, 1ª edição, Lisboa, Julho de 2007.
[30] Cfr. Mário Miranda, Agência Lusa, de Lisboa, 10 de Março de 2009.
[31] O G20 reuniu-se em Washington, a 8 de Novembro de 2008, tendo o presidente Lula exigido que ao Brasil seja concedido um papel mais significativo nas questões mundiais.
[32] Cfr. CERVO, Amado Luiz; op. Cit., pp. 108.
[33] Cfr. Idem, ibidem.
[34] A 11 de Março de 2009, o director executivo do FMI, Paulo Nogueira Batista, que representa o Brasil e outros países sul-americanos no FMI, afirmou perante o presidente Lula que «o Brasil está bem, apesar dos efeitos da crise». Cfr. Mário Miranda, Agência Lusa, de Lisboa, 11 de Março de 2009.
[35] Segundo o presidente Lula, esta classe média é já maioria, representando 52% de toda a sociedade brasileira. Cfr. LULA DA SILVA; Colocar B em BRIC, O Mundo em 2009, The Economist, pp. 58.
[36] Cfr. LULA DA SILVA, Mensagem encaminhada ao Congresso Nacional, 6 de Fevereiro de 2008.
[37] Cfr. Idem.
[38] No final da Segunda Guerra Mundial, houve um curto período em que o Brasil também viveu o papel de credor internacional. Durante o conflito, o país havia acumulado um grande saldo externo, que o governo Vargas pretendia utilizar como recurso para a recuperação tecnológica da indústria. Entretanto, porém, em apenas dois anos (1946 e 1947), a política económica liberal do presidente Eurico Gaspar Dutra, de liberdade cambial e abertura do mercado nacional, gastou aquelas reservas com a importação livre de supérfluos, fazendo regredir a situação creditícia que o Brasil teve por um curto espaço de tempo. Hoje, a dívida externa volta a ser inferior às reservas nacionais, como não sucedia no país desde o fim do Segundo Grande Conflito Mundial. Mas a situação actual tem também uma forte fragilidade, em razão do crescimento da dívida interna, remunerada a juros extremamente elevados, e do papel do investimento estrangeiro, que se beneficia daqueles juros, na formação das reservas. Esta situação origina uma grande emissão de títulos federais para ''esterilizar'' o meio circulante dos Reais constantemente emitidos para fazer o câmbio. Os títulos assim emitidos a juros altos são comprados pelos aplicadores, sendo a diferença custeada pela emissão de mais títulos e pela maior necessidade de superavite primário no orçamento público. Assim, enquanto é criado património financeiro privado, a dívida pública interna vai crescendo, decorrente de uma política monetária muito restritiva, que não permite que os Reais assim gerados circulem na economia financiando a produção e aumentando o consumo. Em resumo, se as taxas de juros não fossem tão altas e a política monetária mais expansiva, a atracção do ganho fácil não traria tantos Dólares ao Brasil, mas haveria mais Reais em circulação e menos dívida pública a sufocar o Estado brasileiro. A política económica, que ajudou a gerar a grande reserva externa, é, assim, também, a responsável pela própria fragilidade. Na verdade, no passado, a confortável situação de credor internacional durou, para o Brasil, apenas dois anos. Quantos irá durar a situação actual?
[39] Em 2007, a previsão da Administração Lula era de um crescimento do PIB de 5%. No final de Agosto de 2008, esse valor baixou para 4,5%, tendo o governo actualizado as previsões, no final de Novembro de 2008, para cerca de 3,7% e 3,8%, pela voz do ministro Paulo Bento, do Planejamento.
[40] A 26 de Janeiro de 2009, o Banco Central do Brasil informou que, em 2008, os investimentos directos estrangeiros (IDE) atingiram o patamar recorde de $ 45 mil milhões, o máximo alcançado desde 1947
[41] Segundo dados do Banco Central do Brasil de Janeiro de 2009.
[42] O boom das commodities, designadamente de soja, é particularmente relevante no estado do Mato Grosso, que se transformou na vanguarda da marcha brasileira em direcção a um novo lugar na sociedade internacional global.
