Monday, March 10, 2008

A Chegada da Corte de D. João VI ao Rio de Janeiro


7 DE MARÇO DE 2008 – BICENTENÁRIO DA CHEGADA DA CORTE DE D. JOÃO VI AO RIO DE JANEIRO


Fez Sexta-Feira, dia 7 de Março de 2008, 200 anos que a Corte de D. João VI chegou ao Rio de Janeiro. Zarpando de Lisboa a 29 de Novembro de 1807, a família real portuguesa e a respectiva corte navegaram por mais de três meses até atingir o Brasil, protagonizando, pela primeira vez na história mundial, a aproximação de um soberano a uma colónia.
A complexidade do xadrez geoestratégico europeu de então, oscilante entre o turbilhão napoleónico e a cobiça colonial britânica, criava dificuldades intransponíveis à Coroa portuguesa, incapaz de enfrentar qualquer uma das potências hegemónicas da época (França e Inglaterra) e incapaz de impor a sua neutralidade. Ameaçada face aos interesses político-estratégicos das duas potências, a Coroa portuguesa foi forçada a optar pela mudança do centro de gravidade político do Reino, procurando, com a viagem transatlântica, garantir a sua sobrevivência, assim como a do Império Lusitano.
Efectivamente, um conjunto de transformações traçou o perfil das últimas décadas do século XVIII e o início do século XIX, determinando a necessidade da transferência da Corte portuguesa para o Brasil. Transformações que alteraram decisivamente a forma e o conteúdo das concepções e práticas correntes na época, desde a Revolução Industrial; às alterações geoestratégicas provocadas pela nova relação de forças na política internacional em resultado da independência dos Estados Unidos da América, das primeiras transformações ocorridas na América do Sul e das profundas mudanças registadas na Europa Oriental e no Império Turco no Mediterrâneo; à forma de exercer o poder político, alterado em virtude das inúmeras revoluções ocorridas, designadamente a Francesa, em 1789, com implicações transversais em toda a Europa e América do Sul.
Estes processos tiveram um carácter cumulativo e convergente com os interesses das correntes iluministas e liberais emergentes à época. Montesquieu, Voltaire, Diderot e Rousseau foram alguns dos pensadores que defenderam que através da razão seriam alcançadas as leis naturais regentes da sociedade, de modo que a missão dos governantes seria garantir o bem-estar dos povos através do respeito pelas leis e pelos direitos naturais de que os homens eram portadores; num ideal que comportava uma concepção de governo assente num sistema de eleições, assembleias e de separação de poderes. Conceitos como a liberdade individual, a igualdade dos cidadãos perante a lei e o direito das nações à independência criaram as condições para o desenvolvimento do indivíduo e para a sua participação na vida política, compondo a matriz do pensamento liberal.
Evidentemente, estas transformações, aliadas à instabilidade que se fazia sentir na Europa, no final do século XVIII e início do seguinte, reflectiram-se nas possessões ultramarinas dos Estados europeus. Foi sobretudo a alteração geopolítica colonial resultante da independência dos Estados Unidos que provocou implicações significativas, que em muito ultrapassaram os limites do império colonial britânico, já que a Inglaterra, enquadrada pela sua «realpolitik», passava a cobiçar outros mercados, designadamente os da América Latina. Tornava-se claro, para a maior potência comercial da Europa, que se o monopólio de Portugal e de Espanha sobre as respectivas colónias terminasse, essas colónias poderiam abrir-se ao comércio europeu, o que seria sobremaneira vantajoso para a Inglaterra, dado o seu pioneirismo na industrialização. Assim, a Inglaterra não se limitou a observar os problemas independentistas na América Latina, neles intervindo em favor dos movimentos revolucionários, nunca em prol da defesa dos direitos das soberanias portuguesa e espanhola.
Simultaneamente, ao lado da potência marítima inglesa, a potência colonial francesa combatia para garantir a consecução dos seus objectivos, de acordo com os desígnios expansionistas de Napoleão. No choque entre as duas potências hegemónicas de então, ambas combatendo pela preservação das possessões ultramarinas e pelo acesso e rotas dos mercados tidos como cruciais para o respectivo desenvolvimento económico e social, o domínio do Atlântico tornava-se num objectivo geoestratégico essencial.
Consciente da importância do Atlântico, Napoleão publicou, a 21 de Novembro de 1806, o Decreto de Berlim, procurando debilitar economicamente a Inglaterra através do anúncio de um bloqueio continental.
