AS CIMEIRAS IBERO-AMERICANAS E A POLÍTICA EXTERNA PORTUGUESA
Teve lugar, nos dias 30 de Novembro e 1 de Dezembro de 2009, a XIX Cimeira Ibero-Americana, que reuniu vinte e dois chefes de Estado e de Governo dos países latino-americanos e da Península Ibérica – incluindo, desde 1994, Andorra[2] – no Estoril, sob o tema da Inovação e do Conhecimento, sob presidência portuguesa[3].
No âmbito da actual política externa portuguesa, este acontecimento assume grande relevância. Se desde o início da Expansão Marítima, no século XV, a política externa portuguesa esteve voltada para o Atlântico, com o 25 de Abril de 1974, a Europa assumiu-se como a prioridade dessa política. Hoje, porém, a avaliação do interesse nacional aconselha-nos a olhar novamente para o Atlântico – o que não significa desprezar a Europa. Contexto no qual ganham especial relevo a CPLP e as relações entre Portugal e a América Latina. Esta última no âmbito da Comunidade Ibero-Americana e não apenas no quadro redutor do relacionamento Portugal-Brasil. A importância das cimeiras ibero-americanas para a política externa portuguesa surge, pois, evidente, ainda que o papel do nosso país nessas cimeiras possa, e deva, ser mais potencializado.
De facto, a política externa portuguesa, com a sua continuidade histórico-geográfica e as rupturas resultantes das alterações de regime político, assume um significado e conteúdo próprios.
Tradicionalmente, a política externa portuguesa está voltada para o Atlântico. A Europa é um vector novo dessa política. O que em muito se deve aos condicionalismos histórico-geográficos que sempre condicionaram a actuação de Portugal na cena internacional: o factor castelhano, o factor marítimo e o factor europeu, que sempre condicionaram as opções feitas e determinaram os amigos e inimigos naturais.
Neste sentido, pode dizer-se que a primeira coordenada tradicional da política externa portuguesa sempre foi criar condições que permitissem a Portugal responder e equilibrar o poder crescente de Castela. Sendo que Portugal sempre teve um reduzido espaço vital e que, no século XV, era um Estado paupérrimo, com poucas terras férteis e sem rios navegáveis, a única forma de fazer frente a esses desafios, procurando espaço vital em termos geopolíticos e em termos económicos e tendo em conta a localização geográfica – com uma poderosa Castela que o impedia de voltar-se para Leste – era voltar-se para o Atlântico, lançando-se na Expansão Marítima.
Isto significa que a segunda coordenada da política externa portuguesa, consequência da primeira, corresponde, justamente, a este factor marítimo.
Em ligação a esta, como causa e consequência da mesma, surge a terceira grande coordenada da política externa de Portugal: a aliança com a Grã-Bretanha.
De facto, no final do século XVI, portugal estabeleceu um Tratado de Aliança com a Grã-Bretanha, resultado de uma convergência de interesses muito específica entre os dois Estados: a existência de um inimigo comum, Castela. Tanto Portugal, como a Grã-Bretanha tinham o objectivo de evitar que a Espanha dominasse a Península Ibérica. Portugal porque desejava manter a sua independência; a Grã-Bretanha porque deseja impedir a formação, na região, de um forte poder continental consubstanciado se houvesse um único Estado na Península Ibérica. De facto, um aspecto importante e constante da política externa britânica é ter sempre lutado contra qualquer tentativa de hegemonia na Europa continental, isto é, contra a formação de um grande poder continental que viesse contrabalançar o seu poder marítimo. Assim, a Grã-Bretanha lutou contra a Espanha no século XVI, a França de Luís XIV nos finais do século XVII e início do século seguinte, a França napoleónica do princípio do século XIX, a Alemanha do Kaiser e a Alemanha de Hitler. A política externa britânica vai sempre, por tradição, no sentido de privilegiar e favorecer os pequenos Estados ribeirinhos da Europa, com quem foi sempre celebrando alianças. Deste vector resultou o estabelecimento da aliança com Portugal. Embora os dois Estados fossem competidores em termos ultramarinos, eram contrários ao estabelecimento de grandes poderes continentais na Europa, especificamente Castela na Península Ibérica e, como Estados ligados ao comércio ultramarino, sempre privilegiaram a relação atlântica, em detrimento da opção europeia. Além do mais, Portugal sempre teve consciência de que não poderia manter o seu império colonial sem o apoio/aliança da Grã-Bretanha, senhora e dona dos mares. Daí a importância, para a política externa portuguesa, da aliança com os Britânicos.
