Thursday, November 27, 2008

Portugal - Brasil: O Lugar que Cada Um Ocupa na Política Externa do Outro

AS RELAÇÕES PORTUGAL: O BRASIL E A POLÍTICA EXTERNA PORTUGUESA; PORTUGAL E A POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA


As relações luso-brasileiras sofreram, nas últimas décadas, grandes transformações. Todavia, a falta de reflexão crítica sobre estes fenómenos dificulta o entendimento entre Brasileiros e Portugueses. Aprofundar a compreensão do presente, por forma a preparar o futuro, sem perder de vista o passado assume-se, assim, como uma tarefa de grande relevância, visando conferir uma nova dimensão ao intercâmbio sócio-político-económico luso-brasileiro.

No actual mundo globalizado, onde reina uma nova ordem internacional amplamente caracterizada pela emergência dos países em desenvolvimento, são crescentes as dificuldades destes em retomar uma trajectória de desenvolvimento acelerado e continuado.








Não obstante, alguns destes países periféricos têm vindo a ganhar relevância sobre a dinâmica social contemporânea, num processo de desenvolvimento económico que levou Jim O`Neill, economista do Grupo Goldman Sachs, a falar dos BRIC para se referir, sugestivamente, ao Brasil, à Rússia, à Índia e à China, com base na tese segundo a qual as economias destes países têm-se desenvolvido de tal forma que, no ano 2050, virão a eclipsar os países hoje mais ricos do globo[2].


O Brasil detém, neste contexto, e pelo peso geo-económico e demográfico, pela dimensão do mercado interno, pela avaliação dos indicadores económicos e políticos, bem como da imensidade dos problemas e desafios, e bem assim dos atributos tradicionais do poder que vai exercendo[3], e sobretudo, da actuação em termos de soft power, a capacidade natural de líder regional e continental, daqui resultando a sua importância como actor efectivamente actuante das relações internacionais.


É neste sentido que, para além dos principais temas que hoje cegam os internacionalistas – a crise da ordem internacional, o terrorismo global, o unilateralismo da resposta norte-americana, a tensão atlântica e as tendências para o Directório resultantes do método das cooperações reforçadas na Europa Comunitária[4] – é útil atentarmos sobre o BRIC que tem, com Portugal, uma relação de mais de quinhentos anos. País hoje na ordem do dia pela questão do etanol, dos biocombustíveis e da descoberta de novas fontes de petróleo e gás natural na bacia de Santos, a 7000 Km de profundidade, sugerindo a criação de um consórcio de exploração no qual participará a Galp Energia[5]. E fazê-lo, não apenas do ponto de vista da política externa portuguesa, atendendo ao lugar que o Brasil ocupa nesta política, como também do ponto de vista da política externa brasileira, analisando o lugar que Portugal ocupa nessa política. Sendo certo que esta análise conduz ao entendimento da forma como Portugal e o Brsail se inserem e actuam na ordem internacional organizada num multilateralismo pós-westfaliano, pós-moderno e pós-hegemónico, à maneira de Robert Cox[6]. Daí o objectivo de traçarmos, aqui, algumas reflexões atinentes a este relacionamento, designadamente referentes àquele que será o país do futuro com maiores implicações para Portugal, cujo interesse ficou claramente vincado ao reunir a Cimeira União Europeia – Brasil apenas quatro dias após assumir a Presidência rotativa do Conselho da União, no segundo semestre de 2007. Interesse vincado, também, na reunião de Cavaco Silva e José Sócrates com Lula, à margem da XVII Cimeira Ibero-Americana reunida em Santiago do Chile entre os dias 9 e 10 de Novembro de 2007, com vista a discutir questões económicas e fomenter a Língua Portuguesa[7].


Na verdade, o relacionamento luso-brasileiro desenvolveu-se consideravelmente com o boom de investimento que os empresários portugueses canalizaram para a economia brasileira, que se afirmou solidamente a partir de 1996, com investimentos na ordem dos 48 milhões de contos portugueses, cerca de um terço de todo o investimento português no estrangeir[8]. Investimentos que se situam especialmente na área das telecomunicações, com a Portugal Telecom a adquirir grandes parcelas na privatização da Telesp Celular (de São Paulo, por isso considerada o filé mignon das Telecomunicações brasileiras); mas que percorrem, ainda, os sectores energético (através dos investimentos feitos pela EDP, Electricidade de Portugal), de distribuição alimentar (por meio das aquisições feitas pela Sonae e pela Jerónimo Martins), da água e das auto-estradas[9], sendo a existência de dez Câmaras Portuguesas de Comércio no Brasil exemplo claro da aproximação económica e, fundamentalmente, comercial[10]. Mas estes investimentos (bem como os espanhóis) estancanram no início do século XXI, em função do esgotamento das privatizações brasileiras e da criação de grandes empresas brasileiras designadamente na area das comunicações. Hoje, existe apenas, praticamente, investimentos portugueses resultantes do consórcio da Petrobrás em que a Galp Energia participa. Ademais, sempre foi muito menor o investimento brasileiro dirigido a Portugal, o qual se centra, especialmente, no sector bancário e financeiro, na construção civil e obras públicas, nos materiais para transporte e componentes de automóveis, nos cosméticos e nas actividades publicitária e editorial[11], sendo ainda de ressaltar a associação da TV Cabo portuguesa, primeiro com a TV Globo e, depois, com a TV Record brasileiras, para fornecimento, a Portugal, do canal dirigido pela estação brasileira através da rede de televisão por cabo. Existiu, na realidade, durante a década de 1990 do século XX, um interesse muito objectivo dos investidores portugueses no Brasil, resultado, essencialmente, das condições que a Administração brasileira imprimiu ao mercado nacional, não obstante as flutuações por que a economia do Brasil passou nos dois primeiros anos do século XXI, hoje já ultrapassadas.


Tendo sido importante na década de 1990, o relacionamento económico entre o Brasil e Portugal encontra-se hoje substancialmente reduzido, realizando-se os contactos em matéria de aproximação entre a União Europeia e o Mercosul. E isto, não obstante as relações bilaterais terem-se adensado no século XXI, em função da crise do multilateralismo, resultante da ineficiência da ONU, incapaz de conduzir o seu próprio processo de reforma, e da ineficiência da OMC, incapaz de levar a termo a Ronda de Doha; em função do reforço do Estado na América Latina, resultado dos efeitos nocivos provocados, nestas sociedades, pelo neoliberalismo e como reacção ao unilateralismo norte-americano; e em função da estratégia da assinatura de acordos de livre comércio, levada a efeito pelos EUA, à margem das negociações no seio da OMC.


Do ponto de vista da política internacional, o pragmatismo e o realismo têm determinado um maior encontro entre as duas diplomacias. Os pontos de contacto entre Portugal e o Brasil em matéria de agenda internacional são mais significativos e numerosos do que as fricções ou as arestas a limar. O embaixador de Portugal no Brasil, Francisco Seixas da Costa, nota, a este propósito, com agrado, que, do ponto de vista do reforço do sistema político-económico regional, Portugal, que acompanhou a formação do Mercosul, a densificação das suas políticas e o seu carácter embrionário para a integração regional do Cone Sul, reconheceu desde o primeiro momento as virtualidades do projecto para o desenvolvimento sócio-económico dos países envolvidos[12]. Sendo certo que, ao procurar reforçar a América do Sul através da integração regional – de que a recente criação da UNASUL, União Sul-Americana de Nações, é uma interessante evolução do ponto de vista da cooperação política regional – o Brasil está a contribuir para se afirmar, como grande país democrático que é, como potência regional central de articulação da vizinhança próxima, o que permitirá favorecer a prevenção de conflitos intra-regionais e contribuir para a criação de plataformas colectivas de diálogo que amenizem eventuais tensões internas nos Estados da região.

Com uma agenda internacional rica e complexa, o Brasil posiciona-se internacionalmente ainda através da defesa do sistema multilateral; aqui existindo, também, uma grande convergência com as posturas adoptadas por Portugal. Desde logo, ambos defendem a necessidade da reforma do sistema das Nações Unidas, no seio da qual o alargamento do Conselho de Segurança ganha especial relevância. Alargamento que deverá, segundo ambos, conceder ao Brasil o direito a um acento permanente no órgão. Também a perspectiva brasileira de conferir maior utilidade ao Conselho Económico e Social da Organização das Nações Unidas (ONU), de modo que este encontre o seu ponto de articulação com o Conselho de Segurança na prevenção de conflitos e nos processos de reconstrução pós-conflito merece o apoio da diplomacia lusa, assim como a generalização da cobertura do Tribunal Penal Internacional e do Acordo de Quioto e a finalização do quadro normativo de combate ao terrorismo internacional. Eventualmente, a transformação da Assembleia Geral da ONU num contra-poder do Conselho de Segurança, conforme proposta do presidente Lula, de modo que a Assembleia Geral assuma as suas responsabilidades na administração da paz e da segurança internacionais, não é um ponto de vista defendido por Portugal que é mais favorável ao reforço deste órgão no quadro da divisão onusiana de poderes[13]. A vocação brasileira para estabelecer acordos estratégicos com outros Estados do Sul é outra das prioridades da agenda internacional do Brasil, com a qual Portugal se solidariza.


Na verdade, convém a Portugal ligar-se o mais possível ao Brasil, para, de um relacionamento com um emergente, retirar dividendos politicos. A assunção do discurso fraternal, assente num património cultural e linguistico de mais de 500 anos é uma hipocrisia da política externa portuguesa, aceite como tal pela política externa brasileira. Até a importância frequentemente atribuída ao papel de Portugal e do Brasil no quadro inter-regional Mercosul e União Europeia é uma hipocrisia, pois o único interesse do Brasil era estabelecer um relacionamento próximo com a União Europeia, dentro da lógica da actual política externa brasileira de diversificar os parceiros. A partir do momento em que o conseguiu, a relevância de Portugal perdeu-se.


É verdade que as ligações entre a União Europeia e o Mercosul têm um historial já longo, sendo interesse de ambas as regiões vê-las estreitadas. É este o objectivo constantemente evocado pelo Fórum Euro-Latino-Americano que periodicamente se reúne com vista a constituir um ponto de encontro e de diálogo entre as comunidades política, empresarial, científica e diplomática das duas regiões. Do encontro realizado em São Paulo, em Julho de 1994, resultou claramente formulada a proposta de concretização de uma zona de comércio livre entre a União Europeia e o Mercosul, num projecto de regionalização aberta que o Fórum Europa e América Latina – Duas Formas de Integração Regional para o Século XXI, reunido em Novembro de 1996, bem como a Cimeira Ibero-Americana, realizada no Chile, também no final de 1996, vieram reforçar consideravelmente. Tudo demonstrando o profundo interesse da União Europeia em antecipar-se às investidas norte-americanas na região, desejosas de constituir, até 2005, a ALCA – Área de Livre Comércio das Américas, num projecto que agruparia os trinta e quatro países do continente americano. Assim seria assinado, em 1995, entre o Mercosul e a União Europeia, o Acordo Quadro de Cooperação Inter-Regional e institucionalizada, em 1999, a Cimeira Mercosul – União Europeia, a qual convive, nos primeiros anos do século XXI, com a Cimeira Euro-Latino-Americana e com a Cimeira Ibero-Americana.