Neste contexto internacional, Portugal via-se numa encruzilhada. A aliança com o bloqueio continental francês significaria a perda das possessões coloniais para a Inglaterra, o fim dos negócios e a perda da base económica da vida nacional, o Brasil. O contrário implicaria arrastar para a guerra franco-britânica o território nacional, com implicações duvidosas quanto à sobrevivência da soberania portuguesa. A dúbia política externa portuguesa, que havia conseguido garantir a sobrevivência e a independência da dinastia de Bragança frente à França, à Inglaterra e à Espanha, encontrava-se, agora, num momento determinante, em que uma decisão clara e efectiva se impunha. Quando, em Agosto de 1807, o príncipe-regente é informado da concentração de um corpo do Exército francês com 30 000 homens, estacionado em Baiona pronto a entrar em Portugal, a decisão de aderir ao bloqueio continental é tomada. Mas apenas aparentemente, para apaziguar Napoleão. Enquanto isso, D. João VI celebrava, a 22 de Outubro, uma convenção secreta com o rei de Inglaterra, Jorge III, de acordo com a qual a Marinha de Guerra britânica auxiliaria na transferência da Corte portuguesa para o Brasil, em troca da negociação de um tratado entre os governos português e britânico, assim que a família real portuguesa chegasse ao Brasil.
D. João VI, contra todas as advertências, hesitava em dar a ordem de partida, pois entendia ser seu dever manter-se junto a seu povo até ao fim. Somente quando, a 23 de Novembro, chegou a Lisboa um exemplar de “Le Moniteur”, no qual Napoleão Bonaparte anunciava as suas intenções de acabar com a dinastia dos Bragança e apoderar-se do trono português, D. João VI deu a ordem de partida, concretizada a 29 de Novembro – um dia antes da invasão de Lisboa pelas tropas de Junot. Entre 8 000 e 15 000 pessoas, juntamente com 80 milhões de Cruzados da Fazenda Real – metade do dinheiro em circulação no Reino – foram transportados pela esquadra inglesa – composta por sete naus, cinco fragatas, dois brigues, duas charruas e vários navios mercantes.
A transferência da monarquia portuguesa para o Brasil, apesar de inserida num contexto sócio-político-militar muito específico, não era uma linha de acção original, tampouco uma hipótese de último recurso. O plano da transferência já vinha sendo cogitado há muito. Parece ter sido aconselhado ao prior do Crato para salvar a independência em 1580. Depois da Restauração, o padre António Vieira formulara igual proposta, num momento em que Lisboa parecia estar muito próxima do inimigo. No início do século XIX, muitas eram as vozes que aventavam a transferência da Corte portuguesa para o Rio de Janeiro, onde o acesso às riquezas brasileiras permitiria ao monarca português conservar o próprio Reino de Portugal, cujas riquezas eram insuficientes para sustentar o Brasil. Reduzido a si mesmo, Portugal não tardaria a tornar-se uma «província de Espanha». Uma vez transferida a Corte, as possibilidades de aumento territorial do Brasil eram muitas e reais, segundo então se dizia, desde o Reino do Peru ao istmo do Panamá, desde o Chile (trocado com os Espanhóis pelos Algarves) até ao Estreito de Magalhães.
Neste sentido, a transferência da Corte de D. João VI para o Rio de Janeiro, longe de constituir uma fuga às responsabilidades nacionais, afirmava-se como a concretização de uma visão estratégica que vinha sendo amadurecida há mais de um século, assente na ideia de, na América do Sul, se construir um grande império, longe das vulnerabilidades e das ameaças que, na Europa, afectavam Portugal, catalisadas pelas convulsões provocadas pelas invasões napoleónicas. Motivações económicas foram também determinantes para a concretização desta visão estratégica. Contrastando com a debilidade económica da metrópole lusa, a economia brasileira prosperava significativamente, o que reforçava o ideal da construção de um grande império na América do Sul.
Transferida a Corte para o Rio de Janeiro, a capital do Império Português passava de Lisboa ao Rio de Janeiro, numa brilhante actuação político-estratégica do príncipe-regente D. João, que abriria possibilidades e oportunidades novas ao desenvolvimento da então colónia brasileira.
Ao chegar ao Rio de Janeiro, D. João VI logo declarou a intenção de aí construir um império. Ao longo dos 13 anos que se seguiram, diversas decisões políticas, económicas e estratégicas foram postas em marcha influenciando profundamente o decorrer dos acontecimentos no Brasil e, claro, também em Portugal. A edificação de um império no Brasil revelar-se-ia, todavia, quimérica e desequilibrada, em função dos pressupostos que haveriam de nortear a sua construção e das transformações políticas, económicas e sociais então em curso. Mesmo assim, em pouco tempo, a cidade do Rio de Janeiro haveria de tornar-se mais opulenta que a de Lisboa, como já D. João V havia profetizado quando propusera a transferência da Corte lusa para o «imenso continente do Brasil», nele tomando o título de «imperador do Ocidente».