[43] Cfr. BRIDGES, Tyler; Brazil no Longer Longo n Potential and Short on Performance, in Miami Herald, 12 de Novembro de 2008.
[44] Cfr. The Country of the Future Finally Arrives, in secção financeira do The Guardian, 10 de Maio de 2008, pp. 41.
[45] Afirmação de Lula, in idem, ibidem.
[46] Cfr. Idem, ibidem.
[47] Cfr. EDWARDS, Sebastián; The Financial Hurricane Hits Latin America, Project Syndicate – An Association of Newspapers Around the World, in www.project-syndicate.org, 2008.
[48] Cfr. Idem, ibidem.
[49] Cfr. Idem, ibidem.
[50] Cfr. Idem, ibidem.
[51] Cfr. Carla Mendes, Agência Lusa, de Brasília, 3 de Março de 2009.
[52] Cfr. Carla Mendes, Agência Lusa, de Brasília, 24 de Março de 2009.
[53] Cfr. Idem.
[54] Segundo dados do Centro de Comunicação do Exército brasileiro em Março de 2009.
[55] Cfr. Idem.
[56] Cfr. Idem.
[57] Segundo dados da Military Power Review.
[58] A Military Power Review atribui pontos em função da quantidade e qualidade dos equipamentos e em função do tamanho do contingente militar de cada país.
[59] Segundo dados da Military Power Review.
[60] Em termos absolutos são contados os efectivos existentes em termos numéricos apenas. Em termos relativos essa contagem é feita com relação à população do país. Assim, em termos relativos conta-se o número de militares existentes por cada milhão de habitantes do país.
[61] Segundo dados do Centro de Comunicação do Exército brasileiro em Março de 2009.
América Latina: Nova Onda Eleitoral em 2009/2010
2009-2010 – ELEIÇÕES NA AMÉRICA LATINA: RADICALIZAÇÃO VERSUS ALTERAÇÃO
Se 2007 e 2008 foram anos de relativa tranquilidade eleitoral na América Latina, 2009 poderá ser bem diferente. Referendos, presidenciais e legislativas prometem reviravoltas, com a radicalização de algumas situações e a alteração de rumo de outras.
Na Bolívia, dia 25 de Janeiro de 2009, os Bolivianos foram chamados a dizer sim ou não ao referendo constitucional de Evo Morales que, além da refundação do país, veio propor a sua continuação no poder – o que será discutido em Janeiro de 2010. A votação na Bolívia seguiu-se a meses de instabilidade que opôs o governo socialista aos prefeitos das regiões ricas, que recusam o modelo de regime e a perda de privilégios. Os Bolivianos disseram sim na consulta popular, ainda que a nova Constituição permaneça no Congresso à espera que a Câmara adapte as legislações menores; o que tem sido boicotado pelo oposição. Evo Morales já disse que porá a Constituição em vigor por decreto, se esta situação se mantiver.
No dia 15 de Fevereiro, foi a vez dos Venezuelanos se pronunciarem. Depois da rejeição, em referendo, no dia 2 de Dezembro de 2008, da Constituição proposta por Chávez – basicamente por falta de empenho das bases nas regiões onde o voto foi não – em Fevereiro os Venezuelanos foram chamados a pronunciar-se se queriam Chávez no poder ad aeternum. E disseram sim. Para garantir que, desta vez, teria o apoio popular, Chávez propôs ficar na Presidência até 2019, juntamente com os governadores e alcaides que lhe são fiéis. A Assembleia Nacional, dominada pelos chavistas, aprovou a emenda constitucional e, a 15 de Fevereiro, os Venezuelanos confirmaram a recandidatura automática do líder bolivariano que seguramente ficará no poder até, pelo menos, 2019.
No dia 26 de Abril será a vez das presidenciais no Equador. Eleito em 2006 para governar até 2011, Rafael Correa fez, em 2008, a alteração constitucional que lhe permitirá ocupar o cargo por mais tempo. É para isso que se candidata agora, em 2009, como favorito; até porque o candidato da oposição, Jaime Nabot, não reúne grandes simpatias.