É verdade que, se historicamente a União Europeia afirmou que apenas negociaria com um interlocutor institucional, em Julho de 2007 transformou o Brasil em seu parceiro estratégico, à semelhança do que já fazia para os EUA, Canadá, Japão, China, Índia e Rússia. Este estatuto garante ao Brasil a possibilidade de estabelecer, com a UE, um diálogo ao mais alto nível, o que significa que a União Europeia reconhece o Brasil como global player. Todavia, não é menos verdade que uma parceria, seja de que modelo for, entre o Brasil e a UE deverá estabelecer-se, não no plano dos Estados nacionais, mas antes no patamar colectivo das instituições supranacionais, isto é, o Mercosul e a União Europeia. Apesar deste relacionamento não satisfazer todas as demanadas do Brasil, especialmente no que diz respeito aos seus interesses comerciais, se o Brasil tem, hoje, como prioridade da sua política externa, a criação de coligações com os países do Sul, não só os emergentes, como também os da América do Sul, a singularização do seu relacionamento com a UE poderá levar à desagregação do Mercosul, até porque, depois de fracassados o bolivarianismo e as propostas integracionistas dos anos 1950, o único projecto de integração hoje disponível na região é o brasileiro. Por outro lado, ao negociar o seu próprio acordo com a União Europeia, o Brasil descura o Mercosul, o que, de alguma forma, poderá vir a pôr em causa a sua liderança regional. Neste sentido, deve ser a parceria UE-Mercosul a ser estimulada e não a parceria Brasil-UE, na tentativa de ultrapassar-se o impasse vigente nas negociações UE-Mercosul desde 2004.


Neste contexto, o Brasil e Portugal parecem dispor de vários canais de diálogo: para além do canal bilateral, a CPLP (que interessa a ambos), as cimeiras ibero-americanas, a cimeiras UE-América Latina e Caribe e o quadro inter-regional UE-Mercosul. No momento de crise do multilateralismo, o canal que tem sido privilegiado pela generalidade dos Estados é o bilateral. E, aqui, Portugal e o Brasil enfrentam sérios problemas.



Efectivamente, essencial, a relação Brasil-Portugal foi deixada enfraquecer, não só pelo cada vez mais evidente descaso da política externa brasileira face ao nosso país, como pela falta de estratégia de relacionamento com o Brasil da parte da política externa portuguesa e, sobretudo, desde a paragem da emigração portuguesa na primeira metade do século XX, e dos problemas que a imigração illegal de Brasileiros para Portugal tem criado ao nosso país, designadamente no que se refere ao aumento da criminalidade associada a cidadãos Brasileiros[14].


Na verdade, as relações Portugal-Brasil, hoje, não têm feito jus ao diálogo de mais de 500 anos e ao passado histórico subsequente. Não obstante o discurso official português ser recorrentemente o de conferir crescente relevância ao Atlântico no âmbito da política externa portuguesa, como tem, por diveresas vezes, afirmado o ministro português dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado, a verdade é que a concretização deste ideal não tem praticamente ocorrido, não só porque o Brasil não surge, para Portugal, como verdadeira prioridade da política externa lusa, voltada para a Europa Comunitária, para os EUA e para a África de expressão portuguesa, como também, e fundamentalmente, porque Portugal detém pouca importância para o Brasil, ocupando um lugar reduzido à história e à ligação cultural-afectiva na política externa brasileira.


Efectivamente, as prioridades actuais da política externa portuguesa centram-se, desde logo, na participação activa no sistema multilateral, designadamente nos centros de decisão da vida e das instituições mundiais, paralelamente à participação, igualmente activa, na construção europeia e nos espaços internacionais de manutenção da paz e da segurança internacionais – âmbito no qual Portugal procura desempenhar e desenvolver as suas responsabilidades. Há, ainda, um esforço da diplomacia portuguesa no sentido de relançar a política de cooperação, especialmente voltada para a África, porém tocando em outras regiões sensíveis do globo, como o Mediterrâneo, a Ásia-Pacífico, o Médio Oriente e, apenas marginalmente, embora com tendência para reforçar-se, a América Latina, e dentro desta, o Brasil – ainda que seja duvidosa a necessidade brasileira da ajuda portuguesa. Portugal tem enunciado, igualmente, como prioridade da recente política externa, o esforço para internacionalizar a economia portuguesa e bem ainda desenvolver uma Política Cultural Externa assente na valorização da Língua e da cultura portuguesas através da actuação no âmbito da CPLP, dos países de expressão oficial portuguesa, da valorização das comunidades portuguesas no mundo, do reforço das relações com o Brasil e da acção levada a cabo pelo Instituto Camões e pelos centros culturais, tudo em busca do desenvolvimento e da consolidação do conceito de Lusofonia. De ressaltar, ainda, o particular destaque que têm, para a política externa portuguesa, as relações com os EUA e, naturalmente, com a Espanha.

Não obstante estes objectivos, expressamente enunciados nos programas dos últimos governos constitucionais, a realidade da política externa portuguesa é bem distinta. Apenas marginal e deficientemente Portugal consegue dar conteúdo efectivo à concretização da política externa assim formulada. Particularmente no que tange ao Brasil, a ineficiência da política externa portuguesa é gritante, limitando-se ao discurso afectivo e cultural – e mesmo este deixando muito a desejar, sobretudo pela inacção do Instituto Camões na efectiva promoção da cultura e da Língua portuguesas. Mais do que ao descaso da política externa portuguesa face ao Brasil – que todavia não possui uma efectiva estratégia para pautar esse relacionamento – esta situação deve-se ao descaso da política externa brasileira relativamente a Portugal. Tanto assim é que a nível económico, o estímulo ao investimento português no Brasil (não obstante a substancial redução deste) tem sido, não apenas resultado da iniciativa privada, como uma verdadeira constante da política externa portuguesa, interessada em ultrapassar a retórica das relações bilaterais. Estas têm, todavia, arrefecido, pela diminuição da emigração portuguesa em direcção ao Brasil, pelas dificuldades que a imigração brasileira para Portugal e o aumento da criminalidade associada a cidadãos Brasileiros têm originado, pela falta de uma estratégia coerente e consequente da política externa portuguesa para o Brasil e, sobretudo, porque, hoje, o BRIC Brasil encontra-se, em termos de política externa, focalizado noutras matérias.


Efectivamente, a actual política externa brasileira não coloca Portugal como uma prioridade. Apostado numa inserção internacional logística, que, mantendo a abertura económica, reintroduz a intervenção estatal sempre que necessária, associando o liberalismo ao desenvolvimentismo, fundindo a doutrina clássica do capitalismo com o estruturalismo latino-americano, recuperando, neste sentido, a autonomia decisória sem deixar de actuar no sistema internacional vigente, nele procurando superar as assimetrias entre países desenvolvidos e emergentes[15], o Brasil volta-se, cada vez mais, para outros espaços de actuação. Nestes, ganham relevância as coligações anti-hegemónicas que a diplomacia brasileira vem articulando com os restantes países emergentes desde a reunião de Cancun, em 2003, no âmbito da Ronda de Doha da OMC. Desde logo, ressalta o G20, grupo de países composto pelos de maior peso da América do Sul, da África e da Ásia, liderado pelo Brasil. Igualmente liderado pela diplomacia brasileira surge, também desde 2003, a articulação com a Índia e a África do Sul no seio G3-Ibas; e a articulação com o Japão, a Alemanha e a Índia no âmbito do G4; enquanto a Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA) foi instituída em 2005, prelúdio do que, no primeiro trimestre de 2008, viria a ser a União Sul-Americana de Nações (UNASUL).


Com estas iniciativas, a diplomacia brasileira pretende contribuir para a formação da nova ordem internacional não polar[16], conformando-a à filosofia política de equalizar os benefícios nas relações internacionais e bem assim participar na reestruturação do sistema financeiro internacional, que a actual crise tem demonstrado estar obsoleto. Daqui advém o papel do Brasil como âncora da América do Sul e como actor global da sociedade internacional. A sua capacidade de influenciar o comércio internacional patenteia-se por meio do G20[17]; a sua capacidade para influir sobre a segurança internacional torna-se evidente no G4; a sua capacidade de fomentar a cooperação Sul-Sul entre os países emergentes surge evidente no G3-Ibas[18]. Ademais, o Brasil tem defendido o alargamento do G7 de modo a inclui-lo a ele e bem ainda a Rússia, a China, a Índia e o México. Assim, depois de, sem sucesso, o Brasil ter tentado contribuir para a formação da ordem internacional pós-Segunda Guerra Mundial (entre 1944 e 1949); depois de, também sem sucesso, ter procurado reformar o sistema multilateral erigido pelos EUA (entre 1960 e 1980); depois de, mediante o insucesso desta tentativa, ter optado por agir por dentro do multilateralismo construído, actuando no sistema em vez de reformá-lo (de 1990 a 2002); a política externa brasileira volta-se, desde 2003, para a acção sobre a ordem internacional visando estabelecer a reciprocidade, nas relações internacionais, entre os países ricos e os emergentes[19].

Assim, a política externa brasileira, mantendo a tendência da diversificação de parceiros, segue tentando contrapor-se à acção externa dos EUA que, durante a Administração de George W. Bush, deprimiu o multilateralismo na tentativa de manter as vantagens unilaterais das estruturas hegemónicas do capitalismo ocidental. A diplomacia de Lula tem contribuído, deste modo, para o reforço do multilateralismo, actuando em negociações comerciais que se desenrolam em três sectores do multilateralismo: no seio da OMC, no âmbito da edificação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e no quadro do estabelecimento de uma zona de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Tem contribuído, também, para o reforço do multilateralismo em outras áreas da esfera política e geopolítica, designadamente exigindo uma voz mais audível no seio do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial; a reforma das Nações Unidas e a candidatura brasileira a um assento permanente no Conselho de Segurança, assim como as diligências mais recentes para entrar para a Organização dos Países Produtores e Exportadores de Petróleo (OPEP), sendo de considerar, ainda, a participação do Brasil na liderança da Força de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (com 1 200 homens). Tem sido difícil obter a reciprocidade real entre países capitalistas e emergentes, o que tem justificado a aposta da diplomacia brasileira na participação activa no âmbito do multilateralismo regional expresso no sistema interamericano institucionalmente suportado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e pelo Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), ainda que este vector hemisférico ocupe uma importância secundária na actual política externa brasileira que, em termos regionais, prefere valorizar o fortalecimento da integração sul-americana, contexto no qual ganham relevo as relações em eixo com a Argentina e, ainda, o Chile, a Bolívia e a Venezuela. De igual modo, a política externa brasileira mantém relações crescentemente significativas com a África e o Médio Oriente, tentando ainda manter o trato cordial com os EUA – conforme aconselha a prudência do realismo e pragmatismo da diplomacia brasileira. Acima de tudo, a dificuldade em obter a reciprocidade nas relações internacionais tem justificado a aposta brasileira na aproximação entre os países emergentes consubstanciada em todas as coligações anti-hegemónicas que têm nascido sob sua liderança.