D. João VI logo procurou inaugurar na colónia a era industrial, numa obra que parecia desejar convertê-la numa nação independente. Sob o signo do liberalismo, era objectivo do príncipe-regente promover o desenvolvimento demográfico do Brasil, assim como o económico, com base na estrutura sócio-económica de então, baseada no trabalho-escravo ainda existente. Para um Estado-império como Portugal, não importava onde estivesse a sede do trono e, impressionado com a grandeza da colónia, D. João VI empreendeu a liquidação do regime colonial e deu início à construção do Estado brasileiro. Assim, ainda antes de aportar no Rio de Janeiro, D. João, em Salvador, assinou a carta-régia de 28 de Janeiro de 1808, abrindo os portos do Brasil às nações amigas e acabando com o monopólio do comércio pela metrópole. A 1 de Abril, anulou as amarras do sistema colonial mediante alvará e derrogou as cartas-régias de 1766 e de 1785, autorizando no Brasil o ofício de ourives, até então proibido para evitar o contrabando do ouro e o seu desvio do comércio monetário, e autorizando a manufacturação de fios, panos e bordados, pois que até à data apenas era autorizado o fabrico de fazendas grossas de algodão. Logo dotaria o Brasil de um sistema judicial próprio, instituindo um Supremo Tribunal, um Tribunal de Recursos e um Conselho Militar. Do mesmo modo, criaria o Ministério da Fazenda (da Economia), o Banco do Brasil, uma Câmara de Comércio, Indústria e Navegação e, ainda, o Jardim Botânico, ainda hoje de uma rara beleza situado aos pés do Corcovado. Para a construção naval, D. João VI criaria a fábrica de pólvora e o arsenal da Marinha e instituiria o ensino superior militar, com a inauguração do Colégio Militar e do Colégio Naval. Instituiria ainda o ensino superior médico, com a Faculdade de Medicina da Bahia e revogaria as restrições à publicação, com a circulação da «Gazeta do Rio de Janeiro», semelhante à metropolitana «Gazeta de Lisboa». Ainda mais, D. João VI autorizaria que fossem concedidos no Brasil os títulos de Marquês, Conde e Barão, pois que, até então, os nobres de nascimento apenas recebiam o foro de fidalgo, hereditário. D. João criaria ainda a siderurgia nacional, diversas fábricas siderúrgicas e o Real Gabinete de Mineralogia do Rio de Janeiro, e adoptaria outras medidas para impulsionar a industrialização do Brasil, como a isenção de direitos aduaneiros às matérias-primas necessárias às fábricas brasileiras; a isenção de imposto de exportação para os produtos manufacturados no país; a utilização dos produtos brasileiros para a confecção das fardas das tropas reais; a concessão de privilégios aos inventores ou introdutores de novas máquinas no Brasil; e a atribuição de subsídios reais às indústrias manufactureiras que necessitassem de apoio. Com vista a edificar o grande império que pretendia, D. João VI anexou, também, de forma deliberada, a Guiana Francesa e a Cisplatina (actual Uruguai).
Apesar destas iniciativas, o Tratado luso-britânico de 1810 sufocou o estímulo ao desenvolvimento económico do Brasil. Este tratado derrogava, na prática, a abertura dos portos e dificultava os esforços de industrialização, já que concedia às manufacturas britânicas uma tarifa preferencial, em matéria de direitos aduaneiros, de 15%; um privilégio maior que o de Portugal, cujas manufacturas pagavam 16% de direitos para entrar no Brasil, enquanto as das restantes nações pagavam direitos da ordem dos 24%. Este tratado foi imposto a D. João VI pela Inglaterra, inconformada por não ter obtido para si um porto exclusivo no Brasil. A Inglaterra pretendia o monopólio portuário de Santa Catarina, a Sul do Brasil, porém D. João, durante as negociações em Lisboa, não concordou e, como compensação, promoveu a abertura dos portos brasileiros. Não era isto, todavia, que a Inglaterra queria, o que a terá levado a impor a D. João VI o Tratado de 1810.
Entretanto, a derrota definitiva de Napoleão Bonaparte em Waterloo, em Junho de 1815, revigorou a ideia de consolidar o Império Lusitano a partir do desenvolvimento económico do Brasil como nação soberana, unida ao Reino de Portugal e dos Algarves. Assim, em Dezembro de 1815, o príncipe-regente D. João elevou o Brasil a nação, passando a ser um país soberano reconhecido como personalidade jurídica de Direito Internacional pelas principais potências da época, integrando o então Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves, naquilo que se afigurava como a maior de todas as revoluções do sistema político reinante. Um projecto estratégico de grande magnitude que visava fortalecer a posição de Portugal face às potências do momento e, sobretudo, aumentar o seu poder negocial perante a poderosa Inglaterra.
Os súbditos portugueses, porém, não se conformavam com a abertura dos portos brasileiros, que lhes retirava as receitas provenientes dos direitos aduaneiros, dizendo mesmo que «Portugal se tornara uma colónia da colónia», para onde, além do mais, emigravam já inúmeros portugueses, em virtude da difícil situação económica da metrópole, contrastante com a promissora economia brasileira e, naturalmente, da instabilidade que grassava por todo o continente europeu.