Na América Central, as eleições legislativas e municipais em El Salvador, no dia 18 de Janeiro, deram a vitória à antiga guerrilha da Frente Farabunde Martí de Libertação Nacional (FMLN), o que permitiu a vitória do jornalista Maurício Funes, da FMLN, a 15 de Março. O que se jogou em El Salvador foi a hegemonia da direita. A ARENA (de direita) estava no poder desde 1989. Agora, os ex-rebeldes da FMLN moderaram o discurso, ao mesmo tempo que a ARENA, desgastada, deixou de convencer a população. A vit´roia de Funes sobre um antigo chefe de polícia, concorrente pela ARENA, não foi muito difícil.
As presidenciais panamianas deverão ser ganhas, a 3 de Maio, pelo milionário proprietário de uma cadeia de supermercados Ricardo Martinelli, que lidera as sondagens. Nas Honduras (19 de Novembro), o liberal Maurício Villeda e o candidato do Partido Nacional, Porfírio Lobo, opõem-se, num desfecho ainda sem perspectivas claras.
No Uruguai, as presidenciais de 25 de Novembro deverão trazer a continuação da Frente Ampla no poder, mas desta vez com a radicalização do antigo guerrilheiro José Pepe Mujica, que deverá suceder a Tabaré Vásques – ainda que seja provável que o Partido Nacional, com 37% das intenções de voto, leve as eleições a uma segunda volta.
Bolívia, Venezuela, Equador e Uruguai, na senda do socialismo do século XXI, assistem à radicalização das posições da esquerda. O que também sucede em El Salvador. Mês, se aqui a esquerda se reforça, no México, no Chile e na Argentina a situação poderá ser a de uma total reviravolta, ao mesmo tempo que, no Brasil de Lula, o centro-esquerda recua com a derrota de Marta Suplicy, candidata do PT ao governo de São Paulo[1], enquanto na Nicarágua a polarização é crescente.
Afastado do poder há oito anos, o Partido Revolucionário Institucional (PRI) poderá voltar, em 2009, à liderança do México. O PRI é o favorito para as eleições da Câmara dos Deputados a 5 de Julho. Se vencer, a engrenagem levará seguramente o PRI a vencer as presidenciais de 2012.
Afastado da Presidência dem 2006 (onde estava desde 1929) pelo Partido da Acção Nacional (PAN) e o seu candidato Vicente Fox e, depois, Felipe Calderón, o PRI obteve a maioria no Congresso em 2006, quando alimentou o sonho de voltar ao poder. Hoje, o PAN e Claderón estão desgastados – especialmente pela onda de criminalidade violenta. Também o partido de esquerda Partido da Revolução Democrática, de Lopez Obrador enfrenta problemas internos que o têm desgastado. Neste contexto, o PRI – que Vargas Llosa apelidou de ditadura perfeita, não obstante o seu compromisso formal com o socialismo – hoje liderado por Beatriz Paredes Rangel, surge como favorito, o que poderá trazer a alteração de rumo do México em 2009.
Também no Chile Michelet Bachelet enfrenta dificuldades. Depois de governa o país por vinte anos, a Concertação Democrática – grupo de centro-esquerda formado por socialistas, democratas-cristãos, progressistas do PPD e radicais do PRSD – poderá perder as presidenciais de 11 de Dezembro, para as quais o favorito é Sebastián Piñeda. A própria Concertação Democrática ainda não escolheu o seu candidato. Os socialistas Ricardo Lagos e José Miguel Insulza eram os favoritos, mas renunciaram à nomeação. Ricardo Lagos por ter a imagem desgastada por casos de corrupção como o Transantiago; José Insulza por ter saído afectado desses escândalos. As únicas possibilidades da Concertatión são o democrata-cristão Eduardo Freire e o radical José António Gomez. Mas enauqnto que o primeiro tem poucas possibilidades, o segundo saiu da Presidência, que já ocupara, com diversos aspectos negativos: as hidroeléctricas que invadiram terras indígenas, a crise académica e o desemprego.
Na Argentina, as legislativas de 25 de Outubro constituirão um duro teste a Cristina Kirchner. Ela tem tido meses difíceis na Presidência, estando sob cerrado ataque dos camponeses, dos próprios aliados e dos peronistas.
