Passado o feriado comemorativo do 25 de Abril, comemoremos a data, não do ponto de vista do significado que a mesma tem para Portugal internamente, mas do ponto de vista das relações Brasil-Portugal. Porque foi no dia 25 de Abril de 1820 que a Corte Portuguesa embarcou para, deixando o Brasil nas mãos de D. Pedro, regressar a Lisboa. Precipitando os acontecimentos. E façamo-lo com um excelente trabalho da aluna Inês Narciso, do 4º ano da Licenciatura em Relações Internacionais do ISCSP/UTL. Trabalho que ora publicamos integralmente.
"Foi na manhã do dia 27 de Novembro de 1807 que a família real portuguesa e todo o aparelho administrativo e burocrático português, bem como o Tesouro, rumaram ao Brasil naquilo que representa uma das maiores epopeias reais de todos os tempos, única e original.
Face à ameaça napoleónica que se aproximava da, ainda, capital do Reino vivia-se em Lisboa um frenesim que resultava do medo e da ansiedade que antecipavam segundo uns a fuga, segundo outros uma viagem estrategicamente planeada, ou pelo menos já defendida por ilustres portugueses como foi o caso do Padre António Vieira, mas também de uma figura incontornável deste período, Rodrigo de Sousa Coutinho que “condicionava a salvação da monarquia à ascensão do Brasil a uma posição central no Império lusitano.”[1].
Apesar do alto grau de interesse que configuram quer os meandros diplomáticos anteriores às invasões napoleónicas, quer mesmo as invasões e as suas consequências no pedaço europeu do Reino de Portugal, este trabalho focar-se-á nas consequências que esta viagem da coroa trouxe para o Brasil colonial, partindo da premissa da originalidade deste acontecimento: a transferência inter-oceânica de um Estado para preservar um regime e uma dinastia.
Em Janeiro de 1808 o Estado Português instala-se no Brasil, isto é, todo o aparelho, instituições, funcionários, arquivos, mas também, práticas e costumes inerentes, enfim, o conjunto de instrumentos e conhecimentos que permitissem “sustentar e dar continuidade à dinastia e aos negócios do governo de Portugal”[2].
Depois de 54 dias no mar, é no dia 28 de Janeiro que a embarcação que transportava o rei D. João VI e os seus filhos atraca em Salvador da Bahia, sendo que um mês depois chegam finalmente ao Rio de Janeiro.
É aqui que se inicia o que Boris Fausto apelida de reviravolta nas relações entre a metrópole e a colónia”[3]. Se bem que esta mudança já se vinha manifestando através por exemplo, da abdicação das residências de altos funcionários da Coroa em favor do Rei e de elementos da Corte.
No entanto, e como foi referido, as alterações mais profundas começam aquando da chegada da família real ao Brasil. Um exemplo que parece agora pouco importante como o facto de se ter levado para o Brasil uma máquina impressora foi um facto extremamente relevante que exemplifica o atraso que se vivia na colónia.
Importa, antes de mais, caracterizar o Brasil antes do momento da chegada da coroa.
Ao nível da sua geografia o Brasil era apenas um pedaço de terra ao longo do litoral do continente sul-americano, isto porque era aí que incidiam as principais actividades, mas também as atenções do colono. Aliás, o interior do Brasil estava pouco ou mal representado nos mapas.
Assim, a ida da Corte para o Brasil foi um marco no que concerne a (re)descoberta geográfica do território.
Administrativamente este território era uma das colónias portuguesas no “Novo Mundo” que dependia da coroa, representada localmente por vice-reis e governadores, sendo que à época da chegada da corte era Dom Marcos de Noronha e Brito, Conde do Arcos, o Vice-Rei do Brasil. Importando ainda ressalvar o papel das Câmaras Municipais, com sede nas vilas e nas cidades.
A cidade de Rio de Janeiro era desde 1763 centro administrativo da colónia, tinha um porto dos mais bem localizados em relação às rotas marítimas do império. Economicamente o Rio vivia em plena dinâmica comercial. De facto, 1808 foi um ano de viragem no campo económico e comercial da América portuguesa. No dia 18 de Janeiro de 1808 D. João VI decreta através de carta régia a abertura dos portos do Brasil às “nações amigas”, o mesmo será dizer à Inglaterra. Esta realidade era nova uma vez que até então era proibido através da exclusividade de acesso aos navios portugueses. De facto este acontecimento inaugura uma nova dinâmica interna que tem repercussões um pouco por toda a colónia sobretudo no Rio de Janeiro e Minas Gerais já que permitiu aos produtores de bens destinados à exportação, principalmente de açúcar e algodão, libertarem-se do monopólio comercial da metrópole e das restrições impostas pelo sistema comercial colonial.