Tudo isto significa que, sendo europeu, Portugal é também um país atlântico. Sendo pequeno, estando na periferia da Europa e, sobretudo, fazendo fronteira com apenas um país (Espanha), a formulação da política externa portuguesa sempre esteve balizada e condicionada por estes factores. E, de facto, a política externa portuguesa sempre reflectiu – e reflecte – a posição geopolítica do país: a escolha entre a opção europeia (continental) e a opção atlântica (marítima).
Isto originou variáveis permanentes nas opções da nossa política externa e nas características históricas da mesma.
Segundo Nuno Severiano Teixeira[4], essas constantes histórico-geográficas tornaram-se fundamentais e têm definido a orientação internacional de Portugal, podendo identificar-se quatro fases distintas no modo português de inserção internacional.
Assim, até ao século XIV, a política externa portuguesa[5] foi determinada pelo contexto da Península Ibérica. Uma Península Ibérica composta por cinco unidades políticas de tamanho e poder semelhantes: Castela, leão, Navarra, Aragão e Portugal.
A luta interna contra os Mouros, as limitações científicas e tecnológicas e a falta de recursos determinaram uma incapacidade estrutural de estabelecimento de relações com poderes fora da Península Ibérica[6]. Assim, no período medieval, as relações externas de Portugal desenvolveram-se no contexto ibérico num ambiente internacional de (quase) equilíbrio.
No século XV, a situação alterou-se totalmente em função do surgimento de novas condições geopolíticas e movimentos históricos que durariam até 1974. Assim, com a derrota dos Mouros e a unificação da Espanha com os Reis Católicos, a Península Ibérica transformou-se em um espaço com dois poderes de diferentes dimensões. Por outro lado, os avanços científicos e tecnológicos tornavam possível o estabelecimento de relações com poderes fora da Península Ibérica. A
situação de desequilíbrio interno na Península e este desenvolvimento tecnológico levaram Portugal, um lugar muito pobre, a procurar compensações fora da Península Ibérica. A solução encontrada foi o Atlântico.
A partir deste momento, Portugal procurou sempre equilibrar as pressões da potência continental espanhola, assumindo-se como potência marítima.
Após o fim do Império Colonial, a política externa do nosso Estado voltar-se-ia prioritariamente para a Europa, como permanece ainda hoje.
Foram destas permanências histórico-geográficas que emergiram as estratégias da política externa portuguesa. Na verdade, tudo pode ser resumido à solução sistemática do dilema com que Portugal se deparava: elaborar uma estratégia de afastamento da Europa, a partir da ameaça espenhola apercebida como tal; deixar a política externa dominar-se cada vez mais pela opção atlântica. Dilema que conduziu à emergência de duas tendências de lingo prazo da política externa portuguesa: a busca por uma relação privilegiada com o poder marítimo (primeiro a Grã-Bretanha e, depois da Segunda Guerra Mundial, os EUA e a Aliança Atlântica) e a busca pelo projecto colonial (através dos três impérios portugueses: Índia, Brasil e depois África).
Tomando como um todo, estes factores conduziram a política externa portuguesa a estabelecer relações e alianças extra-peninsulares, ainda que tendo a Espanha em conta. Num primeiro momento, estabeleceu-se o laço Lisboa-Madrid-Londres e, depois da Segunda Guerra Mundial, o eixo Lisboa-Madrid-Washington.