Estas vagas migratórias contribuíram para adensar o já tenso clima da metrópole, concorrendo para a deflagração da revolução constitucional de 24 de Agosto de 1820. As Cortes portuguesas, então dominadas pelas forças liberais, instaram D. João VI a retornar a Portugal e tomaram diversas medidas no sentido de restaurar, no Brasil, o sistema colonial que D. João VI havia começado a desmontar. O objectivo era o restabelecimento do status quo anterior a 1808, isto é, anterior à abertura dos portos brasileiros, de modo que a Portugal fosse restituída a supremacia política sobre o Brasil.
Em virtude da pressão das forças políticas da metrópole sobre D. João VI para que regressasse a Portugal, o príncipe-regente, após alguma relutância, acedeu em fazê-lo em Abril de 1821. De regresso a Lisboa, D. João VI tomou as primeiras medidas para a convocação da Assembleia Nacional para elaborar a Constituição, enquanto deixara o Brasil nas mãos do seu filho, o príncipe D. Pedro que, como regente no Rio de Janeiro, estava munido de todos os poderes necessários para governar o Brasil de modo autónomo, quer administrativa, quer politicamente. D. João havia mesmo advertido D. Pedro que, em caso de o Brasil se separar de Portugal, deveria permanecer em suas mãos, ao dizer-lhe: «Se o Brasil se separar, antes seja para ti que me hás de respeitar, que para alguns desses aventureiros». De facto, tudo caminhava no sentido do fracturamento do Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves. Não que os brasileiros desejassem separar-se de Portugal. O nacionalismo brasileiro, à época, não buscava a independência do Brasil, mas a manutenção da sua autonomia, da equiparação a Portugal como país soberano, unido a Portugal no Reino Unido de Portugal, do Brasil e dos Algarves. Já os portugueses pretendiam o regresso do Brasil ao sistema colonial, dependente da metrópole e sem qualquer espécie de autonomia. Era aqui que residia a incompatibilidade das posturas, que levou D. Pedro, em situação de emergência, a seguir o conselho que o seu pai lhe deixara antes de partir para Lisboa. O regente do trono brasileiro cedo percebeu que o Brasil se separaria de Portugal, com ou sem a dinastia de Bragança e que, se não se colocasse à frente da nação brasileira, perderia o trono e o Brasil surgiria independente de Portugal sob a forma de um regime republicano. Posto isto, D. Pedro decidiu assumir o controlo do processo político então em marcha. Colocou-se à frente dos acontecimentos tendentes à separação do Brasil relativamente a Portugal. Seu objectivo não era subverter, mas preservar o status quo da unidade.
Foi assim que D. Pedro se tornou imperador do Brasil, lutando contra as forças republicanas e federalistas que ameaçavam a integridade territorial do país, de modo a evitar a desagregação das províncias, como havia sucedido nas colónias da América Espanhola.
Efectivamente, em matéria de constituição, o Brasil contou com inúmeras vantagens relativamente às colónias da América Espanhola. A independência do Brasil ocorria em 1822, uma década após a independência do Vice-Reino do Rio da Prata. Porém, não foi, como aqui, realizada contra os órgãos e os representantes metropolitanos; foi realizada pelo próprio príncipe herdeiro do Trono português. Assim, o Brasil não sofreu, como as ex-colónias espanholas, qualquer espécie de vácuo de poder, já que herdou, praticamente intactas, as instituições administrativas, políticas e militares criadas pelos outrora colonizadores portugueses. Deste modo, a unificação e a centralização do novo Estado, sob a forma imperial, ocorreram no momento mesmo da independência. Por outro lado, as regiões brasileiras não eram economicamente autárquicas entre si e comunicavam-se com facilidade através da navegação marítima e fluvial, com excepção do Mato Grosso, um território de maior vulnerabilidade. Nestes factores reside a explicação para a manutenção do antigo espaço colonial português unido em um só país, permitindo-lhe a possibilidade de deter um poder incomparavelmente maior do que o das ex-colónias espanholas, assumindo-se o Brasil como potência regional.
Com a independência do Brasil, Portugal perdia grande parte da sua importância política, já que, além da riqueza do território brasileiro, o mesmo era o ponto mais essencial para o seu comércio. O Brasil, por seu lado, não obstante ganhar a soberania política, deixava de ter o vector militar europeu de que necessitava para conservar Montevideu e a Banda Oriental.
Fosse como fosse, logo o Império do Brasil caminharia no sentido de tornar-se a potência regional que hoje é, como tal reconhecida pela vizinhança, pelo contexto regional e pela sociedade internacional global.