Por outro lado a carta régia vai levar a protestos dos comerciantes do Rio de Janeiro de Lisboa que levam à limitação do comércio livre a alguns portos do Brasil, por exemplo. No entanto, e ainda assim, vai assistir-se a uma escalada inglesa pelo controlo do mercado colonial brasileiro, mas não só. Com efeito “o Rio de Janeiro tornou-se o ponto de entrada de produtos manufacturados ingleses, com destino não só ao Brasil como ao Rio da Prata e à Costa do Pacífico”[4].
Ainda ao nível económico o rei vai revogar os decretos que proibiam a instalação de manufacturas na colónia; isentar de tributos a importação de matérias-primas destinadas à indústria; oferecer subsídios para as indústrias de lã, seda e ferro; e encorajar a invenção e a introdução de novas máquinas[5].
Como se mencionou antes a principal parceria económica vai verificar-se com a Inglaterra e pode caracterizar-se da seguinte forma: “a generalidade dos produtos ingleses tinha entrada nos portos brasileiros mediante o pagamento de 24% de direitos, em navios britânicos, ou de 16% em navios luso-brasileiros.”[6].
Assumida a aliança pela Inglaterra aquando da fuga D. João VI vai, no espaço de três anos, conhecer a sua assumpção plena através da assinatura de Tratados Bilaterais com a Inglaterra. Em 1808, 1809 e 1810 vão sendo assinados Tratados de Aliança e Amizade que versavam a princípio, quase que exclusivamente, sobre questões de âmbito comercial e de acesso aos portos que garantiam o favorecimento da Inglaterra e, na prática a extensão da cláusula da nação mais favorecida ao Brasil que era como que uma extensão do sistema colonial inglês e da sua lógica económica, impondo, ao mesmo tempo, uma restrição no que concerne o tráfico de escravos na medida em que Portugal aceitava obrigar-se a limitá-lo aos territórios sob seu domínio e prometia, ainda que vagamente, tomar medidas para restringi-lo. No entanto os tratados vão sendo renegociados verificando-se que é a Inglaterra que impõe as suas condições, o que pode constatar-se, por exemplo no artigo 9º do Tratado da aliança em que “quanto à Inquisição, consagrava-se o compromisso de jamais a instalar no Brasil”[7].
Estes tratados vinham a confirmar a decadência das estruturas do antigo sistema colonial por duas ordens de razões. Primeiro, enquanto factores externos concorriam “a crítica ao sistema exclusivo do mercantilismo do Antigo Regime e ao escravismo”; “o advento das doutrinas económicas liberais e da revolução industrial” e “das ideias igualitárias do Estado democrático-burguês”. De seguida, enquanto factores internos observa-se, sobretudo, “o declínio da economia açucareira e mineira”[8].
Esta situação era, portanto, alimentada pela Inglaterra que exigia desta forma compensações pelos “serviços prestados por ocasião da transferência da Corte e pelos que ainda prestaria, ao comprometer-se a garantir a integridade e a independência de Portugal”[9]. A aliança luso-britânica assemelhava-se mais a um plano inglês com vista por um lado ao controlo de Portugal por Inglaterra que o tornava quase que um protectorado inglês, e por outro à situação privilegiada relativamente ao mercado brasileiro, em particular, e a todo o Império português, em geral.
Voltando à realidade em processo de mudança no Rio de Janeiro pode dizer-se que esta cidade não oferecia condições mínimas de salubridade ou higiene, as estradas sempre enlameadas e um cenário pouco europeu tornava este exílio forçado numa mudança que ia para além da mudança de endereço.
Para além da mudança de hábitos da coroa, a própria cidade, mas também o Vice-Reino em geral, sofreu alterações em várias dimensões. De facto a vinda da corte e o crescimento da cidade levaram a um aumento rápido da população de escravos[10].
Os negros, escravos e livres, constituíam cerca de três quartos da população, no entanto, e apesar de serem a maioria os negros sofriam com a intransigência da polícia que proibia as suas manifestações culturais como a capoeira ou mesmo práticas religiosas, por exemplo.