Ainda que Portugal não tenha ambições de tornar-se uma grande potência, a projecção de poder faz parte dos interesses nacionais, como acontece com qualquer Estado. A ideia de que um país pequeno e periférico não pode, no mundo contemporâneo, ser um país desenvolvido, não colhe. Assim, não é certo que Portugal, um país europeu, minúsculo e periférico tenha de ser um país insignificante. Mas a sua actuação no seio da UE não lhe permite, nem lhe permitirá, assumir-se como potência média, já que, na UE, Portugal é, em termos relativos, um Estado insignificante. O que Portugal tem de fazer é redimensionar o interesse nacional, tendo uma ideia própria sobre a ordem internacional e sobre o seu papel nas áreas onde se joga esse interesse nacional.
Como sabemos do senso-comum, os períodos de crise são os mais propícios para se reflectir sobre o futuro. Nesta conjuntura de crise económica e face aos desafios que se têm colocado ao país em função das profundas alterações operadas no seio da UE, talvez fosse benéfico para o nosso país regressar ao mar, no projecto novo para um Portugal Lusófono, que vai desde a participação na Aliança Atlântica ao relacionamento mais estreito com o Brasil, a África, sem esquecer a necessidade de cuidar das comunidades portuguesas espraiadas de Joanesburgo a Buenos Aires – o que aponta para a necessidade de um relacionamento próximo também com a América Latina.
É que Portugal, se por um lado é um Estado pequeno – território, população, recursos, capacidade militar – por outro tem potencial de potência média, em virtude dos laços culturais espalhados pelo mundo, com um Língua que é falada por milhares de pessoas, com uma tradição histórica das mais ricas, com uma cultura que está a par das mais antigas da Europa.
Desta forma, em termos internacionais, o futuro de Portugal joga-se em vários tabuleiros – no do Estado e da sociedade, no da Justiça, no da educação ou da produtividade. Portugal joga, ainda, nas questões da agenda global no plano económico e social e no plano político e de segurança. Tem, também, diversos desafios aos quais fazer frente. Em primeiro lugar, o desafio da União Europeia, do sucesso do projecto europeu e da centralidade do nosso país nesse projecto. O segundo desafio de interesse estratégico é a superação da crise transatlântica – aberta pela invasão norte-americana do Iraque – e a manutenção do vínculo transatlântico. O terceiro desafio diz respeito às relações de Portugal com a Espanha. Finalmente, o desafio pós-colonial, sendo, bilateralmente, do interesse nacional o reforço das relações com os países de expressão portuguesa e, multilateralmente, fazer da CPLP um instrumento diplomático credível e operacional para os seus Estados-membros.
Os relacionamentos de Portugal com as ex-colónias africanas, com o Brasil e, de modo mais abrangente, com a América Latina, assumem, neste contexto, grande importância, estando hoje a despertar o interesse das comunidades política e académica nacionais e, até, embora em menor grau, da sociedade civil portuguesa. Daí a pertinência do estudo das cimeiras ibero-americanas no quadro da política externa portuguesa. Estas cimeiras foram instituídas em 1991, em reunião em Guadalajara (México). A ideia de criar a Ibero-América nasceu de uma iniciativa da Espanha e do México, a que logo se associou Portugal, com vista a criar um fórum de consulta e de concertação política que reflectisse sobre os desafios da região e impulsionasse a cooperação, a coordenação e a solidariedade regionais promovendo o desenvolvimento dos países ibero-americanos. É evidente que, na actual sociedade internacional global, voltada prioritariamente para a luta contra o macroterrorismo, para as relações transatlânticas, bem como para as questões europeias, a América Latina acaba por assumir uma posição pouco relevante, apenas mediatizada por altura destas reuniões anuais, quando os vinte e dois chefes de Estado e de Governo da América Latina e da Península Ibérica se encontram[7].
Porém, estas cimeiras assumem um carácter de muito maior importância. A Declaração Final da VI Cimeira, realizada em 1996, no Chile[8], chegou mesmo a propor a criação de uma Comunidade Latino-Americana de Nações vinculada à Comunidade Ibero-Americana[9].
Ademais, as cimeiras resultam de um ano de intensos trabalhos, com reuniões mensais entre ministros e técnicos de todos os Estados participantes.No sentido de preparar estas cimeiras anuais foi criada, em 2003, a Secretaria Geral Ibero-Americana (Segib), sediada em Madrid e actualmente presidida pelo uruguaio Enrique Iglesias, Secretário-Geral Ibero-Americano[10].