Em todo este contexto, se 2005 e 2006 foram anos de grande turbulência eleitoral na América Latina, 2007 e 2008 foram mais calmos, prevendo-se nova agitação para 2009 e 2010.
[1] A candidata do PT às próximas presidenciais é Dilma Roussef, chefe da Casa Civil do presidente Lula. Segundo o assessor Marco Aurélio Garcia, em entrevista ao Estado de São Paulo a 22 de Março de 2009, Dilma “reúne um conjunto de condições muito favoráveis para ocupar a Presidência da República (…) tem um profundo conhecimento dos problemas brasileiros, que não decorre só da sua enorme experiência admistrativa, mas também de uma curiosidade intelectual” muito acentuada. “Dilma tem cabeça para governar, mas não se esquecerá de seguir uma regra do presidente Lula: em momento de dúvida, consulte o coração. O que é importante, porque o coração está à esquerda…”.
Se 2007 e 2008 foram anos de relativa tranquilidade eleitoral na América Latina, 2009 poderá ser bem diferente. Referendos, presidenciais e legislativas prometem reviravoltas, com a radicalização de algumas situações e a alteração de rumo de outras.
Na Bolívia, dia 25 de Janeiro de 2009, os Bolivianos foram chamados a dizer sim ou não ao referendo constitucional de Evo Morales que, além da refundação do país, veio propor a sua continuação no poder – o que será discutido em Janeiro de 2010. A votação na Bolívia seguiu-se a meses de instabilidade que opôs o governo socialista aos prefeitos das regiões ricas, que recusam o modelo de regime e a perda de privilégios. Os Bolivianos disseram sim na consulta popular, ainda que a nova Constituição permaneça no Congresso à espera que a Câmara adapte as legislações menores; o que tem sido boicotado pelo oposição. Evo Morales já disse que porá a Constituição em vigor por decreto, se esta situação se mantiver.
No dia 15 de Fevereiro, foi a vez dos Venezuelanos se pronunciarem. Depois da rejeição, em referendo, no dia 2 de Dezembro de 2008, da Constituição proposta por Chávez – basicamente por falta de empenho das bases nas regiões onde o voto foi não – em Fevereiro os Venezuelanos foram chamados a pronunciar-se se queriam Chávez no poder ad aeternum. E disseram sim. Para garantir que, desta vez, teria o apoio popular, Chávez propôs ficar na Presidência até 2019, juntamente com os governadores e alcaides que lhe são fiéis. A Assembleia Nacional, dominada pelos chavistas, aprovou a emenda constitucional e, a 15 de Fevereiro, os Venezuelanos confirmaram a recandidatura automática do líder bolivariano que seguramente ficará no poder até, pelo menos, 2019.
No dia 26 de Abril será a vez das presidenciais no Equador. Eleito em 2006 para governar até 2011, Rafael Correa fez, em 2008, a alteração constitucional que lhe permitirá ocupar o cargo por mais tempo. É para isso que se candidata agora, em 2009, como favorito; até porque o candidato da oposição, Jaime Nabot, não reúne grandes simpatias.
Na América Central, as eleições legislativas e municipais em El Salvador, no dia 18 de Janeiro, deram a vitória à antiga guerrilha da Frente Farabunde Martí de Libertação Nacional (FMLN), o que permitiu a vitória do jornalista Maurício Funes, da FMLN, a 15 de Março. O que se jogou em El Salvador foi a hegemonia da direita. A ARENA (de direita) estava no poder desde 1989. Agora, os ex-rebeldes da FMLN moderaram o discurso, ao mesmo tempo que a ARENA, desgastada, deixou de convencer a população. A vit´roia de Funes sobre um antigo chefe de polícia, concorrente pela ARENA, não foi muito difícil.
As presidenciais panamianas deverão ser ganhas, a 3 de Maio, pelo milionário proprietário de uma cadeia de supermercados Ricardo Martinelli, que lidera as sondagens. Nas Honduras (19 de Novembro), o liberal Maurício Villeda e o candidato do Partido Nacional, Porfírio Lobo, opõem-se, num desfecho ainda sem perspectivas claras.