De facto os códigos socais vigentes eram diferenciados consoante o grupo. A sociedade estava dividida e organizada em nobres, funcionários da coroa, brancos pobres, negros livres e escravos. A travessia do Atlântico não alterou esta lógica social apenas introduzindo uma nova categoria: a do “trabalhador assalariado branco”[11], que derivava das novas exigências a que a cidade tinha que responder, nomeadamente ao nível dos serviços, o que gerou investimento e criação de novas oportunidades.
A população urbana vai aumentar consideravelmente de 50.000 para cerca de 100.000 habitantes muito fruto, não só do referido aumento da população negra, mas também de imigrantes portugueses, espanhóis, italianos e, em menor número, franceses e ingleses. O Brasil transformava-se no refúgio dos nacionais da Europa Napoleónica que fugiam à fúria do Imperador Bonaparte.
Assim evolui de uma sociedade simples que se podia dividir em apenas dois grandes grupos (livres e escravos) para uma sociedade que, apesar de rígida, se ia complexificando.
Outra dimensão da mudança no Rio de Janeiro, mas que acabou por se reflectir mais cedo ou mais tarde noutras cidades, foi a vida cultural. A partir do início do século XIX o Rio de Janeiro vai conhecer um maior e melhor acesso a livros com a proliferação de bibliotecas, de que se salienta a Biblioteca Real, incrementando-se a relativa circulação de ideias, para a qual contribuiu o aparecimento da imprensa, bem como um dinamismo no teatro, assistia-se ainda ao nascimento de Academias Literárias e Científicas.
A educação era outro dos sectores em mudança instalando-se escolas régias, colégios e universidades.
Não se julgue, porém, que o absolutismo joanino não atravessara o Atlântico, pelo contrário, a ida da corte para o Brasil faz com que se sinta com mais veemência o absolutismo que, apesar de tudo, era mais vincado na Metrópole. Ao mesmo tempo nota-se a preferência que é dada aos portugueses, nas palavras de Boris Fausto “Ao transferir-se para o Brasil a Coroa não deixou de ser portuguesa e favorecer os interesses portugueses no Brasil”[12].
No entanto é de frisar que haviam já ocorrido no Vice-Reino alguns movimentos de insurgência de que foram exemplos a Inconfidência Mineira (1789) e a Conjuração de Alfaiates (1798). Estes eram reflexo dos ventos de mudança trazidos, quer do Norte pelos recém formados Estados Unidos da América, quer da Europa onde o iluminismo e as revoluções napoleónicas punham em causa todo um sistema de dominação e equilíbrio. Não deixa de ser curioso que, podendo a estes movimentos ser atribuída uma feição anticolonial ou pró-independentista estes brotavam não só da sociedade colonial nativa, mas reuniam também portugueses residentes, ou nascidos, no Brasil.
Também para estas expressões, acima de tudo regionais, a travessia trouxe consequências, nomeadamente pela ascensão da situação do Brasil e do seu desenvolvimento.
O Brasil mudou internamente mas não só. Com efeito a transferência da coroa vai ter reflexos ao nível da estrutura das relações internacionais no sul do continente americano, sobretudo devido à nova orientação de D. João VI em anexar a Banda Oriental ao território brasileiro, o que após algumas intervenções militares se concretizou em 1821 denominando-se a zona anexada por Província Cisplatina.
Sem esquecer a declaração de guerra à França e ocupação de Caiena, logo em 1808.
Esta era a nova política imperial do Brasil que se jogava contra a vizinha Espanha, à época controlada por franceses, sobretudo na cobiçada região do Rio Prata.
Com efeito “as perspectivas da política exterior da Corte no Rio de Janeiro modificaram-se com relação à política exterior de Lisboa” de facto “esta [Lisboa] fora eliminada como pólo de pressão, emergindo uma política agora voltada para o Brasil”[13]. A mudança de política externa identifica-se com a mudança de perspectiva motivada pelo novo contexto em que se inseria o novo centro de decisão do Império. Podem agora identificar-se dois grandes objectivos a este nível: “primeiro, o de construir uma nova e moderna metrópole na América e, segundo, garantir a integridade e a independência do território de Portugal.”[14].
À medida que os anos passam Portugal e Brasil unidos sob a mesma coroa conhecem trajectórias opostas. Por um lado Portugal, a antiga metrópole, depara-se com um cenário caótico derivado da ocupação francesa e da guerra sequente até 1811, “das dificuldades de comunicação com o Império Colonial criadas pelo bloqueio continental; da fuga de capitais representada pela transferência da Corte ao Rio de Janeiro; do fim do exclusivo colonial que significou a abertura do comércio brasileiro às outras potências; (e) da autorização para criação de manufacturas no Brasil; da penetração em massa de comerciantes ingleses no mercado brasileiro.”[15]. A economia portuguesa vai conhecer uma profunda depressão pelo deficit da balança comercial e pelo aumento do desemprego.