Centralizando todos os trabalhos anuais que desembocam depois nas cimeiras, a Segib tem, porém, uma estrutura insuficiente, com pouco mais de quarenta funcionários, o que a leva a apoiar-se mais na sociedade civil do que propriamente no exercício estritamente governamental[11].
Numa tentativa de descentralização, a Segib deverá em breve abrir quatro ou cinco delegações na América Latina, enquanto a Espanha fala mesmo na extensão da Ibero-América aos países africanos que falam Português e a vizinhos como o Haiti e o Belize, que aderiram como observadores ou convidados – sendo as Filipinas, a Guiné Equatorial, Moçambique, o Belize e Timor-Leste candidatos à adesão – embora não haja consenso sobre a extensão da Ibero-América. O coordenador português para as relações ibero-americanas, Embaixador João Diogo Nunes Barata, por exemplo, considera a ideia prematura. Em primeiro lugar, porque a Ibero-América é uma comunidade ainda não consolidada e sem visibilidade; depois, porque alargando-a a países extra-região, deixaria de fazer sentido falar-se em espaço ibero-americano[12]. Apesar de a região latino-americana estar a viver um período de crescimento económico sem precedentes, com uma taxa de crescimento que rondou os 3,5% em 2009, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, o desenvolvimento económico não tem ocorrido. A vida da população não reflecte esse crescimento económico, a taxa de pobreza mantém-se elevada, a riqueza continua mal distribuída, as classes médias emergentes trazem diversas implicações sócio-político-económicas ainda não totalmente absorvidas e o sistema educacional não permite o salto para o desenvolvimento[13].
Na realidade, os problemas são muitos e urgentes e, por vezes, a retórica prevalece sobre as reais possibilidades de concretização de uma verdadeira Comunidade Ibero-Americana de Nações. Projecto ambicioso que poderá, todavia, beneficiar do discurso integracionista que, de um modo geral, os líderes latino-americanos apresentam.
O grande desafio é, sem dúvida, contrariar a imensa desigualdade sócio-económica que caracteriza toda a Ibero-América, tornando por vezes difícil, mesmo, que se fale em união ibero-americana. Se, por um lado, o que existe de comum entre os países latino-americanos não é suficiente para que se projecte uma integração regional; por outro as diferenças entre esses países e Portugal e Espanha são gritantes. É evidente que existe uma cultura ibero-americana; todavia, tudo o resto diverge, sendo muito difícil, como se pretende com as cimeiras ibero-americanas, que o espaço ibero-americano se ponha de acordo nas instâncias internacionais e regionais. Parece necessário, antes de mais, e para que esse consenso seja possível, que cada país, internamente, crie as condições próprias para o seu crescimento e desenvolvimento económicos, reduzindo a pobreza e a desigualdade. O que, de um ponto de vista pragmático, depende de políticas internas e não de políticas ibero-americanas. São necessárias reformas estruturais, na fiscalidade, na competitividade, na produtividade, no sistema político, no sistema educacional. Mas as cimeiras ibero-americanas, inaugurando uma forma de fazer política mais dirigida aos cidadãos, poderão vir a ajudar nessas reformas. Portugal tem proposto que as próximas cimeiras se dediquem a temas mais precisos e perceptíveis para as populações, menos genéricos e que, de facto, se traduzam em declarações finais inteligíveis e sintéticas.
Os temas sociais, por exemplo, o calcanhar de Aquiles da América Latina, aqueles que abrem espaço ao populismo e à demagogia, são de grande relevância, tendo a XVII Cimeira Ibero-Americana, em 2007, em Santiago do Chile, sido dedicada a este tema.