Neste sentido, é evidente o interesse brasileiro em potenciar a economia e o investimento nos restantes BRIC, até porque a globalização dos mercados, ao transformar o mundo numa pequena aldeia global, determina a rápida repercussão dos fenómenos. Desta forma, a capitalização da economia e do investimento na Rússia, na Índia e na China, por parte do Brasil, terá, certamente, efeitos benéficos para a economia brasileira, em pleno momento de expansão, pese embora o agravamento, nos últimos meses, da crise financeira despoletada, em meados de 2007, nos EUA, a propósito das subprime. Os fundamentos da economia brasileira têm-se apresentado sólidos para enfrentar esses distúrbios. Na sexta mensagem anual encaminhada, a 6 de Fevereiro de 2008, ao Congresso Nacional, por ocasião do início do ano legislativo, quando a Câmara e o Senado retomam oficialmente as actividades, após as férias de Verão, o presidente Lula, reconhecendo todavia a existência, no cenário internacional, de riscos para o crescimento da economia brasileira, avaliou, mesmo, que o impacto desse cenário sobre o país seria limitado, em virtude da “demanda doméstica robusta”[20] e da “solidez das contas externas”[21], tendo as Nações Unidas, em 2007, incluído o Brasil, pela primeira vez, no grupo de países com alto índice de desenvolvimento humano. O mesmo Brasil que, segundo informações oficiais de Fevereiro de 2008, torna-se hoje, pela primeira vez desde o fim da Segunda Guerra Mundial[22], credor internacional, em virtude do valor das suas reservas ser superior ao volume da dívida externa. O governo brasileiro espera que o crescimento do PIB do país, para 2009, se situe entre os 3,7% e os 3,8%[23] - um nível inferior ao esperado para os restantes BRIC, mais ainda assim bastante significativo para um país em desenvolvimento. A formação bruta de capital, no Brasil, aumentou expressivamente, os investimentos directos estrangeiros entraram em grande volume e as reservas internacionais do Brasil situam-se em USD 180 biliões, nível nunca antes alcançado pelo país. Ademais, o Brasil melhorou a sua capacidade de suportar os choques externos e o governo brasileiro prevê, mesmo, que o país, em até dez anos, assuma a liderança mundial na exportação de etanol e soja, superando inclusive os EUA no ranking do comércio internacional destes produtos, reforce a sua liderança na venda de açúcar e registe um salto nas exportações de milho[24]. O Brasil ultrapassou já os EUA em matéria de produção de ferro e café, tornando-se o maior produtor mundial destes bens, sendo ainda o maior produtor do mundo em biocombustíveis, sumo de laranja concentrado, carne de vaca e carne de aves[25]. O Brasil, uma das maiores democracias do mundo, largamente conhecido como o país do futuro, nunca alcançava esse futuro, em virtude das crises económicas e políticas. Agora, esta situação tem-se alterado. Galardoado como investment grade status pela Agência Financeira Standard & Poor[26], em Maio de 2008, o Brasil assume-se como um país sério, que tem adoptado políticas sérias, que cuida das finanças com seriedade, merecendo, por conseguinte, a confiança internacional, como Lula afirmaria após o anúncio da Standard & Poor[27]. As descobertas de petróleo que têm sido feitas pela Petrobrás contribuem para esta situação, podendo elevar o Brasil ao estatuto de grande produtor de petróleo. De acordo com o prestigiado jornal britânico The Guardian, «South America`s sleeping giant is finally waking up»[28].

Face a este panorama, Portugal ocupa um lugar marginal na política externa brasileira.


Em termos de análise realista da política internacional, convém ter em atenção que a geopolítica brasileira na era da globalização, assim como a emergência de interesses brasileiros diversificados e complexos fora do continente americano, fazem do Brasil um país extremamente importante para o futuro próximo. Sendo o Brasil um BRIC, detentor de uma política externa aguerrida que busca o reconhecimento do país como a potência regional da América Latina, reconhecida como potência média mundial; e tendo Portugal uma política externa que não ultrapassa os desígnios da gestão dos assuntos correntes, mormente europeus, com uma economia reduzida e um elevado grau de dependência ao nível das relações económicas internacionais, o relacionamento bilateral sofre com este desequilíbrio. As visões do mundo, o papel que cada qual se destina na sociedade internacional global, os objectivos e as expectativas da actuação externa são apercebidos de modo distinto por um e outro. A vontade de potência que o Brasil alimenta afincadamente não é partilhada por Portugal que, todavia, «cola-se» à potência brasileira vislumbrando obter algum peso na sociedade internacional global. Neste sentido, as relações luso-brasileiras surgem mais importantes para Portugal do que para o Brasil, cujo potencial económico lhe garante outra margem de actuação na cena internacional[29].


É pois essencial para os Portugueses ultrapassar a falta de estratégia para lidar com o Brasil e conhecer e compreender a visão brasileira do mundo, lutando para que as relações bilaterais ultrapassem o floreado literário e, da pieguice sentimental, evoluam para a mais-valia sócio-político-económica que encerre a actual hipocrisia destas relações.

Na verdade, nem sequer historicamente têm estas relações sido estrategicamente delineadas e capitalizadas em proveito mútuo. O início do relacionamento entre Portugal e o Brasil, após a proclamação da independência deste, em 1822, demonstrou-se, desde logo, conturbado. Apesar de relutante e intransigente quanto a condições prévias, D. João VI aceitou, porém, dar o passo inicial, numa tentativa frustrada ante a recusa brasileira em iniciar negociações sem o reconhecimento prévio da independência recentemente proclamada. O impasse seria ultrapassado, três anos mais tarde, graças à mediação britânica.


As relações luso-brasileiras continuaram, porém, a manifestar-se tensas, com o rompimento e o restabelecimento das mesmas a surgir como a constante caracterizadora deste período. Nem o acordo comercial de 1836, nem os acordos sobre navegação e o estatuto dos agentes consulares, de alguns anos depois, nem a mediação portuguesa para o reatamento das relações entre o Brasil e a Grã-Bretanha, de 1861/1866, nem o acordo de extradição assinado entre os dois países em 1872[30], tampouco as visitas realizadas pelo imperador D. Pedro II a Portugal, em 1871 e 1877, e o reconhecimento, por Portugal, em 1890, do regime republicano no Brasil, foram capazes de estabelecer, de forma duradoura, o clima de cooperação e de amizade entre os dois países.

Foi apenas depois de estabilizado o clima político interno brasileiro, na sequência da proclamação da república, que as relações luso-brasileiras entrariam numa fase de melhor desenvolvimento, designadamente com a visita, a Portugal, do presidente eleito do Brasil, Manuel Ferraz Campos Sales, em 1898, a primeira de uma série de visitas mútuas que, a partir de então, teriam lugar, entre os chefes de Estado e de Governo dos dois países. Paralelamente, o Brasil reconhecia o novo regime português, saído da revolução republicana, Gago Coutinho e Sacadura Cabral realizavam a primeira viagem aérea ligando o Brasil e Portugal, em 1922 e diversos acordos eram assinados entre os dois países, no ambiente de cooperação e amizade surgido havia pouco.
A 15 de Agosto de 1947, porém, o governo da União Indiana declarou, unilateralmente, a incorporação, à União, dos territórios que Portugal mantinha na península hindustânica, despoletando, para Portugal, a questão colonial, que ensombraria as relações luso-brasileiras.


Admitido, em Dezembro de 1955, como membro das Nações Unidas, Portugal assistiu, também, à transferência do debate colonial para o palco da Assembleia Geral, onde se iniciava, simultaneamente, uma acesa campanha contra a política colonial portuguesa.


Durante os governos de Getúlio Vargas, Café Filho e Juscelino Kubitschek, os representantes brasileiros nas Nações Unidas defenderam sempre a posição do governo português, o que possuía um valor político inestimável, dado o Brasil ter sido uma colónia de Portugal e ser um dos países mais importantes da América Latina e de todo o conjunto dos países em desenvolvimento. Exaltando a missão civilizadora de Portugal nos continentes asiático, africano e americano, o Brasil defendeu a tese de que Portugal não possuía colónias, mas sim Províncias Ultramarinas[31].


A subida ao poder, no Brasil, de Jânio Quadros alterou totalmente a posição brasileira em relação ao problema colonial português. Ex-governador de São Paulo, centro dos interesses cafeeiros do país, o novo presidente mostrava-se sensível à defesa desses interesses na arena internacional, sobretudo num momento de crise aguda do café, resultado da concorrência do café africano. Por outro lado, de tendências esquerdizantes, Jânio Quadros pretendia o restabelecimento das relações do Brasil com a União Soviética e apoiava o regime de Fidel Castro, para além de considerar-se especialmente apto ao estabelecimento da ligação entre o mundo afro-asiático e o mundo ocidental, atitudes incompatíveis com a defesa das posições coloniais portuguesas no fórum internacional de debate por excelência.

Os presidentes brasileiros que se seguiram em nada alteraram a postura anticolonial do Brasil, o que manteve, por algum tempo ainda, o impasse político no relacionamento entre os dois países.
A revolução portuguesa de 25 de Abril de 1974 e o processo de descolonização fizeram, contudo, emergir a tensão, sem se chegar ao corte efectivo das relações. Efectivamente, o governo brasileiro foi o primeiro a reconhecer o novo regime político português, com o objectivo de ver-se associado ao processo de descolonização imediatamente iniciado, para nele ter uma participação activa. O novo governo português, porém, frustrou as expectativas do Itamaraty, ao abster-se de manifestar qualquer gesto indicativo do desejo de associar o Brasil ao processo descolonizador. O Brasil resolveu, então, reconhecer a Guiné-Bissau como Estado independente, em Julho de 1974, facto que causou o desagrado de Portugal, seguindo-se uma série de reparos entre ambos os governos.


Durante o período revolucionário em Portugal e até que o processo da descolonização fosse encerrado, as relações luso-brasileiras viram-se negativamente afectadas pela conturbada condução da política portuguesa, a que a política externa não pôde, certamente, esquivar-se. Os mal-entendidos entre Portugal e o Brasil sucederam-se, até que a restauração da normalidade constitucional em Portugal propiciasse novamente o entendimento entre ambos os países. Os sucessivos governos constitucionais portugueses reassumiram o Brasil como parte integrante, de fundamental importância, da política externa Portuguesa, sendo particularmente relevante, para Portugal, a assinatura, precisamente no dia em que se comemoraram os 500 anos da chegada de Pedro Álvares Cabral ao Brasil (22 de Abril de 2000), do Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta[32]. Institucionalizando as relações entre Portugal e o Brasil em todas as áreas, o Tratado cria uma Comissão Permanente Luso-Brasileira[33] destinada a acompanhar a execução do Tratado, sendo composta por cinco altos funcionários dos ministérios dos Negócios Estrangeiros de Portugal e das Relações Exteriores do Brasil. Em matéria de cooperação económica[34], o Tratado estabelece a promoção para o desenvolvimento e a diversificação das relações económicas e financeiras mútuas mediante uma crescente cooperação, para dinamizar e modernizar as respectivas economias. E, dentre as iniciativas para viabilizar esses objectivos, o Tratado propõe[35]fomentar a cooperação entre empresas brasileiras e portuguesas na realização de projectos comuns de investimento, através da constituição de joint ventures, privilegiando as áreas de integração económica em que os dois países se enquadram.