Apesar das medidas tomadas por D. João VI para atenuar esta situação a decadência era visível e poder-se-ia, em última analise, resumir-se a uma única razão: a perda do monopólio sobre principal eixo da economia portuguesa: o comércio com o Brasil.
Era um cenário de contrastes entre uma metrópole em decadência e uma colónia em ascensão, apesar do Brasil já deter o estatuto de metrópole. Vem no entanto a conhecer um agravamento com a elevação do Brasil à condição de Reino com a denominação de “Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves” atribuída em 1815.
Esta iniciativa partiu da necessidade de reconhecimento do novo centro da coroa e foi submetida a aprovação no Congresso de Viena em 1815 tendo sido aprovada pelo concerto das potências europeias.
A principal inovação foi o facto de desaparecer a designação, e divisão, formal de colónia e vice-reino. Note-se que a concordância das potências europeias advém da sua crença de que a mudança da nomenclatura e o reconhecimento do Brasil enquanto elemento deste grupo, vinha reforçar o absolutismo que “ainda impregnava a sociedade internacional europeia”[16].
Por outro lado este acontecimento foi encarado por outros como um tímido ponto de partida do “desmonte da colónia americana”[17].
Quanto à visão dos portugueses que haviam ficado no território europeu, estes sentiam-se abandonados pelo seu rei que viam agora elevar o Brasil, outrora elemento inferior do seu sistema colonial, ao mesmo estatuto. De facto o descontentamento gerado entre as elites portuguesas projectava-se em apelos de regresso do monarca, por uma conspiração maçónica e, por último, na Revolução Liberal já em 1820.
Portugal era agora uma colónia do Brasil “privada dos ganhos do comércio e da navegação e sujeita a uma administração militar espoliativa.”[18].
Pode mesmo afirmar-se que este facto foi o culminar da nova orientação da política joanina, que se vocacionava agora para a reorganização do Brasil que ocupava agora o centro do Império.
Assim as conjunturas internas dos territórios do Brasil e de Portugal levavam a que se criassem condições para que ganhassem força as dinâmicas revolucionárias em ambos os territórios, no Brasil contra os direitos portugueses e em Portugal contra os privilégios brasileiros.
Foi neste sentido que se verificaram importantes acontecimentos como a Revolução de Pernambuco em 1817, que acabou por ser controlada pelas tropas do rei, não lhe retirando, porém, a importância que assumiu não só no Ceará como em cidades mais distantes do Rio de Janeiro onde estava instalada a família real e os mais fiéis súbditos. E em Portugal a Revolução Liberal em Portugal em 1820. De facto, em 1821 no Rio de Janeiro perante uma multidão em fúria o rei foi obrigado a jurar uma constituição “exactamente como será feita em Portugal pelas cortes.”[19].
Estes eram acontecimentos que desafiavam o absolutismo de D. João VI e que seguiam em consequência dos novos ventos iluministas que se espalhavam na Europa e nas Américas.
Era hora de partir. D. Pedro assumia o governo do Brasil e, na madrugada de 25 de Abril a maioria da corte embarcou para, treze anos depois, regressar a Lisboa.
A estadia da Corte Portuguesa deixou vastos vestígios, sobretudo no Rio de Janeiro, como por exemplo o Jardim Botânico tão querido do rei, mas também ao nível institucional, administrativo, cultural e económico.
Para D. João VI o regresso a Lisboa representava a tentativa de fazer renascer o seu poder e recuperar o império em queda. No entanto nada era como antes, nem o rei, nem Lisboa, nem o Império".
Inês de Carvalho Narciso
Face à ameaça napoleónica que se aproximava da, ainda, capital do Reino vivia-se em Lisboa um frenesim que resultava do medo e da ansiedade que antecipavam segundo uns a fuga, segundo outros uma viagem estrategicamente planeada, ou pelo menos já defendida por ilustres portugueses como foi o caso do Padre António Vieira, mas também de uma figura incontornável deste período, Rodrigo de Sousa Coutinho que “condicionava a salvação da monarquia à ascensão do Brasil a uma posição central no Império lusitano.”[1].