Nela, a Espanha propôs a introdução do coneceito de fundos de coesão que, na Europa Comunitária, foram importantes para que os países menos desenvolvidos pudessem acompanhar os mais ricos. Os fundos de coesão, adoptados de modo coerente com a realidade ibero-americana, poderão vir a permitir assegurar a igualdade entre as populações e as regiões dos países latino-americanos, por forma a erradicar o crescente apartheid social do continente, segundo aponta o académico espanhol Celestino del Arenal. Existindo um consenso ibero-americano sobre a conveniência do instrumento, a Cimeira de Santiago do Chile conseguiu, para já, aprovar um conceito de fundos de coesão adaptado à realidade regional, abrindo caminho para que, depois, se discutam as vias possíveis para os modelos, financiamento e gestão desses fundos.
De facto, se os objectivos da União Ibero-Americana, aquando da sua criação, eram o desenvolvimento económico e a consolidação da democracia, agora é a coesão social que surge como o grande desafio da região. E melhorar a coesão social passa por encontrar novos modelos e paradigmas de desenvolvimento, analisar as idiossincracias nacionais e adoptar melhores práticas e políticas públicas.
Em todo o caso, neste processo de cooperação ibero-americana avulta sem dúvida o papel central desempenhado pela Espanha, que tem tomado, em grande medida, a dianteira do processo, com uma atitude mais activa que a que Portugal tem demonstrado. Situação que, na realidade, sucede nas próprias Cimeiras Ibero-Americanas e respectiva organização. A realidade, de facto, é que cerca de 60% do orçamento da Secretaria das Cimeiras é suportado por Espanha, o que a transforma, em certo sentido, numa espécie de ferramenta da política externa espanhola para a América Latina, onde Portugal perde espaço constantemente, apesar de constituir o terceiro contribuinte líquido da Segib, precedido apenas pelo México[14].
É evidente que a espanholização do espaço ibero-americano – expressão que Madrid recusa, todavia – ocorre perante o facto consumado de Portugal privilegiar a relação com o Brasil; o que não deveria ocorrer, porque a Ibero-América se afirma como a única arena de diálogo entre Portugal e os países latino-americanos que não o Brasil, tendo a seu favor o facto de, junto de muitos desses países, gozar de um estatuto de neutralidade de que Madrid não se pode gabar[15].
A verdade é que esta situação remonta ao próprio relacionamento que as nações ibéricas construíram, de início, com as Comunidades Europeias, especialmente aquando da adesão de ambas, em 1986[16]. É um facto que a adesão das nações ibéricas às Comunidades gerou expectativas múltiplas quanto ao estreitamento das relações entre a América Latina e a Europa e à intensificação do diálogo político entre ambas as regiões. Neste processo, Portugal teve um papel bastante discreto. As prioridades da sua política externa fora da Europa eram a África de expressão portuguesa e os Estados Unidos e a única prioridade na América Latina era o Brasil, percepcionado como líder natural das nações latino-americanas, com poder suficiente para gerar o diálogo directo com as Comunidades, sem a necessidade de intermediários[17].
A Espanha, por seu lado, tomou de forma organizada e afirmativa a questão das relações com a América Latina. A sua intenção era desenvolver um diálogo político com os países que outrora haviam sido suas colónias e, evidentemente, desempenhar o papel de ligação entre a América Latina e a Europa Comunitária. Vale lembrar que, tradicionalmente, a América Latina constitui uma prioridade da política externa espanhola havendo inclusive, na Constituição de 1978, uma referência à Comunidade Histórica quando se aborda o papel do Rei nas relações internacionais[18].
Evidentemente, a maioria dos Estados-membros das Comunidades opôs-se à ideia de a Espanha adoptar um papel de protagonista neste domínio; ao mesmo tempo que, do lado latino-americano, alguns países consideraram inválida tal atitude paternalista e retórica, exprimindo a não necessidade da Espanha como tutor para a América Latina fazer valer os seus interesses. Assim se desvaneceu a ideia da ligação e o governo do PSOE pôs a Espanha a funcionar como factor activante das relações CEE-América Latina[19].