[2] A tese dos BRIC foi defendida por Jim O`Neill, economista do Grupo Goldman Sachs, Building Better Global Economic Brics, Global Economics Paper nº 66, 30 de Novembro de 2001. Tese que viria a ser desenvolvida posteriormente em WILSON, Dominic e PURUSHOTHAMAN, Roopa; Dreaming with BRICs: The Path to 2050, Global Economics Paper nº 99, 1 de Outubro de 2003.
[3] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; A Diplomacia Económica na Política Externa Brasileira, in Reflexões Brasilianistas e Sul-Americanistas, http://www.brasil-americadosul.blogspot.com/, pp.1.
[4] Cfr. MOREIRA, Adriano; Os Cinco Princípios e a Herança Portuguesa, in Estratégia – Estudos em Homenagem ao Prof. Doutor Óscar Soares Barata, Vol. XV, Instituto Português da Conjuntura Estratégica e Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas, Lisboa, 2005, pp. 33-38, pp.35.
[5] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; Uma Reflexão Sobre o Brasil Contemporâneo, in MOREIRA, Adriano e PINTO RAMALHO, Revista Estratégia, vol. XVII, Instituto Português da Conjuntura Estratégica, Lisboa, 2008, pp. 423-442, pp. 426. Vale lembrar que a Energias do Brasil, holding do sector elétrico controlada pela EDP (Energias de Portugal), anunciou a 2 de maio de 2008, a criação de uma unidade que reunirá empreendimentos de energias renováveis na América do Sul, a Enernova. A empresa vai administrar projectos e concessões de Pequenas Centrais Hidroelétricas, usinas de biomassa e parques eólicos.Com a meta de alcançar a capacidade de produção de 1.000 MW (megawatts) até 2012, a Enernova apresentará, ainda este ano, 24 projectos para construção de Pequenas Centrais Hidroeléctricas à Agência Nacional de Energia Eléctrica, que vão adicionar 543 MW ao seu portfólio de geração de energia. A Enernova absorveu da Energest 13 Pequenas Centrais Hidroeléctricas, uma delas em construção, em Mato Grosso do Sul e no Espírito Santo, com capacidade de geração total de 159MW.In Boletim de Informação Diplomática do Ministério português dos Negócios Estrangeiros, 3 de Março de 2008.
[6] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; As Relações em Eixo Franco-Alemãs e as Relações em Eixo Argentino-Brasileiras – Génese dos Processos de Integração, ISCSP, Lisboa Julho de 2007, pp. 54.
[7] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; Uma Reflexão Sobre o Brasil Contemporâneo, in MOREIRA, Adriano e PINTO RAMALHO, Revista Estratégia, vol. XVII, Instituto Português da Conjuntura Estratégica, Lisboa, 2008, pp. 423-442, pp. 426.
[8] Cfr. CERVO, Amado Luiz e CALVET MAGALHÃES, José; depois das Caravelas – As Relações entre Portugal e o Brasil 1808-2000, Instituto Camões, 1ª edição, Lisboa, 2000, pp. 268.
[9] Cfr. Idem, pp. 268-269.
[10] Cfr. Boletim de Informação Diplomática do Minsitério português dos Negócios Estrangeiros de 3 de Maio de 2008. De referir que a décima primeira Câmara Portuguesa de Comércio no Brasil foi já prevista para ser criada no Rio Grande do Norte.
[11] Cfr. RAMOS SILVA, Joaquim; A Viragem dos Anos 90 – Relações Económicas Luso-Brasileiras, Quetzal Editora, 1ª edição, Lisboa, 1999, pp. 156.
[12] Cfr. SEIXAS DA COSTA, Francisco; Portugal e a Política Externa Brasileira, in Política Internacional – O Brasil de Lula: Retrospectiva 2003-2005, Perspectiva 2006, nº 29, II Série, Novembro de 2005, pp. 65.
[13] Cfr. Idem, pp. 66-67.
[14] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; Brasil – Portugal: Um Diálogo de Mais de 500 Anos, Revista CEPESE, Porto, 2008.
[15] Cfr. CERVO, Amado Luiz; Inserção Internacional – Formação dos Conceitos Brasileiros, Editora Saraiva, 1ª edição, São Paulo, 2008, pp. 85.
[16] Cfr. HAASS, Richard; the Age of Nonpolarity – What Will Follow U.S. Dominance?, Foreign Affairs, Maio/Junho de 2008. Vide também: HAASS, Richard; Ask the Expert: What Comes After Unipolarity?, Financial Times, Abril de 2008; na Era Não-Polar, os EUA Não Podem Mais Ser Sozinhos, entrevista de Sérgio Dávila a Richard Haass para a Folha de São Paulo de 12 de Maio de 2008.
[17] O G20 reuniu-se em Washington, a 8 de Novembro de 2008, tendo o presidente Lula exigido que ao Brasil seja concedido um papel mais significativo nas questões mundiais.
[18] Cfr. CERVO, Amado Luiz; op. Cit., pp. 108.
[19] Cfr. Idem, 95 à112.
[20] Cfr. LULA DA SILVA, Mensagem encaminhada ao Congresso Nacional, 6 de Fevereiro de 2008.
[21] Cfr. LULA DA SILVA, Mensagem encaminhada ao Congresso Nacional, 6 de Fevereiro de 2008.
[22]No final da Segunda Guerra Mundial, houve um curto período em que o Brasil também viveu o papel de credor internacional. Durante o conflito, o país havia acumulado um grande saldo externo, que o governo Vargas pretendia utilizar como recurso para a recuperação tecnológica da indústria. Entretanto, porém, em apenas dois anos (1946 e 1947), a política económica liberal do presidente Eurico Gaspar Dutra, de liberdade cambial e abertura do mercado nacional, gastou aquelas reservas com a importação livre de supérfluos, fazendo regredir a situação creditícia que o Brasil teve por um curto espaço de tempo. Hoje, a dívida externa volta a ser inferior às reservas nacionais, como não sucedia no país desde o fim do Segundo Grande Conflito Mundial. Mas a situação actual tem também uma forte fragilidade, em razão do crescimento da dívida interna, remunerada a juros extremamente elevados, e do papel do investimento estrangeiro, que se beneficia daqueles juros, na formação das reservas. Esta situação origina uma grande emissão de títulos federais para ''esterilizar'' o meio circulante dos Reais constantemente emitidos para fazer o câmbio. Os títulos assim emitidos a juros altos são comprados pelos aplicadores, sendo a diferença custeada pela emissão de mais títulos e pela maior necessidade de superavite primário no orçamento público. Assim, enquanto é criado património financeiro privado, a dívida pública interna vai crescendo, decorrente de uma política monetária muito restritiva, que não permite que os Reais assim gerados circulem na economia financiando a produção e aumentando o consumo. Em resumo, se as taxas de juros não fossem tão altas e a política monetária mais expansiva, a atracção do ganho fácil não traria tantos Dólares ao Brasil, mas haveria mais Reais em circulação e menos dívida pública a sufocar o Estado brasileiro. A política económica, que ajudou a gerar a grande reserva externa, é, assim, também, a responsável pela própria fragilidade. Na verdade, no passado, a confortável situação de credor internacional durou, para o Brasil, apenas dois anos. Quantos irá durar a situação actual?
[23] Em 2007, a previsão da Administração Lula era de um crescimento do PIB de 5%. No final de Agosto de 2008, esse valor baixou para 4,5%, tendo o governo actualizado as previsões, no final de Novembro de 2008, para cerca de 3,7% e 3,8%, pela voz do ministro Paulo bento, do Planejamento.
[24] O boom das commodities, designadamente de soja, é particularmente relevante no estado do Mato Grosso, que se transformou na vanguarda da marcha brasileira em direcção a um novo lugar na sociedade internacional global.
[25] Cfr. BRIDGES, Tyler; Brazil no Longer Longo n Potential and Short on Performance, in Miami Herald, 12 de Novembro de 2008.
[26] Cfr. The Country of the Future Finally Arrives, in secção financeira do The Guardian, 10 de Maio de 2008, pp. 41.
[27] Afirmação de Lula, in idem, ibidem.
[28] Cfr. Idem, ibidem.
[29] Cfr. RAMOS SILVA, Joaquim; Portugal/Brasil – Uma Década de Expansão das Relações económicas, 1992/2002, Editora Terramar, 1ª Edição, Lisboa, 2002, pp. 42.
[30] Cfr. Base de dados da Divisão de Atos Internacionais – DAI do Ministério das relações Exteriores do Brasil.
[31] Cfr. VIZENTINI, Paulo Fagundes; Relações Internacionais do Brasil – de Vargas a Lula, Editora da Fundação Perseu Abramo, São Paulo, Janeiro de 2003, pp. 63.
[32] Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre a República Portuguesa e a República Federativa do Brasil, assinado em Porto Seguro, a 22 de Abril de 2000. Com 79 artigos, o Tratado revoga ou ab-roga, de acordo com o 78º artigo, o Acordo para a Supressão de Vistos em Passaportes Diplomáticos, de 1951; o Tratado de Amizade e Consulta, de 1953; o Acordo sobre Vistos em Passaportes Comuns, de 1960; o Acordo Cultural, de 1966, assim como o respectivo Protocolo Adicional, de 1971; a Convenção sobre Igualdade de Direitos e Deveres, de 1971; o Acordo para a abolição do pagamento da taxa de residência, de 1979; o Acordo Quadro de Cooperação, de 1991 e o Acordo relativo à Isenção de Vistos, de 1996.
[33] Cfr. Art. 69º doTratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre Portugal e o Brasil.
[34] Cfr. Art. 49º, título IV, do Tratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre Portugal e o Brasil.
[35] Cfr. Art. 52º doTratado de Amizade, Cooperação e Consulta entre Portugal e o Brasil