Apesar do alto grau de interesse que configuram quer os meandros diplomáticos anteriores às invasões napoleónicas, quer mesmo as invasões e as suas consequências no pedaço europeu do Reino de Portugal, este trabalho focar-se-á nas consequências que esta viagem da coroa trouxe para o Brasil colonial, partindo da premissa da originalidade deste acontecimento: a transferência inter-oceânica de um Estado para preservar um regime e uma dinastia.
Em Janeiro de 1808 o Estado Português instala-se no Brasil, isto é, todo o aparelho, instituições, funcionários, arquivos, mas também, práticas e costumes inerentes, enfim, o conjunto de instrumentos e conhecimentos que permitissem “sustentar e dar continuidade à dinastia e aos negócios do governo de Portugal”[2].
Depois de 54 dias no mar, é no dia 28 de Janeiro que a embarcação que transportava o rei D. João VI e os seus filhos atraca em Salvador da Bahia, sendo que um mês depois chegam finalmente ao Rio de Janeiro.
É aqui que se inicia o que Boris Fausto apelida de reviravolta nas relações entre a metrópole e a colónia”[3]. Se bem que esta mudança já se vinha manifestando através por exemplo, da abdicação das residências de altos funcionários da Coroa em favor do Rei e de elementos da Corte.
No entanto, e como foi referido, as alterações mais profundas começam aquando da chegada da família real ao Brasil. Um exemplo que parece agora pouco importante como o facto de se ter levado para o Brasil uma máquina impressora foi um facto extremamente relevante que exemplifica o atraso que se vivia na colónia.
Importa, antes de mais, caracterizar o Brasil antes do momento da chegada da coroa.
Ao nível da sua geografia o Brasil era apenas um pedaço de terra ao longo do litoral do continente sul-americano, isto porque era aí que incidiam as principais actividades, mas também as atenções do colono. Aliás, o interior do Brasil estava pouco ou mal representado nos mapas.
Assim, a ida da Corte para o Brasil foi um marco no que concerne a (re)descoberta geográfica do território.
Administrativamente este território era uma das colónias portuguesas no “Novo Mundo” que dependia da coroa, representada localmente por vice-reis e governadores, sendo que à época da chegada da corte era Dom Marcos de Noronha e Brito, Conde do Arcos, o Vice-Rei do Brasil. Importando ainda ressalvar o papel das Câmaras Municipais, com sede nas vilas e nas cidades.
A cidade de Rio de Janeiro era desde 1763 centro administrativo da colónia, tinha um porto dos mais bem localizados em relação às rotas marítimas do império. Economicamente o Rio vivia em plena dinâmica comercial. De facto, 1808 foi um ano de viragem no campo económico e comercial da América portuguesa. No dia 18 de Janeiro de 1808 D. João VI decreta através de carta régia a abertura dos portos do Brasil às “nações amigas”, o mesmo será dizer à Inglaterra. Esta realidade era nova uma vez que até então era proibido através da exclusividade de acesso aos navios portugueses. De facto este acontecimento inaugura uma nova dinâmica interna que tem repercussões um pouco por toda a colónia sobretudo no Rio de Janeiro e Minas Gerais já que permitiu aos produtores de bens destinados à exportação, principalmente de açúcar e algodão, libertarem-se do monopólio comercial da metrópole e das restrições impostas pelo sistema comercial colonial.
Por outro lado a carta régia vai levar a protestos dos comerciantes do Rio de Janeiro de Lisboa que levam à limitação do comércio livre a alguns portos do Brasil, por exemplo. No entanto, e ainda assim, vai assistir-se a uma escalada inglesa pelo controlo do mercado colonial brasileiro, mas não só. Com efeito “o Rio de Janeiro tornou-se o ponto de entrada de produtos manufacturados ingleses, com destino não só ao Brasil como ao Rio da Prata e à Costa do Pacífico”[4].
Ainda ao nível económico o rei vai revogar os decretos que proibiam a instalação de manufacturas na colónia; isentar de tributos a importação de matérias-primas destinadas à indústria; oferecer subsídios para as indústrias de lã, seda e ferro; e encorajar a invenção e a introdução de novas máquinas[5].
Como se mencionou antes a principal parceria económica vai verificar-se com a Inglaterra e pode caracterizar-se da seguinte forma: “a generalidade dos produtos ingleses tinha entrada nos portos brasileiros mediante o pagamento de 24% de direitos, em navios britânicos, ou de 16% em navios luso-brasileiros.”[6].