No Uruguai, as presidenciais de 25 de Novembro deverão trazer a continuação da Frente Ampla no poder, mas desta vez com a radicalização do antigo guerrilheiro José Pepe Mujica, que deverá suceder a Tabaré Vásques – ainda que seja provável que o Partido Nacional, com 37% das intenções de voto, leve as eleições a uma segunda volta.
Bolívia, Venezuela, Equador e Uruguai, na senda do socialismo do século XXI, assistem à radicalização das posições da esquerda. O que também sucede em El Salvador. Mês, se aqui a esquerda se reforça, no México, no Chile e na Argentina a situação poderá ser a de uma total reviravolta, ao mesmo tempo que, no Brasil de Lula, o centro-esquerda recua com a derrota de Marta Suplicy, candidata do PT ao governo de São Paulo[1], enquanto na Nicarágua a polarização é crescente.
Afastado do poder há oito anos, o Partido Revolucionário Institucional (PRI) poderá voltar, em 2009, à liderança do México. O PRI é o favorito para as eleições da Câmara dos Deputados a 5 de Julho. Se vencer, a engrenagem levará seguramente o PRI a vencer as presidenciais de 2012.
Afastado da Presidência dem 2006 (onde estava desde 1929) pelo Partido da Acção Nacional (PAN) e o seu candidato Vicente Fox e, depois, Felipe Calderón, o PRI obteve a maioria no Congresso em 2006, quando alimentou o sonho de voltar ao poder. Hoje, o PAN e Claderón estão desgastados – especialmente pela onda de criminalidade violenta. Também o partido de esquerda Partido da Revolução Democrática, de Lopez Obrador enfrenta problemas internos que o têm desgastado. Neste contexto, o PRI – que Vargas Llosa apelidou de ditadura perfeita, não obstante o seu compromisso formal com o socialismo – hoje liderado por Beatriz Paredes Rangel, surge como favorito, o que poderá trazer a alteração de rumo do México em 2009.
Também no Chile Michelet Bachelet enfrenta dificuldades. Depois de governa o país por vinte anos, a Concertação Democrática – grupo de centro-esquerda formado por socialistas, democratas-cristãos, progressistas do PPD e radicais do PRSD – poderá perder as presidenciais de 11 de Dezembro, para as quais o favorito é Sebastián Piñeda. A própria Concertação Democrática ainda não escolheu o seu candidato. Os socialistas Ricardo Lagos e José Miguel Insulza eram os favoritos, mas renunciaram à nomeação. Ricardo Lagos por ter a imagem desgastada por casos de corrupção como o Transantiago; José Insulza por ter saído afectado desses escândalos. As únicas possibilidades da Concertatión são o democrata-cristão Eduardo Freire e o radical José António Gomez. Mas enauqnto que o primeiro tem poucas possibilidades, o segundo saiu da Presidência, que já ocupara, com diversos aspectos negativos: as hidroeléctricas que invadiram terras indígenas, a crise académica e o desemprego.
Na Argentina, as legislativas de 25 de Outubro constituirão um duro teste a Cristina Kirchner. Ela tem tido meses difíceis na Presidência, estando sob cerrado ataque dos camponeses, dos próprios aliados e dos peronistas.
Em todo este contexto, se 2005 e 2006 foram anos de grande turbulência eleitoral na América Latina, 2007 e 2008 foram mais calmos, prevendo-se nova agitação para 2009 e 2010.
[1] A candidata do PT às próximas presidenciais é Dilma Roussef, chefe da Casa Civil do presidente Lula. Segundo o assessor Marco Aurélio Garcia, em entrevista ao Estado de São Paulo a 22 de Março de 2009, Dilma “reúne um conjunto de condições muito favoráveis para ocupar a Presidência da República (…) tem um profundo conhecimento dos problemas brasileiros, que não decorre só da sua enorme experiência admistrativa, mas também de uma curiosidade intelectual” muito acentuada. “Dilma tem cabeça para governar, mas não se esquecerá de seguir uma regra do presidente Lula: em momento de dúvida, consulte o coração. O que é importante, porque o coração está à esquerda…”.
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