Friday, September 25, 2009

O Brasil e o «Caso Zelaya»

O BRASIL E O «CASO ZELAYA»

A crise está instalada no Brasil, entre oposicionistas e governistas em torno do «caso Zelaya». À versão oficial do «golpe de Estado», opõem-se os defensores da sucessão presidencial em resultado de procedimentos constitucionais.
O então presidente hondurenho, Manuel Zelaya, tentou aplicar, contra uma cláusula pétrea da Constituição, o modelo chavista de permanência no poder, viabilizada por referendo popular. Na época (Junho de 2009), já estava em curso a campanha para a sucessão presidencial, em que o candidato de Zelaya tinha pouquíssimas hipóteses de vencer. Este «golpe referendário» foi condenado pelo Congresso hondurenho e rejeitado pelo Supremo Tribunal. Facto é que, tendo a via bolivariana do golpe publicitário de Zelaya sido condenado pelo Congresso e rejeitada pelo Supremo Tribunal, mesmo depois de o referendo ter sido declarado ilegal, Zelaya deu ordens para que o mesmo fosse realizado e mobilizou para tanto o Exército. Violando a Constituição e a Justiça hondurenhas. Segundo as regras dessa mesma Constituição, Zelaya foi deposto e, no seu lugar, assumiu quem, segundo a hierarquia constitucional hondurenha, é o sucessor legítimo, Roberto Micheletti, presidente do Congresso, já que o vice-presidente havia renunciado para concorrer às eleições de 29 de Novembro. Zelaya foi assim expulso do palácio presidencial e do país, a 28 de Junho. Refugiou-se na Nicarágua.
Alegadamente criminoso, corrupto e ligado aos cartéis da droga, Zelaya, apoiado pelo presidente Hugo Chávez, regressou às Honduras e instalou-se na Embaixada brasileira em Tegucigalpa – onde permanece desde 21 de Setembro – com o apoio expresso do presidente Lula e do Itamaraty, que, seguindo Chávez, adoptaram o partido de Zelaya.
Também seguindo Chávez, Lula e o Itamaraty apelidam o sucedido nas Honduras de «golpe militar», enquanto a oposição refere ter-se tratado de um procedimento «normal» ao abrigo das leis hondurenhas. A oposição brasileira critica a posição da diplomacia brasileira, acusando Zelaya de utilizar as instalações da Embaixada brasileira na capital hondurenha para fins políticos. A verdade é que o número de pessoas abrigadas na Embaixada, que começou por cem e chegou aos trezentos, já foi substancialmente reduzido, não passando hoje (25 de Setembro) das sessenta pessoas. O governo brasileiro defende-se ainda dizendo que, mais do preocupar-se com o lugar onde se encontra Zelaya, a comunidade política brasileira deveria preocupar-se com o facto de haver, no poder de um país latino-americano, um presidente «golpista», criticando ainda a obsessão golpista do Império Globo, que ataca a posição do governo brasileiro por acolher e defender a democracia e a vida de Zelaya.
Também a comunidade brasileira nas Honduras, de cerca de trezentas e cinquenta pessoas, apoia o novo presidente e rechaça a medida do governo brasileiro, receando inclusive represálias e ataques de zelayaistas, patrocinados pelo presidente venezuelano. A comunidade lançou mesmo um abaixo-assinado de repúdio às medidas brasileiras, que apelida de «abuso de poder sem precedentes na política externa do Brasil», segundo documento que começou a circular na Internet nas Honduras a 24 de Setembro.
Segundo o governo brasileiro, a Embaixada do Brasil em Tegucigalpa «abriga» o presidente deposto das Honduras, que designa de hóspede, tendo já afirmado que o fará pelo tempo que for necessário. Entretanto, a Embaixada foi sitiada pelos apoiantes de Micheletti, ainda que o fornecimento de água, luz e alimentos esteja sendo assegurado.
Ainda de acordo com o governo brasileiro, os objectivos «golpistas» foram favorecidos pela inactividade da diplomacia Obama, conduzida pela secretária de Estado Hillary Clinton – que se tem apoiado em personagens duvidosos da Administração anterior, como Hugo Llorens e Thomas Shannon.