Assumida a aliança pela Inglaterra aquando da fuga D. João VI vai, no espaço de três anos, conhecer a sua assumpção plena através da assinatura de Tratados Bilaterais com a Inglaterra. Em 1808, 1809 e 1810 vão sendo assinados Tratados de Aliança e Amizade que versavam a princípio, quase que exclusivamente, sobre questões de âmbito comercial e de acesso aos portos que garantiam o favorecimento da Inglaterra e, na prática a extensão da cláusula da nação mais favorecida ao Brasil que era como que uma extensão do sistema colonial inglês e da sua lógica económica, impondo, ao mesmo tempo, uma restrição no que concerne o tráfico de escravos na medida em que Portugal aceitava obrigar-se a limitá-lo aos territórios sob seu domínio e prometia, ainda que vagamente, tomar medidas para restringi-lo. No entanto os tratados vão sendo renegociados verificando-se que é a Inglaterra que impõe as suas condições, o que pode constatar-se, por exemplo no artigo 9º do Tratado da aliança em que “quanto à Inquisição, consagrava-se o compromisso de jamais a instalar no Brasil”[7].
Estes tratados vinham a confirmar a decadência das estruturas do antigo sistema colonial por duas ordens de razões. Primeiro, enquanto factores externos concorriam “a crítica ao sistema exclusivo do mercantilismo do Antigo Regime e ao escravismo”; “o advento das doutrinas económicas liberais e da revolução industrial” e “das ideias igualitárias do Estado democrático-burguês”. De seguida, enquanto factores internos observa-se, sobretudo, “o declínio da economia açucareira e mineira”[8].
Esta situação era, portanto, alimentada pela Inglaterra que exigia desta forma compensações pelos “serviços prestados por ocasião da transferência da Corte e pelos que ainda prestaria, ao comprometer-se a garantir a integridade e a independência de Portugal”[9]. A aliança luso-britânica assemelhava-se mais a um plano inglês com vista por um lado ao controlo de Portugal por Inglaterra que o tornava quase que um protectorado inglês, e por outro à situação privilegiada relativamente ao mercado brasileiro, em particular, e a todo o Império português, em geral.
Voltando à realidade em processo de mudança no Rio de Janeiro pode dizer-se que esta cidade não oferecia condições mínimas de salubridade ou higiene, as estradas sempre enlameadas e um cenário pouco europeu tornava este exílio forçado numa mudança que ia para além da mudança de endereço.
Para além da mudança de hábitos da coroa, a própria cidade, mas também o Vice-Reino em geral, sofreu alterações em várias dimensões. De facto a vinda da corte e o crescimento da cidade levaram a um aumento rápido da população de escravos[10].
Os negros, escravos e livres, constituíam cerca de três quartos da população, no entanto, e apesar de serem a maioria os negros sofriam com a intransigência da polícia que proibia as suas manifestações culturais como a capoeira ou mesmo práticas religiosas, por exemplo.
De facto os códigos socais vigentes eram diferenciados consoante o grupo. A sociedade estava dividida e organizada em nobres, funcionários da coroa, brancos pobres, negros livres e escravos. A travessia do Atlântico não alterou esta lógica social apenas introduzindo uma nova categoria: a do “trabalhador assalariado branco”[11], que derivava das novas exigências a que a cidade tinha que responder, nomeadamente ao nível dos serviços, o que gerou investimento e criação de novas oportunidades.
A população urbana vai aumentar consideravelmente de 50.000 para cerca de 100.000 habitantes muito fruto, não só do referido aumento da população negra, mas também de imigrantes portugueses, espanhóis, italianos e, em menor número, franceses e ingleses. O Brasil transformava-se no refúgio dos nacionais da Europa Napoleónica que fugiam à fúria do Imperador Bonaparte.
Assim evolui de uma sociedade simples que se podia dividir em apenas dois grandes grupos (livres e escravos) para uma sociedade que, apesar de rígida, se ia complexificando.
Outra dimensão da mudança no Rio de Janeiro, mas que acabou por se reflectir mais cedo ou mais tarde noutras cidades, foi a vida cultural. A partir do início do século XIX o Rio de Janeiro vai conhecer um maior e melhor acesso a livros com a proliferação de bibliotecas, de que se salienta a Biblioteca Real, incrementando-se a relativa circulação de ideias, para a qual contribuiu o aparecimento da imprensa, bem como um dinamismo no teatro, assistia-se ainda ao nascimento de Academias Literárias e Científicas.