Terceiro contribuinte do orçamento da Segib, coube a Portugal a tarefa de organizar a cimeira de 2009, sob o tema A Inovação e o Conhecimento. Assim, a 2 de Fevereiro de 2009, realizou-se, no Palácio das Necessidades, a cerimónia de transmissão da Secretaria Pro-Tempore Ibero-Americana de El Salvador (organizador da cimeira de 2008) para Portugal, com a presença dos ministros dos Negócios Estrangeiros de El Salvador e de Portugal, Marisol Argueta e Luís Amado, respectivamente, bem como do vice-ministro dos Estrangeiros da Argentina, Victorio Taccetti – que terá a presidência da cimeira em 2010. Para além, naturalmente, do Secretário-Geral Ibero-Americano, Enrique Iglesias[20].
Na realidade, num momento de crise global como o que hoje se vive, e que seguramente estender-se-á a parte deste ano, a inovação tecnológica e a pesquisa científica desempenham um papel de grande relevância, até mesmo como possibilidade de solução para a referida crise.
O desafio dos países latino-americanos, de Portugal e da Espanha é o de aumentar a respectiva cooperação nesses campos; tarefa para a qual a XIX Cimeira teve um papel importante, através da apresentação de projectos concretos.
Deve salientar-se que a cooperação ibero-americana no âmbito do desenvolvimento e difusão do conhecimento e da tecnologia surge fundamental na transmissão mútua das visões sobre as Relações Internacionais como ramo autónomo do Saber no seio das Ciências Sociais e, aqui, surge particularmente relevante a cooperação que Portugal, a Espanha e a própria União Europeia estabelecem com a América Latina – sendo de esperar que a Presidência Espanhola da Conselho da EU venha dar um grande impulso à constituição do Espaço Ibero-Americano do Ensino Superior – já que existe, efectivamente, uma visão latino-americana das relações internacionais, diferente daquela a que estamos habituamos, que condiciona a criação prática, bem como a análise teórica, desta subregião americana.
Existe, de facto, em fase de grande estruturação nas últimas décadas uma visão latino-americana das relações internacionais, partindo da construção de paradigmas sobre o desenvolvimento, já que a preocupação principal em torno da qual giram as abordagens internacionalistas latino-americanas é o subdesenvolvimento a que as suas sociedades estão sujeitas.
Na realidade, como assinala o Professor Doutor Amado Luiz Cervo, da Escola de Brasília, “…as políticas exteriores dos países do Sul – pelo menos é o caso do Brasil – centralizam suas preocupações em torno dos problemas do desenvolvimento. O mesmo não ocorre com os países avançados do Norte. É possível perceber dois esquemas de relações internacionais contemporâneas. Entre países avançados, as relações igualitárias deixam transparecer um caráter lúdico. Zelar pela paz ou preparar-se para a guerra, compor ou desfazer alianças, construir a potência e o prestígio, difundir ideologias e valores situam-se do lado do divertimento. Entre países desiguais, para aqueles que são atrasados, as relações internacionais deixam transparecer o caráter existencial. Delas dependem, em boa medida, os ritmos de desenvolvimento, as oportunidades de melhoria das condições sociais, o cotidiano. (…) Os nortistas continuam admitindo que as teorias do desenvolvimento, desde Keynes, integram a ciência econômica, não a ciência política. Como se a pobreza, a dominação e a dependência, a cooperação e a exploração não fizessem parte do mundo real das relações internacionais”[21].
De facto, a dimensão essencial das relações internacionais dos países subdesenvolvidos é o desenvolvimento económico. Para além de Cervo, Tomassini[22] e Bernal-Meza[23] são exemplos claros da defesa desta postura, para quem o estudo das relações internacionais dos países subdesenvolvidos deve passar pela análise das estratégias de desenvolvimento e inserção internacional, assim como da política externa, de modo que se estabeleça a relação entre os fundamentos da política, a sua prática específica e o desenvolvimento económico[24]. É neste sentido que o ponto de partida para a criação, desenvolvimento e consolidação de um pensamento especificamente latino-americano de relações internacionais é a crítica à teoria clássica e neoclássica da especialização no comércio internacional (a divisão internacional do trabalho) que sustenta o modelo centro-perferia[25], que constitui a origem do pensamento estruturalista latino-americano, sendo certo que o pensamento latino-americano das relações internacionais ultrapassa as explicações monocausais e tem início quando o fim da Segunda Guerra Mundial converte o objectivo do desenvolvimento em assunto internacional[26].