Facto é que o actual presidente Micheletti ainda não foi reconhecido por qualquer Estado – o Brasil, a ONU, a OEA e toda a comunidade internacional, incluindo os Estados Unidos, continuam a reconhecer Zelaya como presidente constitucional – e a iniciativa de Barack Obama de sugerir que o presidente costarriquenho Óscar Árias mediasse negociações entre Micheletti e Zelaya – através do Acordo de San José, que previa o regresso de Zelaya ao poder, num governo de conciliação nacional, com amnistia a todos os envolvidos na crise – fracassou, além de ter sido uma atitude que marginalizou a OEA.
Agora, o governo brasileiro reforça a sua posição, forçando um compromisso da Administração Obama com a democracia, e mobilizando a OEA e, sobretudo, a ONU, que a 24 de Setembro tomou as primeiras medidas concretas. Ainda que o debate do caso no Conselho de Segurança das Nações Unidas seja esperado para hoje, o secretário-geral da ONU, Ban Ki-Moon, suspendeu temporariamente a assistência técnica actualmente dada pela Organização ao Supremo Tribunal Eleitoral das Honduras, por considerar não haver condições para que neste momento se proceda a eleições credíveis e capazes de devolver a paz e a estabilidade no país. Ban Ki-Moon demonstrou ainda preocupação com as denúncias de violações dos direitos humanos nas Honduras, conclamando os michelettistas a respeitar os tratados e convenções internacionais, designadamente a inviolabilidade da missão diplomática do Brasil. O secretário-geral da ONU uniu-se ainda à OEA e aos líderes regionais em busca de um acordo que seja alcançado através do diálogo entre os actores políticos envolvidos, sendo certo que o primeiro contacto entre michelettistas e zelayaistas teve lugar ao final da manhã de hoje (hora de Lisboa), com Zelaya a declarar não reconhecer o governo interino até às eleições de Novembro.
A crise no Brasil está instalada. O que na verdade tem criado confusão é a acto, que a comunidade internacional tem considerado abusivo, de expulsar Zelaya do país pela força. Nisto reside a ilegitimidade do actual governo, sendo que, do outro ponto de vista, foi Zelaya quem violou a Constituição e, em abono da verdade, quando deixou as Honduras já não era presidente da República. Em torno destas posições inconciliáveis giram as controvérsias entre oposicionistas e governistas brasileiros, não sendo displicente a ideia de que, não obstante se poder atribuir algum ponto de razão a cada parte, não parece pertinente desconsiderar a postura da comunidade internacional e, especialmente, das Nações Unidas, com a qual se acomoda o governo e a diplomacia brasileiros. Mas a questão fundamental aqui, agora, e principal preocupação do Brasil e da comunidade internacional, é a solução da crise hondurenha, ou através do regresso imediato de Zelaya ao cargo de que foi deposto, ou, o que é mais provável, através do adiantamento do processo eleitoral de Novembro. Ainda relevante, é assinalar a consonância da posição de Lula e de Obama em torno da defesa da democracia na América Latina, não permitindo os golpes que caracterizaram a região em outros tempos.

2 comments:

raquelpatricio said...

Obrigada pelo comentário. Boa análise!

Unknown said...

Cara Raquel,
Boa tua análise, porém me pareceu muito condescendente com o golpe e muito cruel com Zelaya. Fico me perguntando porque toda a imprensa justifica o golpe e critica Zelaya quando a diplomacia (EUA, UE, OEA, ONU) condena o golpe.
Se fosse tão justificável o golpe, não haveria essa unanimidade condenando. Há também, pela imprensa, aquela tática nazista de repetir uma mentira mil vezes até ela virar verdade, como é o caso da "reeleição". Teu texto não menciona esse motivo, e até comenta que o candidato de Zelaya ia mal nas pesquisas, mas o que a gente lê na imprensa foi que ele foi retirado por querer se perpetuar no poder, o que os fatos contradizem. No mais foi uma das melhores análises que vi.