A educação era outro dos sectores em mudança instalando-se escolas régias, colégios e universidades.
Não se julgue, porém, que o absolutismo joanino não atravessara o Atlântico, pelo contrário, a ida da corte para o Brasil faz com que se sinta com mais veemência o absolutismo que, apesar de tudo, era mais vincado na Metrópole. Ao mesmo tempo nota-se a preferência que é dada aos portugueses, nas palavras de Boris Fausto “Ao transferir-se para o Brasil a Coroa não deixou de ser portuguesa e favorecer os interesses portugueses no Brasil”[12].
No entanto é de frisar que haviam já ocorrido no Vice-Reino alguns movimentos de insurgência de que foram exemplos a Inconfidência Mineira (1789) e a Conjuração de Alfaiates (1798). Estes eram reflexo dos ventos de mudança trazidos, quer do Norte pelos recém formados Estados Unidos da América, quer da Europa onde o iluminismo e as revoluções napoleónicas punham em causa todo um sistema de dominação e equilíbrio. Não deixa de ser curioso que, podendo a estes movimentos ser atribuída uma feição anticolonial ou pró-independentista estes brotavam não só da sociedade colonial nativa, mas reuniam também portugueses residentes, ou nascidos, no Brasil.
Também para estas expressões, acima de tudo regionais, a travessia trouxe consequências, nomeadamente pela ascensão da situação do Brasil e do seu desenvolvimento.
O Brasil mudou internamente mas não só. Com efeito a transferência da coroa vai ter reflexos ao nível da estrutura das relações internacionais no sul do continente americano, sobretudo devido à nova orientação de D. João VI em anexar a Banda Oriental ao território brasileiro, o que após algumas intervenções militares se concretizou em 1821 denominando-se a zona anexada por Província Cisplatina.
Sem esquecer a declaração de guerra à França e ocupação de Caiena, logo em 1808.
Esta era a nova política imperial do Brasil que se jogava contra a vizinha Espanha, à época controlada por franceses, sobretudo na cobiçada região do Rio Prata.
Com efeito “as perspectivas da política exterior da Corte no Rio de Janeiro modificaram-se com relação à política exterior de Lisboa” de facto “esta [Lisboa] fora eliminada como pólo de pressão, emergindo uma política agora voltada para o Brasil”[13]. A mudança de política externa identifica-se com a mudança de perspectiva motivada pelo novo contexto em que se inseria o novo centro de decisão do Império. Podem agora identificar-se dois grandes objectivos a este nível: “primeiro, o de construir uma nova e moderna metrópole na América e, segundo, garantir a integridade e a independência do território de Portugal.”[14].
À medida que os anos passam Portugal e Brasil unidos sob a mesma coroa conhecem trajectórias opostas. Por um lado Portugal, a antiga metrópole, depara-se com um cenário caótico derivado da ocupação francesa e da guerra sequente até 1811, “das dificuldades de comunicação com o Império Colonial criadas pelo bloqueio continental; da fuga de capitais representada pela transferência da Corte ao Rio de Janeiro; do fim do exclusivo colonial que significou a abertura do comércio brasileiro às outras potências; (e) da autorização para criação de manufacturas no Brasil; da penetração em massa de comerciantes ingleses no mercado brasileiro.”[15]. A economia portuguesa vai conhecer uma profunda depressão pelo deficit da balança comercial e pelo aumento do desemprego.
Apesar das medidas tomadas por D. João VI para atenuar esta situação a decadência era visível e poder-se-ia, em última analise, resumir-se a uma única razão: a perda do monopólio sobre principal eixo da economia portuguesa: o comércio com o Brasil.
Era um cenário de contrastes entre uma metrópole em decadência e uma colónia em ascensão, apesar do Brasil já deter o estatuto de metrópole. Vem no entanto a conhecer um agravamento com a elevação do Brasil à condição de Reino com a denominação de “Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves” atribuída em 1815.
Esta iniciativa partiu da necessidade de reconhecimento do novo centro da coroa e foi submetida a aprovação no Congresso de Viena em 1815 tendo sido aprovada pelo concerto das potências europeias.
A principal inovação foi o facto de desaparecer a designação, e divisão, formal de colónia e vice-reino. Note-se que a concordância das potências europeias advém da sua crença de que a mudança da nomenclatura e o reconhecimento do Brasil enquanto elemento deste grupo, vinha reforçar o absolutismo que “ainda impregnava a sociedade internacional europeia”[16].