1 comment:

Nuno Castelo-Branco said...

"Ele foi o único soberano da Europa que teve a firmeza e a sabedoria de fazer precisamente o que devia", disse James Ligham, acerca da decisão do príncipe Regente de retirar a Corte para o Brasil.
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Desde meados do século XVI, o Brasil surgia como uma terra da promissão, um horizonte infinito para uma expansão, que mitigada na Europa pelas contingências geográficas, políticas e demográficas, levava o reino português a procurar no além-mar, novas fronteiras propiciadoras pela aventura dos Descobrimentos. Martim Afonso de Sousa, o grande impulsionador da ampliação do domínio e da colonização lusa nas terras de Vera Cruz, foi talvez, o primeiro a vislumbrar as imensas possibilidades oferecidas pelo novel domínio, aconselhando D. João III à simples e efectiva transferência da sede da Monarquia, para a recém descoberta colónia.

Após Alcácer Quibir e reconhecendo implicitamente a primazia legal dos direitos de D. Catarina, duquesa de Bragança, à sucessão do trono, Filipe II de Espanha, parece ter considerado seriamente a entrega do domínio americano à Casa de Bragança, em troca da efectiva posse do território português na península ibérica. A Restauração de 1640, ocorreu num momento difícil de total despojamento material da nação, levando o Pde. António Vieira a preconizar a opção brasileira, garantindo a criação de um verdadeiro império, dada a extensão territorial das conquistas, a ausência de inimigos directos nas fronteiras e uma privilegiada situação no Atlântico, o novo grande palco do confronto naval pela supremacia entre as grandes potências. D. Luís da Cunha, foi outro entusiasta desta solução, procedendo a uma copiosa e exuberante enumeração das vantagens decorrentes, garantindo uma nova dimensão ao poderio português, libertado desta forma, das peias que uma situação geográfica difícil e a ausência de recursos, ditava um paulatino e inelutável declínio de Portugal como factor relevante na Europa.

No século XVIII, a instabilidade no precário equilíbrio europeu, fez eclodir guerras nas quais todo o continente se envolveu de forma directa - Guerras da Sucessão da Espanha e da Áustria e intervenção dos Bourbon espanhóis na Itália, para nos referirmos apenas aos principais conflitos -, que inevitavelmente perturbaram a já tradicional política portuguesa de não envolvimento nos conflitos continentais. Se excluirmos uma breve e quase simbólica participação da Armada portuguesa (1717) na guerra Liga cristã contra o Império Otomano, Portugal manteve-se coerentemente ausente dos campos de batalha europeus, durante mais de cinco décadas.