À parte esta realidade, é bom analisar os resultados alcançados com a Cimeira Ibero-Americana de 2009, depois de as reuniões preliminares desta terem tido por objectivo criar a inovação concorrencial, isto é, uma investigação tecnológica concorrencial.
Não obstante ter alcançado resultados efectivos em matéria de Inovação e Conhecimento, a verdade é que a Presidência portuguesa não conseguiu impor a sua agenda, tendo a XIX Cimeira Ibero-Americana sido dominada pela crise hondurenha, pelas alterações climáticas, pela extradição de Posada Carrilles e pela crise financeira e económica mundial – os temas quentes da agenda latino-americana. Mesmo assim, foi de facto em relação à Inovação e Conhecimento que saíram os principais acordos entre os Vinte e Dois.
Desde logo, foi assinada a Declaração de Lisboa, na qual os países ibero-americanos acordaram incentivar as matérias “mediante a formulação e implementação de políticas públicas de médio e longo prazos, sejam de natureza fiscal, financeira ou de crédito, dirigidas aos agentes da inovação e do conhecimento (empresas, principalmente as pequenas e médias, as universidades, centros de I&D, governos, sectores sociais) e à população em geral, e promovendo a sua interacção, estimulando, consequentemente, a implementação gradual de uma cultura da inovação”[27].
Na verdade, pode bem ser a partir da «Inovação e Conhecimento» que as sociedades ibero-americanas consigam dar um novo impulso à recuperação económica e ao combate ao desemprego, à exclusão social e à pobreza, sendo certo que, para tanto, compete aos governos nacionais a definição de políticas públicas nesse sentido, e não à Comunidade Ibero-Americana.
A XIX Cimeira Ibero-Americana veio, assim, dar um novo impulso para a criação de uma Comunidade Latino-Americana de Nações vinculada à Comunidade Ibero-Americana, no sentido de efectivar a Ibero-América como um fórum de consulta e de concertação política que reflicta sobre os desafios da região e impulsione a cooperação, a coordenação e a solidariedade regionais, promovendo o desenvolvimento dos países ibero-americanos. É necessário capitalizar os esforços das Cimeiras Ibero-Americanas de modo a que os seus resultados se afirmem concretos e capazes de atacar os problemas da região.
[1] Doutora em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília. Professora Auxiliar no ISCSP/UTL.
[2] Os Estados participantes destas Cimeiras desde 1991 são Argentina, Bolívia, Colômbia, Costa Rica, Cuba, Chile, Equador, El Salvador, Guatemala, Honduras, México, Nicarágua, Panamá, Paraguai, República Dominicana, Uruguai, Venezuela, Portugal e Espanha. Andorra aderiu em 1994.
[3] Precisamente no ano, eleito pela União Europeia (EU), Ano da Criatividade e da Inovação.
[4] Cfr. SEVERIANO TEIXEIRA, Nuno; Continuity and Change: The Foreign Policy of Portuguese Democracy, Instituto Português de Relações Internacionais – IPRI, Universidade Nova de Lisboa, Working Paper nº 1, pp. 4.
[5] Utiliza-se aqui a expressão política externa como ferramenta de simplificação, uma vez que a existência de política externa antes do Tratado de Westfália (1648) é muito duvidosa, em função da entidade Estado ter sido reconhecida como tal apenas nesse tratado e a política externa, em si, ser apanágio do Estado.
[6] Cfr. SEVERIANO TEIXEIRA, Nuno; op. Cit., pp. 4.
[7] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; A XVII Cimeira Ibero-Americana e a Coesão Social, in Reflexões Brasilianistas e Sul-Americanistas, http://www.brasil-americadosul.blogspot.com/search?updated-min=2007-01-01TOO%3AOO, consultado a 4 de Novembro de 2009.