Por outro lado este acontecimento foi encarado por outros como um tímido ponto de partida do “desmonte da colónia americana”[17].
Quanto à visão dos portugueses que haviam ficado no território europeu, estes sentiam-se abandonados pelo seu rei que viam agora elevar o Brasil, outrora elemento inferior do seu sistema colonial, ao mesmo estatuto. De facto o descontentamento gerado entre as elites portuguesas projectava-se em apelos de regresso do monarca, por uma conspiração maçónica e, por último, na Revolução Liberal já em 1820.
Portugal era agora uma colónia do Brasil “privada dos ganhos do comércio e da navegação e sujeita a uma administração militar espoliativa.”[18].
Pode mesmo afirmar-se que este facto foi o culminar da nova orientação da política joanina, que se vocacionava agora para a reorganização do Brasil que ocupava agora o centro do Império.
Assim as conjunturas internas dos territórios do Brasil e de Portugal levavam a que se criassem condições para que ganhassem força as dinâmicas revolucionárias em ambos os territórios, no Brasil contra os direitos portugueses e em Portugal contra os privilégios brasileiros.
Foi neste sentido que se verificaram importantes acontecimentos como a Revolução de Pernambuco em 1817, que acabou por ser controlada pelas tropas do rei, não lhe retirando, porém, a importância que assumiu não só no Ceará como em cidades mais distantes do Rio de Janeiro onde estava instalada a família real e os mais fiéis súbditos. E em Portugal a Revolução Liberal em Portugal em 1820. De facto, em 1821 no Rio de Janeiro perante uma multidão em fúria o rei foi obrigado a jurar uma constituição “exactamente como será feita em Portugal pelas cortes.”[19].
Estes eram acontecimentos que desafiavam o absolutismo de D. João VI e que seguiam em consequência dos novos ventos iluministas que se espalhavam na Europa e nas Américas.
Era hora de partir. D. Pedro assumia o governo do Brasil e, na madrugada de 25 de Abril a maioria da corte embarcou para, treze anos depois, regressar a Lisboa.
A estadia da Corte Portuguesa deixou vastos vestígios, sobretudo no Rio de Janeiro, como por exemplo o Jardim Botânico tão querido do rei, mas também ao nível institucional, administrativo, cultural e económico.
Para D. João VI o regresso a Lisboa representava a tentativa de fazer renascer o seu poder e recuperar o império em queda. No entanto nada era como antes, nem o rei, nem Lisboa, nem o Império".
Inês de Carvalho Narciso
[1] Cervo, Amado Luiz, e Magalhães, José Calvet de, Depois das Caravelas – As relações entre Portugal e o Brasil 1808-2000, Lisboa, Instituto Camões, 2000, p.60.
[2] Schwarcz, Lilia Moritz, “O dia em que Portugal fugiu para o Brasil”, in Revista de História, E Portugal fugiu para cá, nº28, consultado em 16 de Março de 2008.
[3] Fausto, Boris, História do Brasil, São Paulo, Edusp, 2007, p.121.
[4] Fausto, Boris, op. cit., p.122.
[5] Fausto, Boris, op. cit., p.122.
[6] Alexandre, Valentim, Os sentidos do Império, Porto, Edições Afrontamento, 1993, p.214.
[7] Alexandre, Valentim, op. cit., p. 231.
[8] Cervo, Amado Luiz, e Magalhães, José Calvet de, op. cit., p.54.
[9] Cervo, Amado Luiz, e Magalhães, José Calvet de, op. cit., p.62
[10] Em apenas três anos o número de escravos aumentou de 9602 para 18677.
[11] Lemle, Marina e Costa, Guilherme Martins, “O outro lado de 1808”, in Revista de História E Portugal fugiu para cá, nº28, consultado em 16 de Março de 2008.
[12] Fausto, Boris, op. cit., p.127
[13] Cervo, Amado Luiz, e Magalhães, José Calvet de, op. cit., p.61.
[14] Idem, ibidem
[15] Cervo, Amado Luiz, e Magalhães, José Calvet de, op. cit., p.63
[16][16] Cervo, Amado Luiz, e Magalhães, José Calvet de, op. cit., p.65.
[17] Idem, ibidem.
[18] Idem, ibidem.
[19] Wilcken, Patrick, Império à deriva – A corte portuguesa no Rio de Janeiro 1808-1821, 6ª Edição, Porto, 2006, p.267.
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