A indirecta intervenção na Guerra dos Sete Anos, deveu-se sobretudo, a uma tentativa bourbónica de neutralizar o importante ponto de apoio da Royal Navy na península, essencial para o controle da navegação atlântica e colonial. Considerando seriamente as hipóteses decorrentes de uma invasão das tropas do Pacto de Família, Pombal ponderou a transferência da corte e do governo - a Soberania -, para o vice-reino do Brasil, a fonte dos recursos que permitiam a existência do próprio Estado português.

A Revolução Francesa de 1789 e a posterior ascensão de Bonaparte, destruiram a velha ordem estabelecida ao longo de séculos. Preceitos, doutrinas, convenções e modus operandi universalmente aceites pela velha diplomacia europeia, volatilizaram-se diante dos disparos da artilharia, ou jazeram para sempre esmagados pelas cargas dos couraceiros franceses que arrasaram tronos, pisotearam Estados antigos e fizeram movimentar massas populacionais de uma forma jamais vista. É hoje difícil imaginarmos o espanto e a tragédia vivida por milhões, que assistiram impotentes, ao desabar de um mundo que para a imensa maioria, era o fruto de uma ordem natural ou divina.

As sucessivas tentativas da manutenção da neutralidade, encontraram no alvorecer de 1800, uma real impossibilidade de concretização. O génio militar de Napoleão e a violência dos seus ímpetos, fizeram dissipar qualquer veleidade de estabelecimento de alianças consistentes no continente, susceptíveis de permitir, pelo menos, a contenção de um expansionismo que não conhecia limites e nem sequer garantia uma razoável moderação, no sentido da criação de uma nova ordem negociada e aceite pelo conjunto dos Estados.

Os ministros portugueses - entre os quais destacamos Domingos de Sousa Coutinho, Rodrigo de Sousa Coutinho e o marquês de Alorna -, instaram com o Regente no sentido de fazer pender Portugal, para a fidelidade à já antiga aliança com a Grã-Bretanha. Conhecendo bem a dependência portuguesa do comércio além-mar e a supremacia inglesa - hegemónica após Trafalgar (1805) - nos mares, consideravam qualquer aproximação de facto à política continental napoleónica, como pressuposto para a imediata perda das possessões ultramarinas. Os ingleses não tardariam muito em proceder à ocupação ou anexação da Madeira, Açores, Goa e Macau. Eram bem conhecidas as ambições expansionistas na América do Sul que surgia como um perfeito sucedâneo das ainda recentemente perdidas Treze Colónias norte-americanas. Em "A Decadência do Ocidente", Oswald Spengler sublinha o projecto de Hobbes, que visava a conquista inglesa de todo o continente, como condição de uma efectiva hegemonia imperial.

Em 1807 e após o decretar do Bloqueio Continental, a Inglaterra encontrava-se ameaçada e sem aliados na Europa. Não parece lícito trabalhar sobre meras hipóteses. A História faz-se sobretudo, da análise dos factos e da documentação, mas também - e este aspecto tem sido ostensivamente negligenciado desde há mais de um século -, com o estudo comparado de eventos demonstrativos de tendências de políticas, situação económica e social dos Estados e doutrinas prosseguidas por estes. Desta forma, poderemos seguramente proceder a uma análise comparativa de situações ocorridas durante os conturbados anos de 1799-1807: a anexação do Piemonte e de Parma (1802), a ocupação de Viena (1805), de Berlim (1806), a anexação da Holanda e destituição da Casa de Orange (1806), a deposição dos Bourbon de Nápoles (1806) e a destruição da frota dinamarquesa e bombardeamento de Copenhaga pela armada britânica, como represália pelo alinhamento da Dinamarca com a França de Napoleão (1807).

Em Novembro de 1807, a barra do porto de Lisboa, já se encontrava bloqueada por uma poderosa frota britânica, onde os sinais de impaciência pela não clarificação da atitude do governo português - sempre confiante até ao fim na obtenção da manutenção de uma neutralidade negociada -, poderiam ter conduzido a um irreparável desenlace: a captura ou destruição da frota portuguesa e o consequente bombardeamento de Lisboa. Estas chegaram a ser opções ponderadas, no caso do prolongamento de uma já insuportável situação dúbia. Sabia-se da rápida aproximação do exército invasor de Junot e era urgente a concretização daquilo que fora acordado pela chamada Convenção Secreta luso-britânica (22 de Outubro de 1807) que indicava a transferência da família real e do governo para o Rio de Janeiro. Para os ingleses, era crucial a manutenção de um aliado no concerto dos Estados europeus, propiciador de um exemplo de sucesso face às ambições expansionistas da França.