Tuesday, November 18, 2008

O BRIC Brasil

O BRIC BRASIL


No actual mundo globalizado, onde reina uma nova ordem internacional amplamente caracterizada pela emergência dos países em desenvolvimento, são crescentes as dificuldades destes em retomar uma trajectória de desenvolvimento acelerado e continuado.
Não obstante, alguns destes países periféricos têm vindo a ganhar relevância sobre a dinâmica social contemporânea, num processo de desenvolvimento económico que levou Jim O`Neill, economista do Grupo Goldman Sachs, a falar dos BRIC para se referir, sugestivamente, ao Brasil, à Rússia, à Índia e à China, com base na tese segundo a qual as economias destes países têm-se desenvolvido de tal forma que, no ano 2050, virão a eclipsar os países hoje mais ricos do globo[1].
O Brasil detém, neste sentido, e pelo peso geo-económico e demográfico, pela dimensão do mercado interno, pela avaliação dos indicadores económicos e políticos, bem como da imensidade dos problemas e desafios, e bem assim dos atributos tradicionais do poder que vai exercendo[2], a capacidade natural de líder regional e continental, daqui resultando a sua importância como actor efectivamente actuante das relações internacionais e como âncora regional na América do Sul.
Quase duas décadas volvidas desde o derrube do muro de Berlim – e subsequentes transformações registadas no Leste do Velho Continente – o mundo continua a alterar-se velozmente. As relações internacionais adquirem um significado especial, diferente do quadro realista que desde a Segunda Guerra Mundial tem marcado a evolução da ordem mundial e do seu sistema internacional. Não é certo que o sistema dito westphaliano tenha desmoronado, tampouco que o Estado esteja prestes a desaparecer como actor das relações internacionais. O que tem ocorrido é uma transformação profunda daquele sistema, bem como do sentido que pode hoje atribuir-se ao Estado. A clássica potência territorial e político-militar vê alterarem-se as funções, outrora especificamente consideradas prerrogativas exclusivas da sua soberania. As funções de regulação económica são, em parte, transferidas para organizações internacionais, para espaços regionais organizados e, até mesmo, para actores privados, o que ocorre mesmo em relação ao poder régio de emitir moeda, que os Estados da União Europeia já foram levados a não mais assumir. Ainda assim, o Estado continua com a função de assegurar a competitividade das suas empresas e, de forma mais ortodoxa, vê imporem-se novas funções macroeconómicas, como a acção anti-inflacionária, a gestão das finanças públicas, o respeito pelos grandes equilíbrios, entre outros. E o Brasil de Lula, na definição de um Estado Logístico[3], tem sido ímpar na formulação e execução de uma política interna e externa condizente com essa nova funcionalidade. As funções sociais e culturais ultrapassam também as fronteiras nacionais, porque os problemas são globais e é globalmente que têm de ser solucionados. As organizações humanitárias e ecológicas, os movimentos sociais transfronteiriços, as organizações não governamentais de um modo geral proliferam para fazer-nos lembrar disso. As funções protectoras dos Estados estão também em mutação. A falência dos modelos europeus do Welfare State estão aí para o demonstrar. Até mesmo a era da monopolização da guerra pelos Estados chega ao fim, com a relação entre violência e política totalmente alterada. Os movimentos terroristas o comprovam. Estrutura-se, depois da ordem internacional unipolar, dominada pelos EUA, um non-polar world, seguindo a análise de Richard Haass[4]. É evidente que o Estado continua a existir, mas com funções diferentes ainda não interiorizadas. Os aparelhos de Estado estão ainda despreparados para a nova realidade desprovida de pólos e a relativização do princípio territorial, que multiplica os espaços nos quais as aspirações e as opções políticas podem ocorrer, ainda não é tranquilamente visto como dado adquirido. É complexa a relação entre as reivindicações identitárias e o território, já que, de um lado, a multiplicação dos espaços criados pela mundialização fragiliza a relação Estado-cidadão e, por outro, as reivindicações nacionalistas proliferam, obrigando à consolidação de espaços políticos no interior de uma entidade territorial que carece de novas estruturas. As forças centrípetas, que jogam em favor da união em espaços internacionais alargados chocam com as forças centrífugas que fluem em direcção ao desmoronamento de Estados outrora organizados (como ocorreu na Jugoslávia, na Checoslováquia, na União Soviética, para citar apenas alguns exemplos, de uma realidade que abunda ainda hoje). Assim, ao que assistimos é hoje mais do que a coexistência, proclamada por Rosenau, entre o sistema estato-centrado, o sistema internacional e o sistema multicentrado descentralizado. É à interpenetração de todos os três, feita de concorrência e de cumplicidade, ainda por estruturar. Não só ocorre hoje a ruptura entre o interno e o externo, como a própria distinção é obsoleta. A compreensão das novas relações internacionais exige, pois, que se vá além da territorialidade. Não são os lugares fixos que definem as sociedades, antes as interacções que ocorrem em determinada área da actividade humana, mesmo que esta continue estruturada, sobretudo, em Estados Soberanos Territoriais. Paralelamente a esta transformação espacial das relações internacionais, a compreensão do tempo mundial é hoje também diferente, havendo uma articulação entre a longue dureé e o acontecimento; enquanto os actores se multiplicam no espaço internacional. A sociedade internacional global substitui hoje, com base nestas transformações, a imagem da sociedade internacional. Ela é heterogénea, multicentrada e busca um espaço público de regulação assente na cooperação internacional. Esta constitui o pano de fundo que tem servido à mundialização económica e à liberalização das trocas em escala mundial que busca um novo multilateralismo (Robert Cox) e um modelo de democracia cosmopolita (Daniele Archibugi), tomando por base a convergência das civilizações do Padre Teilhard de Chardin, que Almerindo Lessa haveria de explicar aos Companheiros da Sociedade Teilhard de Chardin. Numa convergência concordante com a lei da complexidade crescente que o próprio Chardin havia já proposto. A cooperação internacional surge, desta forma, num dos espaços centrais das relações internacionais, aqui residindo a mais recente atracção pela regionalização e pelos processos de integração regional, que permitem ultrapassar a rigidez das fronteiras estatais, incapazes de enquadrar as novas interacções, e introduzem uma dimensão intermédia entre o espaço nacional e o espaço mundial, assente em identificações identitárias que se assumem como base das relações em eixo[5], elemento essencial para a génese, evolução e consolidação da integração regional, na estruturação do non-polar world de Haass.
Neste contexto, ganham relevância as coligações anti-hegemónicas que a diplomacia brasileira vem articulando com os restantes países emergentes desde a reunião de Cancun, em 2003, no âmbito da Ronda de Doha da OMC. Desde logo, ressalta o G20, grupo de países composto pelos de maior peso da América do Sul, da África e da Ásia, liderado pelo Brasil. Igualmente liderado pela diplomacia brasileira surge, também desde 2003, a articulação com a Índia e a África do Sul no seio G3-Ibas; e a articulação com o Japão, a Alemanha e a Índia no âmbito do G4; enquanto a Comunidade Sul-Americana de Nações (CASA) foi instituída em 2005, prelúdio do que, no primeiro trimestre de 2008, viria a ser a União Sul-Americana de Nações (UNASUL).
Com estas iniciativas, a diplomacia brasileira pretende contribuir para a formação da nova ordem internacional não polar, conformando-a à filosofia política de equalizar os benefícios nas relações internacionais e bem assim participar na reestruturação do sistema financeiro internacional, que a actual crise tem demonstrado estar obsoleto. Daqui advém o papel do Brasil como âncora da América do Sul e como actor global da sociedade internacional. A sua capacidade de influenciar o comércio internacional patenteia-se por meio do G20[6]; a sua capacidade para influir sobre a segurança internacional torna-se evidente no G4; a sua capacidade de fomentar a cooperação Sul-Sul entre os países emergentes surge evidente no G3-Ibas[7]. Ademais, o Brasil tem defendido o alargamento do G7 de modo a inclui-lo a ele e bem ainda a Rússia, a China, a Índia e o México. Assim, depois de, sem sucesso, o Brasil ter tentado contribuir para a formação da ordem internacional pós-Segunda Guerra Mundial (entre 1944 e 1949); depois de, também sem sucesso, ter procurado reformar o sistema multilateral erigido pelos EUA (entre 1960 e 1980); depois de, mediante o insucesso desta tentativa, ter optado por agir por dentro do multilateralismo construído, actuando no sistema em vez de reformá-lo (de 1990 a 2002); a política externa brasileira volta-se, desde 2003, para a acção sobre a ordem internacional visando estabelecer a reciprocidade, nas relações internacionais, entre os países ricos e os emergentes[8].
Assim, a política externa brasileira, mantendo a tendência da diversificação de parceiros, segue tentando contrapor-se à acção externa dos EUA que, durante a Administração de George W. Bush, deprimiu o multilateralismo na tentativa de manter as vantagens unilaterais das estruturas hegemónicas do capitalismo ocidental. A diplomacia de Lula tem contribuído, deste modo, para o reforço do multilateralismo, actuando em negociações comerciais que se desenrolam em três sectores do multilateralismo: no seio da OMC, no âmbito da edificação da Área de Livre Comércio das Américas (ALCA) e no quadro do estabelecimento de uma zona de livre comércio entre a União Europeia e o Mercosul. Tem contribuído, também, para o reforço do multilateralismo em outras áreas da esfera política e geopolítica, designadamente exigindo uma voz mais audível no seio do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Mundial; a reforma das Nações Unidas e a candidatura brasileira a um assento permanente no Conselho de Segurança, assim como as diligências mais recentes para entrar para a Organização dos Países Exportadores de Petróleo (OPEP), sendo de considerar, ainda, a participação do Brasil na liderança da Força de Estabilização das Nações Unidas no Haiti (com 1 200 homens). Tem sido difícil obter a reciprocidade real entre países capitalistas e emergentes, o que tem justificado a aposta da diplomacia brasileira na participação activa no âmbito do multilateralismo regional expresso no sistema interamericano institucionalmente suportado pela Organização dos Estados Americanos (OEA) e pelo Tratado Interamericano de Assistência Recíproca (TIAR), ainda que este vector hemisférico ocupe uma importância secundária na actual política externa brasileira que, em termos regionais, prefere valorizar o fortalecimento da integração sul-americana, contexto no qual ganham relevo as relações em eixo com a Argentina e, ainda, o Chile, a Bolívia e a Venezuela. De igual modo, a política externa brasileira mantém relações crescentemente significativas com a África e o Médio Oriente, tentando ainda manter o trato cordial com os EUA – um trato revitalizado com a eleição de Barack Obama para presidente norte-americano. Acima de tudo, a dificuldade em obter a reciprocidade nas relações internacionais tem justificado a aposta brasileira na aproximação entre os países emergentes consubstanciada em todas as coligações anti-hegemónicas que têm nascido sob sua liderança.
Neste sentido, é evidente o interesse brasileiro em potenciar a economia e o investimento nos restantes BRIC, até porque a globalização dos mercados, ao transformar o mundo numa pequena aldeia global, determina a rápida repercussão dos fenómenos. Desta forma, a capitalização da economia e do investimento na Rússia, na Índia e na China, por parte do Brasil, terá, certamente, efeitos benéficos para a economia brasileira, em pleno momento de expansão, pese embora o agravamento, nos últimos meses, da crise financeira despoletada, em meados de 2007, nos EUA, a propósito das subprime. Os fundamentos da economia brasileira têm-se apresentado sólidos para enfrentar esses distúrbios que, não tarda, degenerarão em crise económica a nível mundial – basta pensar que, a 13 de Novembro, o governo alemão declarou a falência técnica da economia alemã, em virtude de se ter registado, consecutivamente, nos dois últimos trimestres, o crescimento negativo do PIB alemão, ultrapassando o desemprego os 3%, ainda que, no dia seguinte, o governo francês tenha vindo a público ressaltar que a economia da França não entrou em recessão técnica, em virtude do crescimento do PIB no último trimestre, ainda que modesto (cerca de 1%). O governo brasileiro espera que o crescimento do PIB do país, para 2009, seja de cerca de 4% - um nível inferior ao esperado para os restantes BRIC, mais ainda assim bastante significativo para um país em desenvolvimento. A formação bruta de capital, no Brasil, aumentou expressivamente, os investimentos directos estrangeiros entraram em grande volume e as reservas internacionais do Brasil situam-se em USD 180 biliões, nível nunca antes alcançado pelo país. Ademais, o Brasil melhorou a sua capacidade de suportar os choques externos e o governo brasileiro prevê, mesmo, que o país, em até dez anos, assuma a liderança mundial na exportação de etanol e soja, superando inclusive os EUA no ranking do comércio internacional destes produtos, reforce a sua liderança na venda de açúcar e registe um salto nas exportações de milho[9]. O Brasil ultrapassou já os EUA em matéria de produção de ferro e café, tornando-se o maior produtor mundial destes bens, sendo ainda o maior produtor do mundo em biocombustíveis, sumo de laranja concentrado, carne de vaca e carne de aves[10]. O Brasil, uma das maiores democracias do mundo, largamente conhecido como o país do futuro, nunca alcançava esse futuro, em virtude das crises económicas e políticas. Agora, esta situação tem-se alterado. Galardoado como investment grade status pela Agência Financeira Standard & Poor[11], em Maio de 2008, o Brasil assume-se como um país sério, que tem adoptado políticas sérias, que cuida das finanças com seriedade, merecendo, por conseguinte, a confiança internacional, como Lula afirmaria após o anúncio da Standard & Poor[12]. As descobertas de petróleo que têm sido feitas pela Petrobrás contribuem para esta situação, podendo elevar o Brasil ao estatuto de grande produtor de petróleo. De acordo com o prestigiado jornal britânico The Guardian, «South America`s sleeping giant is finally waking up»[13]. O receio inicial de que a ascensão de um torneiro-mecânico e líder sindical à Presidência do Brasil viesse conduzir o país a uma direcção socialista, sentido durante toda a campanha de 2002 – tendo inclusive causado a queda do Real e enfraquecido de algum modo a economia brasileira – desapareceu assim que, uma vez no poder, Lula adoptou políticas económicas liberais – aprofundando inclusive a orientação neoliberal do antecessor Fernando Henrique Cardoso – o que, aliado às políticas sociais que praticamente iniciou no Brasil, rapidamente restauraram a confiança internacional no Brasil e a credibilidade do país, levando-o a um crescimento económico espectacular.
De modo geral, os BRIC funcionam de forma muito pragmática, tendo a economia como vector essencial em torno do qual guiam a sua política externa. Alcançando o poder económico que lhes permite actuar na política internacional, é através dele que, também de modo pragmático, administram as fricções na sociedade internacional global, numa lógica que busca, na cooperação, a melhor maneira de potencializar esse poder.
Seguindo esse pragmatismo, as relações entre os BRIC centram-se eminentemente no domínio económico. É neste vector que tais relações ocorrem, assim como é neste vector que se processa o entendimento entre estes actores das relações internacionais, até porque o entrecruzamento dos interesses aconselha ao relacionamento próximo, em nome da satisfação dos interesses nacionais de cada parte – na maioria das vezes, é mesmo a satisfação individual desses interesses, de forma egoísta, que sugere a necessidade destes Estados se relacionarem pacífica e proximamente. Em níveis que ultrapassam o económico, o acordo não se regista e, por conseguinte, o estabelecimento de relações surge difícil. Efectivamente, os BRIC não formam um agrupamento institucionalizado de países – à semelhança da União Europeia ou do Mercosul – nem a nível político, nem a nível comercial, tampouco a nível militar. É bem verdade que ocorreu, em Moscovo, em Maio de 2008, a primeira reunião formal entre os Quatro, visando criar as condições de coordenação quadrilateral que lhes permita adquirir peso e relevância nas decisões internacionais e, simultaneamente, contribuir para a estruturação de um sistema internacional democrático e multilateral, fundado sobre o direito. A institucionalização dos BRIC, todavia, surge ainda ténue no horizonte próximo da sociedade internacional. Não impossível, muito menos improvável, apenas distante ainda. Essencialmente, porque há todo um trabalho que tem de ser executado. Afinal de contas, os Quatro divergem em quase todos os temas importantes da agenda multilateral. A Rússia não é membro da OMC e a sua importância no cenário internacional advém, praticamente, dos preços recordes do petróleo e do gás, bem como das ogivas nucleares do país, o que cria alguns entraves à previsão do que poderá vir a ser a Rússia de Medvedev e Putin em 2050. A Índia, por seu lado, crê-se que virá a tornar-se numa das principais bases industriais e tecnológicas do mundo, enquanto a China dividirá, com os Estados Unidos, o primeiro lugar no ranking das maiores economias do mundo em 2050, afirmando-se como base industrial, base tecnológica e potência militar. Ao Brasil cabe o destino de tornar-se no maior fornecedor de proteína animal e vegetal, açúcar, etanol e alimentos. Mas o caminho até alcançarem este patamar é longo e tortuoso. Os sistemas políticos terão de ser adaptados, as reservas de água controladas e o problema da poluição ultrapassado através da adopção das políticas correctas. No caso particular do Brasil, terão de ser revistos e reformados a infraestrutura, o sistema tributário e o sistema trabalhista. Ademais, a existência de BRIC ricos e pobres, privado e público, poderá tornar-se um obstáculo à prossecução dos objectivos dessas economias emergentes.
Por outro lado, é evidente que existem riscos associados à oferta, pela banca, de uma vasta carteira de investimentos nos mercados dos BRIC. Riscos esses que se prendem, especialmente, com a volatilidade desses mercados, que associada, muitas vezes, à instabilidade das respectivas sociedades, gera insegurança nos investidores. Sabe-se, todavia, que os mercados de investimento de risco são, também, os mais apetecíveis, dadas as possibilidades de retorno que apresentam. Os riscos não parecem, pois, pôr em causa os fluxos de investimento directo estrangeiro nos BRIC. Embora existam, de facto. Assim como, além da volatilidade dos respectivos mercados e da instabilidade das respectivas sociedades, não são de esquecer as vulnerabilidades acrescidas em função da dificuldade em transformarem o crescimento económico num efectivo desenvolvimento económico que abranja níveis elevados de investimento em IDT.
Os próprios problemas actuais relativos à energia, ao ambiente e à tecnologia demonstram, sem grande margem para erro, que os BRIC não têm, ainda, desenvolvido todos os esforços necessários nessas matérias. Embora muito venha sendo feito, de há uns anos a esta parte, a verdade é que muito tem, ainda, de ser feito, para que se evitem as constantes crises energéticas, para que se alcance o desenvolvimento ambientalmente sustentável e para que os BRIC consigam, efectivamente, alcançar o patamar tecnológico que lhes confira a independência relativamente aos países ricos. Dependência que ainda possuem, tanto em matéria tecnológica, quanto ambiental, quanto, mesmo, energética (porque não chega ter as fontes de energia; é necessário ter, também, a tecnologia que permita trabalhar essas fontes).
Por estas razões, para já, é difícil acreditar que os BRIC consigam institucionalizar algum tipo de aliança ou algo que os aproxime que não seja o pragmatismo na actuação económica no sistema internacional.
Para que isso possa ocorrer, políticos, governantes e empresários deverão apostar no desenvolvimento sustentável, de modo que o crescimento económico seja, efectivamente, seguido do desenvolvimento económico que trará sustentabilidade àquele crescimento. Deverão, sobretudo, apostar na investigação e desenvolvimento tecnológico e na qualificação da mão-de-obra, para que as altas taxas de crescimento económico se reflictam numa maior margem de actuação internacional, independente, pois, da boa vontade dos países ricos.
No caso específico do Brasil, é interessante notar que o país, que entra lentamente num novo ciclo de desenvolvimento económico, com o aparecimento de um fenómeno social novo – o nascimento de uma classe média oriunda das massas de baixa renda, responsável pelo consumo interno do país, assim contribuindo para o aquecimento global da economia brasileira – tem vindo a apresentar índices macroeconómicos muito positivos que, além do mais, apresentam expectativas todas elas muito positivas de evolução para os próximos anos. Esta evolução positiva, assente num programa de desenvolvimento infraestrutural e de um novo modelo energético (através da diversificação da matriz energética), o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC), tem sido seguida do aumento das verbas para os programas sociais, que não são apenas programas de distribuição da renda, antes estão vocacionados para a educação, tanto a nível infantil, médio/juvenil, quanto superior, com base na ideia de colocar os jovens, sobretudo os de muito baixa renda, no sistema educacional. É evidente que estas políticas sociais/assistencialistas por si só são insuficientes, até porque o espectro da inflação tem toldado a política, quer dos governantes, quer do sector privado empresarial. Pela primeira vez, no início de 2008, o governo manifestou preocupação com a forte expansão da procura nos últimos meses, sendo certo que o pacote de medidas económicas destinadas a compensar a perda de receitas resultantes do fim da Contribuição Provisória Sobre Movimentação Financeira (CPMF) poderá vir a ser benéfico para travar a inflação. Isto porque, para compensar o fim da CPMF, o pacote prevê o aumento do Imposto Sobre Operações Financeiras (IOF) e da Contribuição Social Sobre o Lucro Líquido (CSLL), que levará ao esfriamento do ritmo de crescimento do consumo, já que o governo deseja que a expansão do crédito continue. Por outro lado, e como visto já, os fundamentos económicos da economia brasileira apresentam-se sólidos o suficiente para que o país consiga enfrentar as actuais turbulências no mercado internacional.
Independentemente dos potenciais riscos que apresentam, bem como de algumas dificuldades, designadamente no tocante à real capacidade para enfrentarem os problemas ligados ao fantasma da inflação de dois dígitos – que tem alarmado a economia brasileira – os BRIC reúnem, efectivamente, as condições necessárias para se transformarem nas próximas potências, desde que consigam elaborar e aplicar políticas socialmente sustentáveis, como as que o Brasil tem vindo, já, a desenvolver. Políticas de sustentabilidade como o Bolsa Família, que fomentam a integração da população na sociedade; e políticas de integração social a partir de uma situação mais estabilizada.
De ressaltar, em todo o quadro da política externa brasileira, a tradicional defesa do que é já o acumulado histórico da diplomacia brasileira: a defesa do multiculturalismo, da autodeterminação, da não-intervenção e do desenvolvimento.