[8] Até hoje, realizaram-se dezoito cimeiras, cada qual com a sua presidência, a saber: 1991 – México; 1992 Espanha; 1993 – Brasil; 1994 – Colômbia; 1995 – Argentina; 1996 – Chile; 1997 – Venezuela; 1998 – Portugal; 1999 – Cuba; 2000 – Panamá; 2001 – Peru; 2002 – República Dominicana; 2003 – Bolívia; 2004 – Costa Rica; 2005 – Espanha; 2006 – Uruguai; 2007 – Chile; 2008 – El Salvador. A de 2009 é presidida por Portugal e a de 2010 sê-lo-á pela Argentina.
[9] Cfr. http://www.iberchile.pt consultado a 18 de Novembro de 2009.
[10] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; A XVII Cimeira Ibero-Americana e a Coesão Social, in Rflexões Brasilianistas e Sulamericanistas, in http://www.brasil-americadosul.blogspot.com/search?updated-min=2007-01-01TOO%3AOO consultado a 4 de Novembro de 2009.
[11] Cfr. http://www.segib.org consultado a 13 de Novembro de 2009.
[12] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; A XVII Cimeira Ibero-Americana e a Coesão Social, in Rflexões Brasilianistas e Sulamericanistas, in http://www.brasil-americadosul.blogspot.com/search?updated-min=2007-01-01TOO%3AOO consultado a 4 de Novembro de 2009.
[13] Dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).
[14] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; A XVII Cimeira Ibero-Americana e a Coesão Social, in Reflexões Brasilianistas e Sulamericanistas, in http://www.brasil-americadosul.blogspot.com/search?updated-min=2007-01-01TOO%3AOO consultado a 4 de Novembro de 2009.
[15] Cfr. Idem, consultado a 4 de Novembro de 2009.
[16] PATRÍCIO, Raquel; As Relações Entre a União Europeia e a América Latina – O Mercosul Neste Enquadramento, in MARTINS, Estevão Chaves de Rezende e SARAIVA, Miriam (orgs.); Brasil-União Europeia-América do Sul: Anos 2010-2010, Fundação Konrad Adenauer, Universidade de Brasília e CNPq, 1ª edição, Rio de Janeiro, 2009, pp. 62 à 75, pp. 67.
[17] Cfr. Idem, ibidem.
[18] Cfr. TOVIAS, Alfred; Foreign Economic Relations of the EC: The Impact f Spain and Portugal, Lynne Rienner Publisher, Boulder & London, Londres, 1990, pp. 60 à 71.
[19] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; op. Cit., pp. 68.
[20] Cfr. http://www.cimeiraiberoamericana.gov.pt consultado a 16 de Novembro de 2009.
[21] Cfr. CERVO, Amado Luiz (org.); O Desafio Internacional – A Política Exterior do Brasil de 1930 a Nossos Dias, Colecção Relações Internacionais, Editora Universidade de Brasília, 1ª edição, Brasília DF, 1994, pp.15.
[22] Vide TOMASSINI, Luciano; Desarrollo Económico e Inerción Externa en América Latina: Um Proyecto Elusivo”, in Estudios Internacionales, Santiago, ano XXV, nº 97, Janeiro-Março de 1992, pp. 73-116.
[23] Vide BERNAL-MEZA, Raúl; América Latina en la Economia Política Mundial, Grupo Editor Latinoamericano, 1ª edição, Buenos Aires, 1994. BERNAL-MEZA, Raúl; Sistema Mundial y MERCOSUR. Globalización, egionalismo Políticas Exteriores Comparadas, Nuevohacer/Grupo Editor Latinoamericano e Universidad Nacional de la Provincia e Bueos Aires, 1ª edição, Buenos Aires, 2000.
[24] Cfr. BERNAL-MEZA, Raúl; América Latina en el Mundo – El pensamiento Latinoamericano y la Teoría de Relaciones Internacionales, Nuevohacer/Grupo Editor Latinoamericano, 1ª edição, Buenos Aires, 2005, pp. 66.
[25] Modelo que divide os Estados da sociedade internacional em dois grupos opostos: os desenvolvidos, do centro, e os subdesenvolvidos, da periferia.
[26] Cfr. BERNAL-MEZA, Raúl; op.cit., pp.67.
[27] Cfr. Declaração de Lisboa, XIX Cimeira Ibero-Americana, Lisboa, 1 de Dezembro de 2009.
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