Conhecemos bem os detalhes do embarque e ao longo de um século e meio, sobrevalorizaram-se os aspectos anedóticos que eram aliás, inevitáveis, devido às condições precárias do momento. No entanto, a alegada "fuga" - que jamais ocorreu -, faz--se de uma forma inédita em toda a História europeia: é todo um aparelho de Estado que embarca, a quase totalidade do tesouro e uma inquantificável quantidade de documentos, 60.000 livros da Biblioteca Real e bens sumptuários, enfim, uma sociedade inteira que se traslada para um território longe da rapina inimiga e que se exime também - talvez o aspecto mais relevante para a mentalidade da época -, ao vexame da capitulação. Seria bastante útil, procedermos ao completo levantamento e apreciação da reacção da ainda incipiente opinião pública dos diversos países europeus que, naquele momento de todas as incertezas e temores, decerto vislumbrou o bruxelear da chama de uma resistência à prepotência, latrocínio e violência a que os povos estavam submetidos. Foi na verdade, a primeira vez que Bonaparte não venceu e disso deu testemunho nas suas Memórias.

Muito mais tarde, decorridos cento e trinta anos, outros governos e soberanias imitariam, de uma forma ainda mais apressada e sobretudo, menos digna, o exemplo dado pelo Regente D. João, encontrando novos portos de abrigo onde se eximiram aos ditames do vencedor do momento. A rainha Guilhermina da Holanda e os reis Haakon, Pedro II e Jorge II da Noruega, Jugoslávia e Grécia, respectivamente, puderam organizar a resistência nacional à invasão nazi. A derrota militar foi apenas uma batalha perdida e possibilitaram com essas "fugas", o forjar de armas e exércitos que desafrontaram as suas nações. O Armistício francês de Junho de 1940, foi prenhe de consequências nefastas, das quais a França jamais se libertou e podemos legitimamente imaginar, como teria evoluído a II Guerra Mundial, no caso do governo francês não ter ido à Canossa indicada pela vencedora Wehrmacht.

Podemos apenas imaginar o que teria sucedido se Junot tivesse conseguido executar as ordens recebidas das mãos do seu imperador. O Regente e toda a sua família, conheceriam o mesmo destino dos Bourbon de Espanha, partindo coactos para um incerto exílio em França, onde uma abdicação era a hipótese mais provável. O Brasil tal como hoje o conhecemos, jamais existiria na sua grandeza territorial e talvez, até na sua estrutura e multiplicidade étnica. As ilhas atlânticas, seriam hoje, possíveis territórios da coroa britânica, à semelhança de Gibraltar. Embora a derrota final de Napoleão fosse inevitável - dada a relação de forças em presença e a hegemonia inglesa nos mares -, é lícito questionar, se Portugal não teria um destino semelhante ao da Noruega, Finlândia ou Polónia, que no Congresso de Viena, foram sacrificadas às razões do equilíbrio de poder na Europa e à política de simplificação do mapa e de compensações.

Pelo contrário, a declaração de guerra à França - assinada já pelo Regente na sua nova capital além-mar -, possibilitou a manutenção da legitimidade e existência do Estado como entidade soberana. O levantamento nacional, a organização de um exército que foi um instrumento precioso sob o comando de Wellington, garantiram a presença de Portugal na Grande Mesa do Congresso, ao lado da Inglaterra, Rússia, Áustria, Prússia, França e Espanha. Foi talvez, o momento áureo da velha aliança luso-britânica e do efectivo nascimento do Brasil como nação internacionalmente reconhecida, com o nome de Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves.

O Regente D. João prestou um grande serviço ao país, e ao fazê-lo, criou uma segunda uma segunda Pátria que é também de todos nós. O Brasil, como diz aquele bem conhecido Fado Tropical, talvez ainda se ..."vai tornar num imenso Portugal"... É esta a nossa garantia de sobrevivência como cultura, língua e destino, que são ímpares na Europa. No passado sábado, estava - sei eu lá porquê? - hasteada uma bandeira brasileira na grande varanda do Palácio de S. Bento. Naquele momento de passeio por Lisboa, recordei agradecido, a decisão tomada numa hora de grande comoção nacional. Se pudesse ter visto a fachada do Parlamento, D. João VI teria sorrido com bonomia. A prudência e a memória eram duas das suas grandes qualidades. Saibamos aproveitar o precioso legado.