[1] Cfr. O`NEILL, Jim; Building Better Global Economic Brics, Global Economics Paper nº 66, 30 de Novembro de 2001.
[2] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; A Diplomacia Económica na Política Externa Brasileira, in Reflexões Brasilianistas e Sul-Americanistas, http://www.brasil-americadosul.blogspot.com , pp.1.
[3] Segundo a análise do Prof. Amado Luiz Cervo, predominou no Brasil um Estado Liberal-Conservador do final do século XIX até 1930, quando teve início, de modo mais intenso em 1945, o Estado Desenvolvimentista, no começo dos anos 1980 substituído pelo Estado Neoliberal. Desde 2003, com a subida ao poder de Lula, este tem-se transformado num verdadeiro Estado Logístico, que assume a nova funcionalidade da política externa.
[4] Cfr. HAASS, Richard; the Age of Nonpolarity – What Will Follow U.S. Dominance?, Foreign Affairs, Maio/Junho de 2008. Vide também: HAASS, Richard; Ask the Expert: What Comes After Unipolarity?, Financial Times, Abril de 2008; na Era Não-Polar, os EUA Não Podem Mais Ser Sozinhos, entrevista de Sérgio Dávila a Richard Haass para a Folha de São Paulo de 12 de Maio de 2008.
[5] Cfr. PATRÍCIO, Raquel; As Relações Em Eixo Franco-Alemãs e as Relações Em Eixo Argentino-Brasileiras – Génese dos Processos de Integração, ISCSP/UTL, 1ª edição, Lisboa, Julho de 2007.
[6] O G20 reuniu-se em Washington, a 8 de Novembro de 2008, tendo o presidente Lula exigido que ao Brasil seja concedido um papel mais significativo nas questões mundiais.
[7] Cfr. CERVO, Amado Luiz; Inserção Internacional – Formação dos Conceitos Brasileiros, Editora Saraiva, 1ª edição, São Paulo, 2008, pp. 108.
[8] Cfr. Idem, 95 à112.
[9] O boom das commodities, designadamente de soja, é particularmente relevante no estado do Mato Grosso, que se transformou na vanguarda da marcha brasileira em direcção a um novo lugar na sociedade internacional global.
[10] Cfr. BRIDGES, Tyler; Brazil no Longer Longo n Potential and Short on Performance, in MiamiHerald, 12 de Novembro de 2008.
[11] Cfr. The Country of the Future Finally Arrives, in secção financeira do The Guardian, 10 de Maio de 2008, pp. 41.
[12] Afirmação de Lula, in idem, ibidem.
[13] Cfr. Idem, ibidem.

Friday, November 7, 2008

O Brasil e a Crise Financeira Mundial

O BRASIL: DA CRISE FINANCEIRA INTERNACIONAL E DA CONJUNTURA



O governo brasileiro tem como meta garantir que a economia cresça 4% em 2009, para o que está tomando medidas para sustentar a actividade económica e os níveis de emprego e da renda. Medidas que, no seu conjunto, colocarão R$ 24 milhões em crédito à disposição de vários sectores da economia. Além desse pacote, o governo concedeu um prazo maior para que as empresas recolham os impostos, prometeu que não haverá cortes no Programa de Aceleração de Crescimento (PAC) e criou um gabinete de crise com a missão de acelerar o andamento daquelas medidas.

Preocupado com as repercussões de um insucesso na condução da economia real – cujos êxitos têm, até ao momento, suportado a avaliação positiva da população, segundo as sondagens de opinião – politicamente conveniente em época de eleições municipais, Lula tem acelerado a tomada de medidas – que já tardavam, criando mal-estar no Palácio do Planalto – para conter os efeitos da turbulência nos mercados internacionais.

Ademais, a economia brasileira assiste hoje a um vigoroso movimento rumo a uma consolidação cada vez maior e mais forte do sector financeiro. A fusão do banco Itaú Holding Financeira com o Unibanco – duas das maiores instituições do mercado financeiro brasileiro – e a possibilidade de outros gigantes seguirem o mesmo caminho para manter as suas posições no ranking, como o Bradesco e o Banco do Brasil, exemplificam claramente esse movimento.

É evidente que esta concentração do sistema financeiro acarreta riscos que, não obstante estar o presidente do Banco Central, Henrique Meirelles, disposto a combater, é necessário equacionar. Riscos ligados, sobretudo, às consequências que a falta de competitividade traz, já que conduz a preços mais elevados e à diminuição da qualidade dos serviços, prejudicando os consumidores. Riscos que, todavia, certamente merecem a pena ser enfrentados, já que, em tempos de crise, mais importante do que a evolução da concentração é a solidez do sistema financeiro; e a concentração em causa vem precisamente no sentido de fortalecer esse sistema.

De qualquer modo, para Lula, o pior da crise já passou e o impacto sofrido pelo Brasil não foi tão forte como os que se fizeram sentir em outros países. Com um tom de optimismo quase despropositado em tempos de crise, a equipa económica de Lula continuará a apostar no estímulo do consumo interno – o factor hoje essencial na solidez da economia brasileira.

Apesar de todo este optimismo, o Brasil continua apostado em reforçar os contactos com os restantes países, sobretudo no seio do G20 e, naturalmente, no âmbito dos BRIC, como forma de enfrentar a crise.

Criado em 1999, logo após a crise asiática, com o objectivo de tratar de questões relativas à estabilidade financeira, embora passando, com o tempo, a ter uma agenda mais ampla, que incluía temas como meio ambiente e energia, o G20 tem vindo a adquirir uma importância significativa na actual sociedade internacional, hoje em debate em função do agravamento da crise financeira iniciada em Agosto do ano passado nos Estados Unidos.

Na reunião do G20 de 8 e 9 de Novembro de 2008, a realizar-se em São Paulo, o Brasil – que actualmente ocupa a Presidência rotativa do Grupo – apresentará propostas para aumentar a participação dos países emergentes no processo de reformulação do sistema financeiro mundial que lhes permitam, designadamente, vivenciar uma divisão mais equitativa entre os países nesse processo de reforma. Por outras palavras, o ministro brasileiro da Fazenda, Guido Mantega, espera que, no Fundo Monetário Internacional e no Banco Mundial, as economias avançadas e as emergentes participem de modo equitativo no processo de tomada das decisões, por forma a que o G20 influencie mais directamente os trabalhos das Instituições Financeiras multilaterais. O mesmo se pretende para os BRIC. Até porque, na realidade, a crise pode ser uma oportunidade para corrigir as distorções existentes, já que a solução daquela passará, certamente, pelo que será feito nos países emergentes que, juntos, representam cerca de 90% do PIB mundial


Thursday, November 6, 2008

O Brasil, a América Latina e Barack Obama

O LUGAR DA AMÉRICA LATINA NA VITÓRIA DE BARACK OBAMA

Barack Obama venceu as presidenciais norte-americanas de 4 de Novembro de 2008, fazendo crer que os Estados Unidos virarão uma página na sua vida política. Depois de 21 meses de intensa e emocionante campanha eleitoral, Obama bateu John McCain, tornando-se no 44º presidente dos EUA. Ganhando desde logo no estado do Ohio, Obama venceu também nos estados do Pacífico, ultrapassando a meta dos 270 votos necessários no Colégio Eleitoral para chegar à Casa Branca, muito antes dos resultados finais terem sido conhecidos.

Interessante notar que, depois do intenso debate sobre o papel da raça nas eleições em que estava em causa o primeiro candidato negro à Casa Branca, este factor acabou por não ser decisivo. Nas sondagens da CNN, dentre os que afirmaram que a raça era importante nestas eleições, 55% votaram em Obama, assim como 53% daqueles que haviam dito que a raça não era relevante.

O mais importante de todo este processo é, todavia, o que representa em termos de evolução da sociedade internacional. Democrata, membro do clube dos tradicionalmente pacifistas mais preocupados com a situação interna do país do que com a projecção de poder, unilateralmente, em todos os teatros internacionais, Barack Obama deixa no horizonte o espectro de uma maior igualdade entre os Estados, num multilateralismo que certamente favorecerá o «non-polar world» de Richard Haass. Ademais, pode esperar-se de Obama uma diferença fundamental relativamente à Administração precedente. Em 2000, durante a campanha eleitoral, os EUA eram um país líder e respeitado, estando hoje embrenhado numa grave crise de autoconfiança. Guerras inapropriadas, erros de governação e crise económica têm debilitado o país a nível interno e externo, esperando-se de Obama uma alteração desta situação.

Na realidade, ao sucessor de George W. Bush coloca-se o desafio de, ultrapassando a desastrosa actuação externa do país, recuperar a imagem e a credibilidade dos Estados Unidos. Para tanto, terá de liderar a reforma do Conselho de Segurança das Nações Unidas e aliar-se mais veementemente à União Europeia para competir com as possantes economias emergentes dos BRIC, bem como da África do Sul e do México, assim como enfrentar o velho inimigo russo – cuja recente guerra na Geórgia demonstra claramente que os desejos expansionistas de Moscovo não desapareceram com o fim da ordem bipolar. Será necessário que Obama lide também com o descrédito da Administração norte-americana provocado pela circulação mundial das fotografias de militares norte-americanos a humilhar prisioneiros em Abu Ghraib e pelos relatos de tortura em Guantánamo.

A guerra contra o terrorismo transnacional impor-se-á, também, como desafio premente. Não obstante a guerra do Iraque parecer finalmente correr menos mal, já que o aumento das tropas logrou diminuir a violência – que já matou centenas de milhares de Iraquianos e 4 100 militares norte-americanos – no Afeganistão a luta contra o regime talibã está cada vez mais longe da vitória, com os fundamentalistas islâmicos a estender a sua influência até ao vizinho paquistanês. Neste contexto, caberá a Obama garantir o sucesso do regime democrático implantado no Afeganistão e assegurar que sunitas, xiitas e curdos se mantenham unidos no Iraque, de modo que as próximas eleições contem com uma maior participação por parte dos cidadãos.

A ameaça nuclear colocar-se-á igualmente a Obama, que substituindo a retórica belicista e adoptando uma atitude dialogante, não poderá, todavia, deixar de tomar posição (e medidas) relativamente ao regime dos «ayatollahs» no Irão e à Coreia do Norte, sendo certo ter George W. Bush assinado um acordo de cooperação nuclear com a Índia. Face à continuação do enriquecimento de urânio pelo Irão, Obama terá de optar pela aceitação de um regime nuclear no país ou pela solução militar, enquanto a situação se adensa na Coreia do Norte – onde os rumores de doença do líder Kim Jong-il, a confirmarem-se, poderão provocar o êxodo da população para a Coreia do Sul, sendo certas as dúvidas quanto a quem lhe irá suceder à frente de uma provável potência nuclear – que, crê-se, já terá, inclusive, testado a bomba.

A dicotomia energia versus ambiente é outro dos «pontos quentes» da agenda herdados por Obama. Consumindo mais de 20 milhões de barris de petróleo por dia – 12 dos quais importados – e gastando 475 mil milhões de dólares do orçamento só em combustível – muito do qual comprado a países considerados «suspeitos» – os Estados Unidos de Obama terão de investir em soluções que poderão passar pelo desenvolvimento das energias alternativas. Até porque, sendo o maior poluidor do ambiente a nível mundial, não tendo ratificado o Protocolo de Kyoto – que expirará em 2012 – e não parecendo disposto a desbloquear o impasse que tem posto em causa a assinatura, em Copenhaga, no final de 2009, do sucessor de Kyoto – pois recusa-se, juntamente com a China, a participar nas conversações – os EUA terão de encontrar soluções alternativas para a redução das emissões de gases com efeito de estufa.

Evidentemente, a grave crise que está a afectar o sistema financeiro mundial – e que obrigou a Administração Bush a lançar um plano de 700 mil milhões de dólares para salvar os bancos da falência – obrigará Obama a recuperar a confiança nas instituições financeiras norte-americanas e a reformar o sistema económico internacional estruturado, em 1944, na Conferência de Bretton Woods.

Procurando dar resposta aos desafios internos colocados pela necessidade de reduzir o desemprego, reformar o Supremo Tribunal do país, melhorar o relacionamento com os cientistas – já que os 8 anos da Administração Bush foram uma verdadeira «guerra» contra eles, tendo isto motivado, mesmo, a assinatura, em 2004, de um manifesto, por parte de galardoados com o Nobel, apelando à não eleição de Bush – e reformar a segurança social – debate que tem marcado as diversas administrações que têm passado pela Casa Branca, tendo falhado a proposta de Hillary Clinton de 1993 e sendo os EUA o único país rico e desenvolvido a não ter saúde gratuita e universal para os seus cidadãos – Barack Obama terá, ainda, de rever a postura desinteressada de George W. Bush relativamente à América Latina.

É verdade que o grande debate sobre o quanto Barack Obama poderá mudar a desastrosa política externa norte-americana está em geral focado sobre o Médio Oriente. Há, porém, um debate político menos visível, mas não menos apaixonado, sobre a América Latina, que embora não levante questões que afectem profundamente o Hemisfério Sul, tampouco os milhões de Norte-Americanos que têm laços familiares na região, é um assunto importante. Num mundo cada vez mais integrado e interdependente, no qual ganha relevância o «soft power» sobre o «hard power», as relações dos Estados Unidos com a América Latina já não podem ser vistas como aspecto regional da política externa dos EUA, tornando-se, antes, parte fundamental da discussão sobre comércio, emprego, imigração e criminalidade transnacional no país.

É certo que, acreditando-se ou não na plataforma democrática para a política norte-americana na América Latina, submetida ao lema «Nós acreditamos em mudança», a verdade é que inevitavelmente a campanha acenou ao voto latino, especialmente em estados indefinidos, como a Florida e o Novo México.

A vitória de Obama trará, para a região, uma verdadeira Política de Boa Vizinhança que, espera-se, venha ultrapassar o desastre da política de Bush para a América Latina.
O primeiro passo foi dado com a carta, apresentada à Fundação Nacional Cubano-Americana em Miami, no dia 23 de Maio, na tentativa de vencer o poderoso grupo político que havia defraudado as anteriores esperanças do Partido Democrata. Obama ofereceu, assim, à multidão, um pacote de novas políticas.

Pouco depois do discurso para os Cubano-Americanos, a campanha lançou «Uma Nova Parceria para as Américas», abordando a política externa regional a partir de três eixos principais, que remetem para as «quatro liberdades» de Roosevelt: a liberdade política, a democracia, a segurança e o combate à pobreza.

Polémica quanto ao alcance e à consistência das propostas, a verdade é que a plataforma de Obama marca uma ruptura importante com a política de Bush para a região. Mais significativa ainda, ante o cenário criado pelos republicanos em matéria de propostas eleitorais para a América Latina. Efectivamente, as medidas republicanas foram caindo muito mal na região, especialmente quando John McCain nomeou Otto Reich como seu conselheiro para a América Latina. É preciso não esquecer que foi justamente Reich quem afastou os Centro-Americanos pela participação directa no escândalo «Irão-Contras». Do mesmo modo, Reich enfureceu os Venezuelanos ao apoiar o golpe de 2002 e provocou a ira dos Cubanos ao proteger Orlando Bosch e Luís Posada Carriles, os responsáveis pelos ataques terroristas anti-Cuba. Pelo contrário, a equipa de política externa de Obama para a América Latina, bastante heterogénea, tanto engloba a linha dura que apoia o Plano Colômbia, quanto a oposição que se contrapõe a um acordo de livre comércio entre Washington e Bogotá. Neste contexto, a referida Nova Parceria para as Américas revela uma nova perspectiva sobre a região, que alimenta a esperança de mudanças reais.

O capítulo sobre liberdade política concentra-se na questão cubana. Propondo eliminar restrições de viagens à ilha e liberar as remessas monetárias, a Parceria é ambígua em relação ao embargo comercial, porque o entende como instrumento de negociação na transição pós-Fidel – embora se possa, eventualmente, entender a tentativa de flexibilizar esse embargo como uma manobra eleitoralista.

Outras rupturas com a política de Bush incluem o fim das torturas, das prisões clandestinas no exterior, das detenções indefinidas, o restabelecimento do habeas corpus e o fechamento de Guantánamo. O documento refere ainda a necessidade de um maior comprometimento dos Estados Unidos na luta contra a pobreza da região, em nome de um «desenvolvimento de baixo para cima», bem como a urgência no cumprimento dos Objectivos de Desenvolvimento do Milénio, dos princípios das Nações Unidas e bem ainda a redução do défice de educação, o perdão, a 100%, da dívida externa da Bolívia, Guiana, Haiti, Honduras, Paraguai e Santa Lúcia; além de prometer reformas para o Fundo Monetário Internacional e para Banco Mundial. Estas propostas vão muito além do programa tradicional dos candidatos democratas e o facto de terem sido incorporadas no plano de Obama para a América Latina indica a sua disposição em colocar, nas questões sociais, a ênfase que anteriormente era dada ao investimento empresarial, à liberalização do comércio e aos programas de mudança de regime a partir de bases ideológicas. A Lei Contra a Pobreza Geral, que Obama vem já implementando, constitui um primeiro passo no sentido desses objectivos.

Quanto à integração regional, a plataforma de Obama rompe com os paradigmas do comércio justo, da alteração do NAFTA, da oposição ao acordo entre os Estados Unidos e a Colômbia, da possibilidade de oferecer cidadania para trabalhadores ilegais e seus familiares e salienta a necessidade de uma análise profunda da política comercial, observando a relação entre as políticas comerciais e de imigração sob o NAFTA.

Em matéria de segurança, Obama altera a lógica republicana que justificava as intervenções norte-americanas, ao proferir a maior disponibilidade para assumir e partilhar responsabilidades, tomar a dianteira em desafios internos como o controlo de drogas e o tráfico de armas e criar parâmetros mensuráveis, enquanto se enfatizam alternativas não-militares.
No documento, encontram também espaço as questões da energia e da imigração, em relação à qual Obama reitera o compromisso de fazer uma ampla reforma nas políticas de imigração elencada como prioridade absoluta do seu primeiro ano como presidente. Propõe ainda a continuidade e actualização do Programa Andino Contra as Drogas, apoiando a luta colombiana contra as Farc – apesar de se ter oposto ao acordo de livre comércio entre os EUA e a Colômbia – e o Plano México. Opondo-se veementemente à violência e à criminalidade, que propõe combater, Obama opta por soluções não-militares que incluam um compromisso e um envolvimento com a Venezuela chavista.

Polémica nem tanto na sua essência, mas fundamentalmente pela dúvida relativamente à concretização das propostas eleitoralistas, a Plataforma de Obama segue os ideais de Roosevelt, compreendendo, inclusive, muito bem que, hoje, os governos de esquerda da América Latina anseiam, não por programas económicos submetidos ao Consenso de Washington, mas mais por programas semelhantes ao «New Deal» dos anos 1930. Assim mesmo é encarada a «doutrina Obama» da Política de Boa Vizinhança elaborada também na década de 1930. E isto reflecte uma profunda mudança de perspectiva dos EUA face à América Latina, já que o governo governoBush, que interpretou este facto como uma ameaça, não percebeu que, simplesmente, as turbulências na América Latina eram um convite para rever o actual modelo de integração económica e adoptar uma maior flexibilidade. Até porque, livre de conflitos, repleta de democracias e num processo de grandes redefinições, a região é um laboratório para mudanças num mundo globalizado. Tudo sugerindo que Obama iniciará uma nova era nas relações dos Estados Unidos com a América Latina – apesar de ter de se preparar para as recomendações políticas e económicas do Conselho de Relações Exteriores, que constantemente lança apelos à liberdade de comércio e considera, em consonância com Condeleeza Rice, que as medidas para a redistribuição da riqueza nacional adoptadas na América Latina representam o ressurgimento dos nacionalismos. Eleito presidente, ele tem, agora, de estar disposto a manter as promessas feitas durante a campanha, mesmo quando pressionado pelos lobbies, ou mesmo que os analistas e os políticos o advirtam que tais promessas não são prioritárias.

Fosse como fosse, a verdade é que o candidato Obama reuniu a preferência quase generalizada dos líderes latino-americanos. Mesmo no Brasil, não obstante a proposta mais flexível e liberal de McCain quanto ao etanol ter reunido maiores consensos; e não obstante o receio de que um democrata na Casa Branca e uma maioria democrata no Congresso possam transformar os EUA num país excessivamente proteccionista relativamente aos seus maiores exportadores – caso do Brasil – a preferência do Palácio do Planalto e do Itamaraty foram sempre por Barack Obama. Não apenas pela simbologia de ter um negro a presidir à maior democracia do mundo, como também, e sobretudo, devido ao multilateralismo que Obama ergueu como uma das bandeiras de campanha em matéria de política externa. O próprio presidente Lula, ainda durante a campanha, havia afirmado que Obama seria, nos EUA, mais ou menos como Chávez na Venezuela, como ele próprio no Brasil, como Evo Morales na Bolívia e como o bispo Lugo no Paraguai; ou seja, uma grande novidade, um «factor extraordinário» para os Estados Unidos e para o mundo[1].

O presidente venezuelano Hugo Chávez, por seu lado, tendo sempre acreditado na vitória de Obama, espera que desta resultem relações bilaterais marcadas pelo respeito, de modo a ultrapassar a tensão que persistiu entre os dois países durante a Administração Bush – que terá mesmo levado Chávez a expulsar, em Setembro último, o embaixador norte-americano em Caracas, em demonstração de solidariedade com a Bolívia, que teve o seu representante diplomático expulso de Washington. A verdade, todavia, é que, não obstante se esperar, de Chávez, algum nível de redução das críticas aos EUA, a viragem não será total, já que o antiamericanismo do presidente venezuelano é uma «imagem de marca» que o próprio gosta de ostentar.

Relativamente ao Brasil, a situação poderá vir a ser diferente. Segundo o ex-ministro brasileiro dos Negócios Estrangeiros (1995-2001), Luiz Felipe Lampreia, em entrevista à BBC Brasil, “a eleição de Barack Obama à Presidência dos Estados Unidos pode significar uma aproximação ainda maior entre EUA e Brasil”[2].


É bem verdade que a actual política externa brasileira tem privilegiado o contacto com outros países em detrimento dos EUA, designadamente as economias emergentes dos BRIC. Todavia, a postura de Lula diverge desta orientação, sendo, segundo Lampreia, “mais sensata”. Se Lula e Bush tinham uma boa relação, é provável que, com Obama, mais aberto ao diálogo, aumente o espaço de participação do Brasil nos novos directórios do poder mundial. Até porque a história de vida de Obama, um mestiço, comparável à evolução do próprio Lula, com quem tem um pensamento semelhante, será certamente positiva – e terá, naturalmente, inspirado tanta simpatia no Brasil.

O próprio receio brasileiro face ao proteccionismo que se espera de Obama pode ser infundado. As desavenças comerciais são transversais à política e não dependem de presidentes, além de que a política comercial norte-americana é levada a efeito pelo Congresso, estando hoje diluídas, em função da crise, as divisões entre democratas e republicanos no que se refere ao comércio – mostrando-se os republicanos, no actual cenário de recessão económica, tão ou mais proteccionistas que os democratas.

Barack Obama, que tomará posse no próximo dia 20 de Janeiro – ainda que, face ao colapso de Wall Street, Bush tenha demonstrado vontade de que o seu sucessor influencie as decisões políticas antes dessa data – chega à Casa com uma enorme expectativa mundial de mudança. Poderá causar decepções, por dele se esperar demais. Frustrações relativamente ao primeiro negro na Presidência dos EUA, não só no próprio país, como na sociedade internacional em geral e, muito particularmente, no Brasil e na América Latina. Até lá, resta a esperança da mudança e o entusiasmo do «período de graça».

[1] Cfr. Eliane Cantanhêde, para o Poadcast da Folha Online, 04 de Novembro de 2008, 09h10.
[2] Cfr. PEIXOTO, Patrícia; Para Ex-Ministro, Obama Pode Aproximar Brasil e Estados Unidos entrevista a Luiz Felipe Lampreia à BBC Brasil a 05 de Novembro de 2008, às 07h28.